A “lógica interna” do Outro Poder


O ego não pode conseguir a liberdade de si mesmo, algo mais é necessário.

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Um amigo perguntou-me recentemente para descrever a “lógica interna” do Budismo da Terra Pura. Eu estava confuso. Parecia uma espécie de koan, algo como “Por favor, enumere o conteúdo de uma caixa vazia.” Terra Pura é o budismo do Outro Poder. E não tem um lógica “interna”. Esse é o ponto. Do ponto de vista da Terra Pura essa é a mensagem original do Buda. Siddhartha Gautama se esforçou durante muitos anos para resolver o grande problema existencial de nascimento, aflição e morte. Ele alcançou muitas coisas, mas nunca foi o suficiente, não poderia ser o suficiente. No final, todo o seu esforço para a salvação foi provado fútil. Mas algo lhe foi dado quando ele desistiu.

Delusões tem lógica interna, muitas lógicas internas. A salvação não. Salvação, no budismo, é para ser compreendida de maneira que fique claro que algo lhe resgata. Como uma criança é resgatada de uma casa em chamas, ou atraído por um dispositivo que o desvia.

Então o que eu estava dizendo? Pensei novamente. A perseguição da auto-vantagem e ganhos tem uma lógica clara e penetrante. Ela pode entrar em todas as fendas da vida de alguém, não excluindo o caminho espiritual. Isto é o que Chögyam Trungpa Rinpoche descreve com a potente frase “materialismo espiritual”. Assim, quando olhamos para nossa lógica interna, se formos honestos, é o que vemos. Em toda parte há egoísmo. Na verdade isso é tão onipresente que ser honestos com nós mesmos é extremamente difícil. Parece que estamos apenas capaz de fazê-lo parcialmente e em breves períodos, como um mergulho pessoal debaixo da água. Uma breve dose de honestidade, e então temos de subir para o ar. Assim parece.

E o que significa procurar a honestidade, como chegar? Porque recolher vasos do fundo do mar e subi-los para a superfície? Vasos antigos. Vasos quebrados de nossos esforços anteriores. Fragmentos de egoísmo em inúmeras formas, agora espalhados pelo fundo do nosso mar. Fragmentos de todos os impérios que temos procurado construir, as guerras em que combatemos, os orgulhos e os desânimos que nosso ego sofreu. Recolhe-los. Junta-los. Eles revelam a nossa lógica interna: ganância, ódio e ignorância. Eles tem longas histórias. Longas eras. Temos ilusão por todo o caminho. A partir dessa penetrante consciência não há nenhuma lógica interna de salvação. Salvação, se ocorrer, é inteiramente por graça.

A lógica interna do budismo da Terra Pura, se assim pode ser chamado, e chamá-lo assim é certamente extremamente perigoso, é ruína e arruinar-se somente. Não há nada. Não há graça em nós mesmos. Mesmo quando Siddhartha tinha dominado todos as yogas de sua época, ele sabia que não era o suficiente. No entanto, muitas horas de meditação, muita disciplina pessoal, compreensão filosóficas excêntricas, muito conhecimento técnico de nada serve. Se existe uma lógica interna na Terra Pura, encontra-se no exemplo de Siddhartha e de outros como ele, que deram o seu tudo em uma busca vã para o domínio de si e, no final, tiveram que desistir. Isso não é realmente a lógica de salvação, no entanto; é a lógica da natureza auto-destrutiva do egoísmo, a lógica da origem dependente. O ego não pode conseguir a liberdade por si mesmo.

No entanto, os budas declararam o dharma, declararam nirvana. Esta roda está girando no mundo agora, sem cessar. Isso é algo para se ter gratidão. Se eu estou salvo ou não, eu sou grato aos budas pelo seu Poder, a sua perspicácia, sua Generosidade, o seu Amor; por sua Compaixão, sua Alegria e sua Equanimidade. Sou eu que vivo uma vida condicionada através de e com ilusões inevitáveis; pelo menos de vez em quando levanto os meus olhos, abro meus ouvidos, junto minhas mãos num gesto de verdadeira oração, e motivado por uma graça misteriosa digo o nome de um Buda. Eu sou salvo? Eu não sei. É o seu caso. Se eles vão me salvar que assim seja. Se eu estou indo para o inferno, que assim seja. Eu não posso me ajudar. Nesta escuridão, o Dharma apareceu e eu louvarei. Eu não posso possuí-lo, eu não o faço, eu não posso torná-lo meu, não é parte de mim e não sou como me encontro parte dele. Mas é glorioso, e eu sou grato que ele (*o dharma) está no mundo a fazer o seu trabalho, e eu estou, pelo menos um pouco, disposto a fazer parte desse trabalho. No entanto, se isso é para ser assim, ele (o Buda) terá que trabalhar através de mim de uma forma que eu não entenda, ou tenha muito conhecimento, senão certamente eu iria roubá-lo para o meu próprio propósito egoísta.

Então eu oro: “Fique até samsara cessar e gire a roda dharma para nós.” A lógica do Outro Poder pertence aos Budas, não a mim. Em mim há apenas a lógica da loucura.

Diz-se muitas vezes que Shakyamuni era um ser humano como nós e nós podemos ser como ele. Será verdade? Quantos de nós estão dispostos a abandonar dinheiro, casa, relacionamentos, sexo e segurança sobre o local onde a nossa próxima refeição virá, e saem em uma busca por auto-salvação, com tal ardor e desespero que nos custará absolutamente tudo; e desembarcarmos finalmente às portas da morte, com a percepção de que tudo o que temos feito até este ponto realmente foi “vão, ignóbil, e inútil”? Eu não vejo muitos procuradores. E, mesmo que fosse para fazer isso, não há garantia de que iríamos sair dela sagaz e mais sábio.

Como aconteceu de uma mulher ver o corpo de Siddharta caído e faminto, cuidou dele até voltar à vida. Como ocorreu dele ter ficado, assim, lançado em uma noite de turbulência em que foi confrontado por todos os demônios, que, apesar de todos os seus esforços, nunca tinham o deixado. Ele certamente soube da lógica interna da ilusão. Ele então percebeu que foi salvo do que tinha sido, mas seguindo uma lógica interna de Fênix renascida que surgiu espontaneamente, sabia que o seu novo estado nunca poderia ser entendido por qualquer outra pessoa. No entanto, por causa da intervenção dos devas, ou seres celestiais, saiu para declarar o dharma, adorável em sua origem, admirável no processo, adorável em sua consumação. Como isso aconteceu, não havia mais nada que pudesse fazer. Para que todos nós sejamos extremamente gratos. Podemos ser apreendidos pelo Dharma, mas não podemos compreende-lo. Não é que possamos ter caído de um estado de graça, pois nós nunca estivemos em tal estado e não temos isso em nós. No entanto, há O Poder de Budas agindo de alguma forma, e se através desse poder nos é concedido um pingo de fé, então de vez em quando vamos levantar nossas mãos e vozes em agradecimento. E senão, que assim seja. Não podemos nos apropriar desse poder. Não sou eu, não é meu, não é o meu eu. É O Outro.

Então, qual é a lógica interna do Budismo da Terra Pura? A questão retorna como a bola de ferro proverbial na boca do peixe, grande demais para engolir ou cuspir. Talvez isso ocorra dentro de nós mesmos, não há nada para encontrar além da convicção de nossa própria loucura e a partir desse ponto é onde um grito primordial soa: “Eu não posso!” Poder descobrir o vazio de tudo isso. No entanto, como Nagarjuna [o filósofo budista influente e fundador da escola Madhyamaka] disse, existe um fácil e um difícil caminho. Pode-se atravessar as montanhas a pé, como fez Siddhartha, ou você pode pegar uma carona no grande veículo do dharma que fora lançado posteriormente. Ao confiar em nós mesmos estaremos atravessando as montanhas e provavlemente falharemos. Confiando no Buda nós só podemos nos encontrar deslizando facilmente para o campo de méritos que ele graciosamente propagou para nos receber.

David Brazier (Dharmavidya) é um professor budista, autor e presidente do Instituto Internacional de Terapia Zen. Ele também é chefe da Ordem Amida, uma Sangha Terra Pura.

Fonte:
Revista Trycicle, caderno 2015, Volume 24, Number 3.

http://www.tricycle.com/feature/inner-logic-other-power

Tradução: Celso Campos S. Junior