NOTAS SOBRE O SHOSHINGE – 6

Rev. Prof. Dr. Ricardo Mário Gonçalves

A razão da manifestação do Tathagata no mundo

É unicamente a pregação do Voto Original de Amida, semelhante ao Oceano.

O mar fervilhante de incontáveis seres, nesta era vil de cinco corrupções,

Deve crer nas palavras verdadeiras do Tathagata.

 

1.Considerações Gerais: Aqui é exposta a razão da manifestação do Buda Shakyamuni, e, por extensão, dos demais Budas neste mundo: a pregação do Voto Original de Amida que proporciona a salvação a todos os seres. Shinran fundamenta sua exposição no Grande Sutra da Vida Imensurável (Daimuryojukyo) que ele proclama ser a expressão da Verdade, principalmente nos tempos finais deste ciclo histórico, marcados pela decadência e pela corrupção.

 

2.Concepções de Buda: Para entendermos a idéia da razão da manifestação do Tathagata no mundo, convém recapitular as distintas concepções de Buda, enfatizando aquelas próprias do Budismo Mahayana.

Para o historiador profano, o Buda Histórico Shakyamuni foi o fundador da religião conhecida como Budismo, um grande instrutor espiritual da humanidade que viveu na Índia, por volta do século VI a.C. O filósofo Karl Jaspers considera o período centrado nesse século como era axial da história humana, o momento em que o gênero humano atingiu a maturidade e em que grandes pensadores souberam formular de maneira definitiva as grandes questões relativas ao mundo e à existência humana: Zaratushtra na Pérsia, Shakyamuni na Índia, Confúcio e Lao-tze na China, os filósofos pré-socráticos e Sócrates na Grécia, os profetas de Israel, etc. René Guénon nos lembra que o mundo anterior ao séc. VI a. C. era muito diferente do nosso.

Na tradição budista, após o desaparecimento do Mestre, os discípulos começaram a idealizar sua figura de distintas maneiras. No Budismo Theravada, por exemplo, o Buda Sakyamuni é visto como o Sábio responsável pela instrução da presente humanidade deste mundo, tendo alcançado a Iluminação ao cabo de uma longa ascese desenvolvida durante incontáveis vidas sucessivas. No Budismo Mahayana, Shakyamuni e os demais Budas deste e de outros mundos são vistos como manifestações de um Buda Eterno, personificação de um Princípio Universal e Perene, que periodicamente toma a forma humana. Movido por sua Grande Compaixão, vem assim a este mundo para libertar os seres viventes da ignorância e do sofrimento. Com base nessa concepção, o Mahayana elaborou a Doutrina dos Três Corpos de Buda: 1) Dharmakaya (Corpo do Dharma), o Corpo da Suprema Realidade ou da Verdade Última; 2)  Sambhogakaya (Corpo de Retribuição), o corpo glorioso em que se manifestam as diferentes virtudes do Buda, resultantes de sua ascese anterior; 3) Nirmanakaya (Corpo de Manifestação), compreendendo as manifestações do Buda em forma humana. Encontramos uma exposição sobre os Três Corpos do Buda noGutokushô (Notas do Néscio Ignorante) transcrição das anotações feitas por Shinran durante seu período de aprendizado junto ao Mestre Hônen, na Comunidade de Yoshimizu. Ali é dito que há dois tipos de Dharmakaya: 1) o Dharmakaya como Realidade Última (Hossho hosshin); 2) o Dharmakaya manifestado através de hábeis meios salvíficos (Hôben Hosshin). Sakyamuni e Amida são vistos tanto comoSambhogakaya, como Nirmanakaya (Shinshû Seiten pág. 428). Já na Carta Nº 8 doMattosho (Lâmpada para os Tempos Vindouros) Amida é visto basicamente como Corpo de Retribuição (Shinshû Seiten pág. 604).

O Buda Universal e Eterno recebe diferentes nomes nos distintos Sutras do Mahayana. No Sutra do Lótus da Lei Excelente (Hokkekyô) recebe o mesmo nome do Buda Histórico (Shakyamuni), o que dá margem a muita confusão. Nesse Sutra, o Buda Universal e Eterno é explanado no Capítulo XVI, intitulado Da Vida Eterna do Tathagata(Nyorai juryôbon). Nos Sutras da Terra Pura é chamado de Amida. No Sutra da Guirlanda de Flores (Kegon) é chamado de Vairocana. Nos Sutras do Budismo Esotérico ou Vajrayana é chamado de Mahavairocana. Essas denominações diferentes provocaram muitas querelas sectárias, mas , evidentemente, trata-se de nomes distintos dados a uma mesma Realidade.

É interessante lembrar que no Hinduísmo o Buda Shakyamuni acabou sendo absorvido como um dos avataras ou manifestações periódicas do Princípio Supremo entre os homens, com o objetivo de instruí-los. Trata-se de uma concepção próxima da do Mahayana.

 

3. A Manifestação do Tathagata no mundo: Diferentes Sutras expõem de distintas maneiras a Razão da Manifestação do Tathagata no Mundo (Nyorai no Shusse Hongai). Entretanto, sempre se trata de uma manifestação motivada pelo desejo compassivo de conduzir os seres sofredores à Libertação. O Grande Sutra a expõe da seguinte maneira:

O Tathagata se compadece dos Três Mundos através de uma Grande Compaixão Insuperável. O motivo de sua manifestação no mundo é: expor a Doutrina do Caminho de forma luminosa, movido pelo desejo de salvar a multidão fervilhante dos seres, agraciando-os com os benefícios da Verdade.

Já no Sutra do Lótus, no Capítulo II, intitulado Dos Hábeis Meios Salvíficos (Hôbenbon), há a seguinte exposição:

Os diferentes Budas, Honrados do Mundo, se manifestam neste mundo devido a uma única e importantíssima razão, Sariputra! Qual é a assim chamada única e importantíssima razão da manifestação dos diferentes Budas no mundo? Os diferentes Budas, Honrados do Mundo, se manifestam no mundo para despertar a Visão da Sabedoria Búdica nos seres e fazê-los alcançar a pureza. Eles se manifestam no mundo porque desejam mostrar a Visão da Sabedoria Búdica aos seres. Eles se manifestam no mundo porque querem que os seres despertem para a Visão da Sabedoria Búdica. Eles se manifestam no mundo, desejosos de fazer com que os seres ingressem no Caminho da Visão da Sabedoria Búdica. Tal é, Sariputra, a chamada única e importantíssima razão da manifestação dos Budas no mundo.

Segundo o Prof. Ocho Enichi, da Universidade Otani, especialista em Budismo Chinês, os dois Sutras expõem o mesmo princípio, mas enquanto que o Grande Sutra expõe claramente o Nembutsu como via de salvação acessível a todos os seres, o Sutra do Lótus nada diz concretamente sobre caminhos ou métodos.

 

3.1. Budismo, Religião Gnóstica de Salvação: Muitas vezes vemos organizações budistas, usando uma estratégia proselitista não muito coerente, apregoarem que o Budismo é uma “filosofia de vida” compatível com qualquer outra opção religiosa. Estes textos sobre a Razão da Manifestação do Tathagata no mundo mostram claramente que, muito pelo contrário, o Budismo é uma religião de salvação de cunho gnóstico, que fala da manifestação no mundo de um Salvador, de um Soter infinitamente compassivo    que vem colocar ao alcance dos seres sensíveis, prisioneiros da ignorância e do sofrimento, a Sabedoria Verdadeira que os libertará do cárcere dos nascimentos e mortes.

 

4. Uma visão da Decadência: Nós modernos, que desde o século XVIII vivemos embalados pelas idéias de Progresso e Evolução próprias do Iluminismo e da Modernidade, ficamos chocados ao ver Shinran, endossando os termos dos Sutras da Terra Pura, qualificando o tempo em que vive como a era vil das cinco corrupções. Ver a História humana como um processo irreversível de decadência não é apanágio exclusivo do Budismo. Encontramos idênticas idéias no Hinduísmo (o conceito de Kali Yuga ou Idade Sombria) e em antigos poetas gregos e romanos (o mito das raças – ouro, prata, bronze, heróis e ferro – em Hesíodo e Ovídio). Autores de nosso tempo como o filósofo da História Oswald Spengler (A Decadência do Ocidente) e o pensador tradicionalista francês René Guénon (Oriente e Ocidente, A Crise do Mundo Moderno, O Reino da Quantidade e os Sinais dos Tempos) também retomam essa perspectiva. Há que lembrar também o tradicionalista italiano Julius Evola (Revolta Contra o Mundo Moderno, Cavalgando o Tigre). Mais tarde voltaremos a este assunto ao tratar da Teoria Budista dos Três Tempos (Shozomatsu), extremamente importante em Shinran.

 

5. Questões de Vocabulário:

5.1. Tathagata: O termo Tathagata usado duas vezes nesta passagem se refere basicamente ao Buda Histórico Shakyamuni, mas também, por extensão, a todos os Budas. No rascunho do Shoshinge escrito pelo próprio Shinran podemos observar que o Mestre escreveu primeiro o termo Shaka (Shakyamuni) que ele depois riscou e substituiu por Nyorai (Tathagata), um termo universal e abrangente.

5.2. Cinco Corrupções:

5.2.1. Corrupção da Era (Kalpa): impurezas próprias de uma era, como catástrofes naturais, guerras e males sociais.

5.2.2. Corrupção da Visão: visões ou concepções errôneas que pululam nas eras de decadência como o materialismo, as ideologias políticas divinizadas, as superstições, as seitas fanatizantes de cunho fundamentalista, etc.

5.2.3. Corrupção das Paixões: referência a uma cultura permissiva que só valoriza a satisfação das paixões mundanas: a ganância, a sede de poder, a busca desenfreada do prazer, etc.

5.2.4. Corrupção dos Seres Viventes: a imoralidade e os maus costumes, acarretando a deterioração física e moral dos seres viventes.

5.2.5. Corrupção da Vida: o rebaixamento da idade psicológica dos seres, a infantilizaçpão dos adultos. Avanços tecnológicos como brinquedos alienantes.

 

6. As Estruturas do Imaginário em Shinran – o mar e as vidas fervilhantes: A expressãomar fervilhante de incontáveis seres (gunjôkai) nos convida , tomando por guia a Antropologia do Imaginário de Gilbert Durand, a explorar as estruturas do imaginário em Shinran. As expressões mar (umi, kai) e vidas fervilhantes (gunmô, gunjô), surgem com notável freqüência nos textos de Shinran, reclamando um estudo especial. É óbvio que elas não foram criadas por Shinran, que se limitou a extraí-las dos Textos Sagrados. A originalidade de Shinran está não só na insistência com que recorre a essas imagens, mas também nas novas nuances de significado que podemos descobrir no uso das mesmas pelo Mestre. Isso ficará mais claro se refletirmos um pouco sobre a natureza dos textos religiosos, como os de Shinran.

O Shoshinge, por exemplo, é um exercício de intertextualidade em que abundam reminiscências, ecos e citações diretas dos Sutras, dos Comentários dos Sete Patriarcas, de comentários de comentários, etc. Como nos ensina o teórico russo da Literatura Mikhail Bakhtine, é um texto polifônico em que podemos ouvir muitas vozes: a do próprio Shinran, a do Tathagata, as dos Sete Patriarcas. Conforme ensina o rabino brasileiro Nilton Bonder (Portais Secretos) é ele um hipertexto com múltiplas entradas (como as janelinhas do Windows) que permitem acessar os Sutras, os Comentários dos Patriarcas, os comentários dos comentários, etc. Em uma escala maior, oKyôgyôshinshô também funciona como um hipertexto em que as (poucas) passagens de autoria do próprio Shinran – gojishaku – apresentam inúmeras entradas para acessarmos as inúmeras citações que constituem o corpo principal da obra.

O termo gunmô (multidões, vidas fervilhantes) aparece no Grande Sutra, na passagem já apresentada referente à Razão da Manifestação do Tathagata no Mundo. O termo, como seu sinônimo gunjô presente na passagem do Shoshinge agora analisada, evoca uma grande quantidade de vidas pululantes, fervilhantes, a brotar da terra como uma vegetação luxuriante. Não apenas vidas humanas, mas também animais e vegetais. Estudiosos como o Prof. Takashi Hirose, ex-reitor da Universidade Otani, opinam que o uso do termo gunmô por Shinran está ligado a sua experiência de exílio em Echigo, que o colocou em contacto com as multidões de excluídos e oprimidos da sociedade japonesa da época (caçadores, pescadores, lavradores e mercadores), obrigados a transgredir os Preceitos Budistas para sobreviverem. O termo nos remete à perpétua ânsia dos seres viventes no sentido de sobreviverem e preservarem a continuidade da vida a qualquer preço.

O mar é um caso particular do tema do simbolismo da água. Elemento constantemente em movimento, aponta para a transitoriedade de todas as coisas e simboliza o Caos que carrega no seu bojo todas as possibilidades de manifestação. É ao mesmo tempo a vida e a morte, s extinção e a manifestação. É o elemento em que mergulhamos para morrer e renascer para uma nova vida (cf. a água do batismo cristão). É também o elemento purificador por excelência: na entrada de todos os templos e santuários do Japão há água para os devotos purificarem as mãos e a boca, antes de adentrarem o recinto sagrado.

No Budismo, o mar pode representar tanto a tranqüilidade do Nirvana e da Sabedoria Búdica quanto a tempestuosa agitação das paixões mundanas. Não nos admiremos do mesmo elemento representar situações aparentemente antagônicas, já que o Mahayana nos ensina que os nascimentos e mortes e o Nirvana são a mesma Realidade.

O oceano aparece numa passagem do Grande Sutra como símbolo da Sabedoria:

O Oceano de Sabedoria do Tathagata é profundo, vasto e sem fundo, não pode ser avaliado pelos Dois Veículos, somente o Buda o compreende com clareza. (Shinshû Seiten, pág, 50.)

No Tratado da Terra Pura do Bodhisattva Vasubandhu temos a imagem do Precioso Oceano das Virtudes:

 

Considerando-se o Poder do Voto Original do Buda, vemos que ninguém por ele passa em vão; perfeita e rapidamente preenche ele o Precioso Oceano das Virtudes. (Shinshû Seiten, pág. 137.)

 

No Prefácio do Kyôgyôshinshô o mar penoso da existência aparece associado à imagem da Nave Salvífica:

 

O Amplo Voto Inefável é a Grande Nave que transpõe o mar difícil de ser transposto.(Shinshû Seiten, pág. 149.)

 

A Nave Salvífica também está presente no simbolismo religioso ocidental. A Igreja Católica é, às vezes, chamada de “Nave de São Pedro” . Existem também representações medievais da Barca do Cristo transpondo o mar tempestuoso.

No Livro da Prática (Gyô no Maki) surge a figura do Mar dos Seres Viventes:

 O Mar dos Seres Viventes será acolhido e jamais será rejeitado, caso busque refúgio nesta Prática e nesta Fé. (Shinshî Seiten, pág. 190.)

No mesmo Livro temos a bela imagem da Nave do Voto no Oceano de Luz:

 Se, a bordo da Nave do Voto da Grande Compaixão, flutuarmos no Vasto Oceano de Luz, o vento da Perfeição das Virtudes soprará calmamente, fazendo espumarem as vagas das vicissitudes. (Shinshû Seiten, pág. 192).

Imagens marítimas estão presentes também nos Hinos dos Patriarcas – Hinos ao Patriarca T’an-luan:

 A Inefável Água do Mar do Nome Sagrado

Rejeita os cadáveres dos perversos e dos detratores do Dharma;

Para ela convergem as águas dos rios dos males,

Integrando-se no Sabor Uno da maré.

Para a Água do Mar do Grande Voto Todo Compassivo

Da Luz sem impedimento que se estende nas dez direções

Convergem as diferentes correntezas das paixões,

Que se irmanam no Sabor Uno da Maré da Sabedoria. (Shinshû Seiten, pág. 493.)

 

Aqui temos o mar como representação do Nirvana que, rejeitando os cadáveres das diferentes formas de egoísmo e de transgressões, a todos irmana no Sabor Uno da Sabedoria Búdica. Também podemos vislumbrar aqui a função purificadora da água.

Segundo o Prof. Takashi Hirose, esses versos podem ter sido inspirados na visão por Shinran dos cadáveres dos pescadores vitimados pelos naufrágios e lançados às praias de Echigo, na época de seu exílio.

Aqui só podemos nos limitar a essas breves indicações. Essa temática demandaria um estudo mais minucioso e aprofundado.