O CAMINHO DO BUDA

“A nobre verdade da dor, ó monges, é que o nascimento é doloroso”.

Morrer é o destino inexorável de tudo que nasce. Aquele que nasce, ao nascer começa a morrer. O ponto de partida já traz em si mesmo o ponto de chegada. Onde se dá a vida, lá também habita o seu contrário, a morte. Pois não há nascimento sem morte, alvorecer sem poente, primavera sem outono. Em pares complementares de opostos se expõe o Real.

“A doença é dolorosa”.

A finitude acompanha-nos em nossa existência, assim como o sal acompanha a água do mar. Entretanto raramente essa companhia constante é verdadeiramente sentida, autenticamente vivida. A quotidianeidade luta sempre para negar sua presença, fugir de sua verdade, temendo o reconhecimento direto da mortalidade. A doença prenuncia a presença da morte na vida, rompendo as defesas, sacudindo as ilusões protetoras.

“A velhice é dolorosa”.

A sucessão inevitável das estações, experimentada na totalidade do que somos, impõe e dispõe ao mistério e à escuridão de sermos aqui mortais. E se a doença aparece como presságio esporádico da Grande Noite, a velhice deita raízes definitivas, embebendo sempre mais profundamente nossa existência deste saber tão temido e negado. Em sua irreversibilidade radical, presentifica ainda mais claramente nossa temporalidade, ensinando que “Fluindo, fluindo, fluindo, o rio da Existência sempre segue adiante”. (Kobodaishi)

“A morte é dolorosa”.

Iniludível, inadiável encontro final de todo aquele que um dia nasceu, sobrevém sempre avassaladoramente trazendo a afirmação absoluta da finitude. Desvela enfim, com plena certeza, o que já indicavam o nascimento, a doença e a velhice. Desnuda a verdade simples, sugerida em todos os instantes vividos pela inexorabilidade do passar, mas da qual sempre fugíamos: a nossa condição de seres mortais e a  esvanecência de todos os fenômenos. Como as chamas do fogo ardendo na floresta incendiada, assim também fluem todas as formas, passam todos os seres, desfazem-se sempre todas as presenças, consomem-se todas as aparências. Não há, pois, algo que mude; há apenas mudança. Transitoriedade, então, é o elo que une nascimento, doença, velhice e morte.

“A nobre verdade sobre a origem da dor, ó monges, é o apego”.

Apego é o desejo de reter, sustar o fluxo ininterrupto do Real, é o anseio de parar a mutação para não ter de morrer. É negar a realidade da mudança através de uma crescente insensibilização da mente e do coração à percepção do fluir das formas. Vela-se, assim, o conhecimento direto, expontâneo, imediato. Em seu lugar surge uma fantasia estática que, supondo a disponibilidade por tempo indefinido do que existe agora, alimenta uma vivência de pretensa eternidade. Mas nosso barco vai com a corrente do tempo, ainda que viajemos de olhos fechados. Maya, a ilusão, é essa pretensão vã do apego de que sua fantasia de imobilidade possa parar a transformação que é o ser do Real. Um desejo sempre frustrado, ambição sempre impossível, esforço sempre condenado a recomeçar e a fracassar. “Se não acreditas, olha para setembro, olha para outubro. As folhas amarelecidas caindo nos rios como nas montanhas…” (Zenrinkushu)

“Eis, ó monges, a nobre verdade sobre a cessação da dor: é a completa superação do apego”.

O desapego, então, é que faz cessar a dor no nascimento, na doença, na velhice como na morte. E o que é o desapego? É a coincidência da mente e do coração com a mutação em que flui o Real. Experimentando finalmente a transitoriedade tão temida, da qual tanto fugia, deixando ser o passar, mudar, o ser humano descobre o mistério simples do qual nunca se afastara. Encontra a solução do enigma impossível que nunca existiu: aqui e agora nasce a única eternidade possível no mundo das formas, que é também toda a plenitude almejada – o irrepetivel instante presente. Se ao início víamos que a morte habita inexoravelmente a casa da vida, encontramos agora o reverso necessário: na casa da morte habita a vida. Tudo passa, nada permanece, tudo é sempre novo. Em cada instante que fenece, um outro instante desabrocha. O Universo é Poiesis (criação), e o homem é Thaumazein (pasmo). Livre do apego, o existir descobre o extase do momento que sempre, pela primeira e última vez, está sendo. O Buda habita o homem, como o lotus no lodo. Em toda parte se reflete a Terra Pura de Amida, assim como a lua nos charcos, nas poças e no mar. Nada retorna, nada se repete, nada é igual, não há Passado ou Futuro. Flui sempre e só o Eterno rio do Presente. O Todo é sem forma, sem nome, apenas um vasto e luminoso Vazio. Dele surgem os mundos, instantes inefáveis, que Nele também se dissolvem.

“Cada momento é um novo momento”.

  

Shogyo Gustavo Pinto

1975