A MISSÃO CONTEMPORÂNEA DO ENSINAMENTO DA TERRA PURA.

Autor: Rijin Yasuda
Tradutor: Joaquim Antônio Bernardes Carneiro Monteiro
Interrogação e resposta

Seja no que se refere ao “sentido da Terra Pura”, seja no que diz respeito à “missão contemporânea do ensinamento da Terra Pura” , é preciso enfatizar que a Terra Pura é o fundamento doutrinário do Shinshu. Se em função disso , coloca-se de forma renovada sua missão contemporânea, isso significa que o ensinamento da Terra Pura possui uma interrogação intrínseca a respeito de seu sentido no mundo contemporâneo. Está implícita ai a premissa de que existe um distanciamento incomum entre a Terra Pura e seu sentido contemporâneo. Ou seja, existe ai a questão de se o ensinamento da Terra Pura é ou não capaz de responder à realidade do mundo contemporâneo.

Considerada em sua totalidade , a doutrina consiste na resposta a uma interrogação. Quando ela não é mais capaz de proporcionar uma resposta , isso significa que sua missão está terminada. Assim sendo , supondo que exista uma missão do ensinamento , existe necessariamente um sentido em que ele deve responder plenamente à interrogação do mundo contemporâneo. Se não for dessa maneira , ele não estará mais vivo como um ensinamento contemporâneo. A perda completa de sua missão significa a sua morte , mas qual é o sentido da vida e da morte de alguma coisa? No “Capítulo sobre a Terra transformada” se diz que “Já faz muito tempo que se esgotaram a prática e a Realização dos ensinamentos do caminho dos Sábios” , mas se em nossos dias substituirmos os “ensinamentos do caminho dos Sábios” pelo “ensinamento da Terra Pura” , isso se torna em um problema nosso. Que um ensinamento esteja vivo , significa que ele está sendo praticado e realizado. A prática e a Realização constituem-se em respostas. Não se trata de responder apenas de forma teórica , trata-se de responder ao nível da prática.

Que se diga que a”A prática e a Realização dos ensinamentos do caminho dos Sábios” já se esgotou há muito tempo” , não significa que ela tenha se esgotado agora , significa que já está esgotada há muito tempo. Ou seja , isso significa que surgiu uma distância entre a interrogação e a resposta e que já se trata de uma coisa morta. Que uma coisa esteja morta não significa que ela desapareceu transformando-se em cinzas. A morte significa o fim de suas funções. Uma coisa transformada em cinzas pode ser vista como um objeto , mas algo que mesmo ainda possuindo uma forma já não exerça mais sua função está praticamente morto. Ela pode possuir sua forma presentemente, mas suas funções estão paralisadas. Ela já se extinguiu. É esse o sentido de “há muito tempo….”.

Assim sendo , mesmo que se diga que uma forma do Budismo está extinta , isso não significa que a Sangha ou a ordem não possuam mais uma forma. Ou seja , significa que ela perdeu sua função e que ela permanece como uma simples doutrina. Não significa que desapareça a própria doutrina. Significa que ela permanece como uma simples doutrina preservada como um livro na biblioteca. O Budismo considerado como um ensinamento , pode ser como um prédio ou um edifício , mas mesmo que existam pessoas ai vivendo , ele torna-se um objetivo em si mesmo. Que a ordem exista para a própria ordem, ou que se viva para comer ,significa que, mesmo existindo uma forma não existem mais a prática e a Realização , significa que essas pessoas estão vivendo apenas como o formato de sua ordem. Isso significa a morte do caminho de Buda. Nesse sentido , a morte de uma coisa não significa que ela tenha perdido a sua forma , significa que ela tornou-se apenas uma forma. A morte do caminho de Buda pode ser entendida como um distanciamento em relação ao mundo contemporâneo. Significa que o caminho de Buda deixou de se constituir em uma resposta à interrogação contemporânea. Ele passa a se constituir em uma resposta para outra coisa , ou a questões que não são mais colocadas. A extinção significa que surgiu um distanciamento entre a resposta e a interrogação.

A interrogação e a resposta não se dão de uma maneira unidirecional. É possível dizer que a contemporaneidade interroga e que o caminho de Buda responde a essa interrogação , mas não são coisas distintas em sua aparência , a própria interrogação passa a ser submetida a um renovado questionamento. A questão respondida passa ser questionada de forma renovada. Existe dessa forma uma profunda relação. Não se trata apenas do ato de questionar , o próprio questionamento passa a ser questionado de forma renovada a partir do ponto de vista da resposta. Diz-se que o caminho de Buda responde , mas ele não responde da mesma maneira com que uma farmácia proporciona remédios apropriados para cada doença. Que um problema seja questionado , significa que nós mesmos somos questionados em função desse problema. Assim sendo , que os problemas contemporâneos sejam respondidos de uma forma renovada , significa ao mesmo tempo que o próprio caminho de Buda passe por um renascimento e por uma renovação. A relação entre a interrogação e a resposta não é de natureza aparente , ela implica em uma profunda vinculação interna.

Shinshu

O ensinamento de Shinran , ou seja o Shinshu,é chamado de Jôdo Shinshu (Verdadeiro Ensinamento da Terra Pura) , e é desnecessário dizer que a Terra Pura é o fundamento desse ensinamento. Supondo que exista alguma coisa supremamente distante da interrogação contemporânea , a palavra “Terra Pura” é a palavra que designa essa coisa. A Terra Pura é a coisa mais distante da contemporaneidade. A respeito desse problema , quando é colocada uma questão como “a missão contemporânea do ensinamento da Terra Pura” não se trata apenas de uma questão suscitada pela Shinshu Otani-há ,ela está sendo suscitada pela própria contemporaneidade. Não se trata apenas de um fenômeno no interior da Shinshu Otani-ha. A própria palavra “Shinshu” não é um substantivo próprio. Na perspectiva do ensinamento Tendai , a escola Tendai é o Shinshu. Na perspectiva do ensinamento Kegon , a escola Kegon é o Shinshu. “Shu” pode ser considerado um equivalente de “Seita” ,mas é necessário clarificar a distinção conceitual entre esses dois termos. Em nossos dias , é verdade que quando falamos em “Shuha” (princípio-seita) , princípio e seita são vistos como equivalentes.

O Shinshu significa o Budismo fundamental. Também pode ser chamado de “Dharma correto” (Shobô). Como é sabido , no “Shobôrakusan” que se constitui em um dos poemas do “Goehoujisan” do Mestre de meditação Fàzhào (1) existe um trecho que ilustra isso muito bem: “À realização búdica através do Nenbutsu: a isso chamamos de Shinshu”. Esse poema expressa o dharma correto. Dogen Zenji refere-se ao “Shobôgenzo” (“Relicário do dharma correto”). Ele não se refere apenas ao Zen, ele fala do dharma correto. Nós expressamos esse sentido através do termo “Shinshu”.

O Mestre Honen falou a respeito da Terra Pura. Por sua vez, o Mestre Shinran afirmou que é precisamente o Buddhadharma da Terra Pura que se constitui no Verdadeiro fundamento do Buddhadharma. Ou seja, é precisamente a Terra Pura que esclarece o problema do fundamento do caminho de Buda. Em função disso, em sua relação com o caminho búdico, ela não é um fator dispensável que possa ou não existir. Não existe o caminho de Buda sem a Terra Pura. É a Terra Pura que esclarece o problema fundamental do caminho de Buda. A Terra Pura a que se referia o Mestre Honen implicava no Buddhadharma da Terra Pura, significando que é precisamente o Nenbutsu que se constitui no verdadeiro fundamento do Budismo. Podemos dizer simplesmente que esse também foi o empreendimento do “Kyogyoshinshô”. O Mestre Shinran não criou o Shinshu separando-se do Mestre Honen. Através dele foi fundamentado o caminho da Opção pelo Voto Original como se constituindo em um puro Budismo. Responder através disso à transmissão do Mestre Honen tornou-se assim o empreendimento fundamental de Shinran.

Desmitologização

Nós nos referimos ao Nenbutsu , mas é o Nenbutsu que proporciona uma resposta ao problema da Terra Pura. Trata-se aqui da prática e da Realização da Terra Pura. Ou seja , a Terra Pura é o fundamento. No entanto , ela tem se tornado a palavra mais distante , ou até mesmo a palavra supremamente distante. Que surja este problema, deve-se à existência da contemporaneidade. A contemporaneidade existe aonde são questionados os problemas contemporâneos. A contemporaneidade nos conduz ao suscitar dessa questão. Em função disso , vivemos em uma época em que mais do que o Zen , o Nenbutsu, o Budismo ou o Cristianismo é a própria religião que está sendo objeto de um questionamento.

Em função da própria religião estar sendo problematizada , a contemporaneidade mesma é uma época que está sendo problematizada em termos da temática religiosa. Que a religião se torne um problema , significa inversamente que a contemporaneidade é uma época que está sendo problematizada até a profundidade do problema religioso.

Como um exemplo retirado do Cristianismo , ocorreu posteriormente à primeira guerra mundial uma revolução teológica através da figura de Karl Barth. Até os dias atuais, essa revolução determina os rumos da teologia cristã como seu pensamento mais representativo. Ela é vista como uma teologia verdadeiramente contemporânea, mas em oposição a ela, surgiu mais um novo movimento teológico posteriormente à segunda guerra mundial. Ele está de tornando de uma forma incomum no tema central dos debates. Mas nesse empreendimento, é a desmitologização proposta por Rudolf Bultmann que possui o sentido de uma confrontação com o pensamento de Karl Barth. Trata-se da negação da mitologia. É possível que a palavra “desmitologização” dificulte a apreensão de seu sentido. No entanto , considerado em termos de seu conteúdo , trata-se da questão de como aproximar da contemporaneidade a antiga verdade expressa pela Bíblia. Está presente ai o mesmo problema que enfrentamos presentemente. Como é possível aproximar da contemporaneidade a antiga verdade pregada pela Bíblia? Certamente, não será através de um procedimento simplista como a tradução para a linguagem contemporânea. Por exemplo,a tradução para o inglês dos três Sutras da Terra Pura atualmente realizada pelo Honganji: não é possível aproximar a verdade dos três Sutras e a contemporaneidade através de um procedimento simplista como este. Não é possível fazer com que a antiga verdade se torne uma verdade presente através de um procedimento tão simplista como a tradução para a linguagem contemporânea. Em relação ao problema da desmitologização , é possível concluir em última instância que se trata de uma compreensão existencial da Bíblia. A esse respeito , se formos procurar por uma palavra que expresse o estilo do pensamento contemporâneo, é possível dizer que trata-se da reflexão existencial. É precisamente este o estilo do pensamento contemporâneo. Aquilo que não passou pelo batismo do pensamento existencial não pode ser chamado de pensamento contemporâneo. A existência humana nos dias atuais, a existência humana conforme se dá em nossos dias ou a existência humana presente é a existência conforme esclarecida pela reflexão existencial. Como resposta a essa questão , é desenvolvido um empreendimento de superação ou de transcendência dos mitos. Expresso de outra maneira , o mito pode ser entendido como uma palavra morta. Aquilo que já viveu em outras épocas tornou-se no presente em uma palavra morta. Não estaremos necessitando presentemente de uma decisão como esta? Existem diversas palavras como Nenbutsu , Shinjin ou cinco caminhos do mal , mas são todas elas palavras mortas. Palavras como estas não transmitem mais nada. Mesmo que expressas com paixão , não se tem idéia de que palavras sejam estas. Podemos pensar que aonde existe uma paixão existe uma convicção , mas essas palavras não se aproximam de nós. A respeito dessa questão do mito , o mais fundamental de todos é o da Terra Pura. Radica ai o problema.

A desmitologização não significa a pura e simples negação do mito. Significa a sua compreensão existencial. Ou seja , em um certo sentido é precisamente a palavra mais distante que responde ao problema fundamental da humanidade.

O fundamento da existência humana.

Também no que diz respeito ao “Grande Sutra da vida imensurável” entendido como o texto fundamental , o que aparece ai possui um formato mitológico. Mito é uma palavra estrangeira , o equivalente budista é Jataka , ou seja , o relato das existências passadas. (2) Evidentemente, quando falamos de mitos , não estamos nos referindo a estórias para crianças. Trata-se de estórias dirigidas à própria humanidade. O “Grande Sutra da vida imensurável” é pregado sob a forma de um relato das existências passadas que responde à questão da condição humana. No que diz respeito ao conteúdo da pregação , podemos dizer que ele ensina a respeito do Voto Original. O Voto Original que ai aparece é a vida fundamental, esse Voto Original esclarece o fundamento da vida que nos é dada presentemente. Ou expresso de outra forma, também assume a forma de uma estória relativa ao adorno da Terra Pura (Jôdo Shogon). Em si mesmo o Voto não possui um caráter mitológico , mas foi pregado através de uma expressão mitológica. Ou seja, trata-se de um Voto em direção à Terra Pura. Nas palavras de Shan-Tao, consiste nos “quarenta e oito Votos do país originário do Buda Amitabha”. Essa é uma expressão que abarca em sua totalidade o sentido dos quarenta e oito Votos. Pensa-se geralmente que existindo o Voto dele decorrem os adornos da Terra Pura. Ele assume esta forma como uma estória , mas o próprio Voto Original é a Terra Pura. Nesse caso , falamos do “País originário do Buda Amitabha”. Estamos falando do país originário , mas o país é a própria origem. A existência presente é uma existência sem país , aquilo que pensamos ser um país não é um país. Nós não temos um país. Nossa existência presente não possui um país. É nesse sentido que o problema da Terra Pura é o problema fundamental da existência humana.

O fundamento implica em um retorno. No entanto , o retorno é a saída. Ele é chamado de retorno por abarcar a saída. Não se trata apenas de um movimento de ida. O nascimento na Terra Pura significa essencialmente o retorno da humanidade ao seu fundamento. Nos saímos perdendo esse fundamento. Saímos caindo do fundamento. Existe um si mesmo em conflito com o próprio si mesmo. Trata-se aqui do retorno ao fundamento. Expresso de uma forma mais ampla , isso significa o espírito religioso. Fala-se da religião sob diversos aspectos , mas o seu problema consiste na aspiração humana do retorno ao seu fundamento. Isso não se dá no mesmo sentido em que dizemos que um ser humano possui alguma coisa como uma escrivaninha. Não se trata simplesmente da existência de alguma coisa. O ser humano também é um existente , mas possui um sentido que não pode ser dissolvido na existência em geral. Ou seja, trata-se de uma existência capaz de questionar sua missão contemporânea. Trata-se de uma existência constituída pela interrogação a respeito de seu si mesmo. Ela se interroga, e através dessa interrogação descobre-se como uma resposta: em função disso ela é uma existência que desperta para si mesma. Não se trata simplesmente de uma existência no sentido em que um olho ou um nariz existem. Trata-se de uma existência que se constitui como um problema para si mesma.

A Terra Pura é um termo que expressa de forma mitológica esse fundamento da existência humana. Em termos da linguagem do Budismo em geral , existe ai o Nirvana. Ou existem ainda palavras de Shan-Tao como “A suprema alegria incondicionada” ou o “mundo do Nirvana incondicionado”, está escrito nesse contexto o ideograma “Alegria”(Raku). Existe no “Shoshinguê”(Poema da Verdadeira Fé no Nenbutsu) (3) uma passagem que sofreu claramente a influência dessas palavras: “A cidade da serenidade incondicionada”. Miyako significa cidade, mas isso não é o mais importante. Ela pode ser chamada de “morada originária” ou de “país”. Isso se expressa através de termos como a Terra ou o país originários. No entanto, a Terra Pura é adornada através dos quarenta e oito Votos. Mesmo quando falamos da Terra Pura , trata-se do Voto , mas esse Voto é o Voto fundamental. A própria Terra Pura é o Voto. Ela é a essência do Voto. Não existem diversos Votos. O sentido supremo do Voto é simbolizado pelo país. Esse país não existe em um lugar determinado. Ele consiste nos quarenta e oito Votos do Buda Amitabha e possui sua raiz no Voto.

Expresso desta maneira, existe também o problema do Voto. Em minha perspectiva pessoal , existe o termo alemão Wollen e parece-me que este é o melhor equivalente do Voto. Poderemos expressar o Voto Original como Grund Wollen? Ou seja , não se trata aqui da aspiração religiosa? Wollen significa aspiração. Trata-se aqui da suprema aspiração humana. Fizemos menção ao Voto do Tathagatha , mas não existe um Voto do Tathagatha distinto do Voto da humanidade. O supremo e puro Voto da humanidade pode ser expresso desta forma. A isso chamamos de Voto do Tathagatha. Não pode existir um Voto do Tathagatha distinto do Voto da própria humanidade. Se não for assim , ele não será capaz de nos impactar emocionalmente. O Voto Original é expresso de forma mitológica , mas ao transcender a mitologia ele é capaz de nos impactar emocionalmente. A respeito desse impacto , não podemos ser impactados por alguma coisa com que não tenhamos relação.

A preocupação suprema

Nesse caso, torna-se problema o “nós” conforme dito pelas pessoas em geral. No momento em que elas se referem a este “nós”, já estão pensando sobre ele e já o estão objetivando. Nós objetivamos aquilo que não somos , mas também objetivamos o “eu”. Quando falamos de nós mesmos, estamos falando desse “eu”. Assim sendo , podemos falar de “nosso Voto”, mas trata-se de um Voto que é mais próximo de nós do que nós mesmos , de um Voto que se constitui como o nosso fundamento. Trata-se de um Voto que é muito mais próximo de mim do que eu mesmo. É ele que faz com que o “eu” seja ele mesmo. É esse o Voto que ad-vem (Rai) da verdade(Nyo).

Assim sendo , nos referimos ao Tathagatha como um outro quando usamos uma linguagem comum, pensando em um outro em relação à humanidade. Nós pensamos em uma outra existência em relação à existência da humanidade e pensamos que isso seja o Voto , mas se pensarmos em qualquer outro fora de nós , torna-se tudo em uma mitologia. Se pensarmos em mais um outro em relação à nossa própria existência , qualquer coisa desse gênero será um mito.

Não é dessa forma. O si mesmo é esclarecido através de seu próprio fundamento. Em função disso , o Voto Original da Terra Pura também não é uma coisa distinta. Trata-se do interesse supremo da humanidade pela humanidade.

Existe um autor chamado Paul Tillich. Ao mesmo tempo em que possuía um profundo interesse em Karl Barth , também alimentava uma profunda insatisfação em relação a ele. Juntamente com Barth, ele é um expoente da teologia protestante , mas um termo por ele empregado é a “preocupação suprema”(Ultimate concern). Não será esta uma palavra capaz de expressar o Voto?

Conforme já foi dito , o ser humano possui um interesse em relação ao fundamento supremo de sua existência. A esse respeito , não será esse conceito a expressão mais ampla do espírito religioso? Expresso em termos budistas , trata-se possivelmente da “Mente do Despertar”(Bodhicitta). Não será esta uma expressão apropriada? Trata-se aqui da “Suprema Mente do Despertar”. Assim sendo , a “Mente do Despertar” é a “Mente das Fé”(Shinjin) , mas se formos buscar novamente em um nível profundo, veremos que se trata do Voto. A “Mente da Fé” é a Realização do Voto. Aquilo que expressamos, seja como a Fé ou como o Voto consiste precisamente na mesma coisa. De um modo geral , a “Mente do Despertar” é algo que encontramos em nossas profundidades. O Voto é o que aparece quando a “Mente do Despertar” esclarece o seu próprio fundamento. Em função disso , a “Mente do Despertar” realiza-se como a “Mente da Fé”. Nós somos arrastados pelos problemas da vida cotidiana , mas o ser humano não se reduz a isso. Ou seja , a religião esclarece a aspiração fundamental da humanidade. Ela ai se apóia. Essa “Mente da Fé” é aquilo que geralmente chamamos de fé religiosa. Despertamos assim para nós mesmos apoiados em nosso fundamento supremo. Isso é a fé. Em função disso , a humanidade realiza-se pela primeira vez enquanto humanidade.

A direção da humanidade

É importante dizer que a missão do ensinamento da Terra Pura torna-se clara quando compreendemos que a Terra Pura é uma resposta em relação à condição humana. Se formos traçar o percurso dessa questão , a base disso tudo deriva de uma pessoa chamada Scheleiermacher. Que o Budismo possua uma relação com a contemporaneidade é algo que se dá em função dele constituir-se como uma resposta em relação à condição humana. Na proporção em que possua este sentido , a religião aparece como um fator necessário e indispensável na contemporaneidade. Se formos expressar isso em função de uma pessoa que nos é próxima , Manshi Kiyosawa esclareceu o Budismo como uma religião antecipando-se assim ao mundo atual. Ele foi o único pensador existencial que surgiu naquela época. Penso que não é possível compreender de outra maneira o sentido histórico da existência de Manshi Kiyosawa. Ele foi o primeiro pensador existencial a surgir no Japão. Assim sendo, não precisamos recuar até Schleiermacher. Respondendo de forma suprema à interrogação da humanidade , podemos reduzir o distanciamento em relação à nossa época. Torna-se assim possível a superação desse distanciamento. A condição humana é extremamente complexa. Nada existe que não seja humano. Os seres humanos não tem interesse em nada que não seja humano. Assim sendo , supondo que a religião exista , ela implica em uma busca pelo fundamento da condição humana. Penso que surge ai pela primeira vez uma direção para a humanidade.

O Voto constitui o ser humano como uma existência religiosa. Quando ele entra em conflito com esse Voto, surge pela primeira vez um direcionamento para a humanidade. Dizem que a Terra Pura existe na direção Oeste , mas na Terra Pura considerada em si mesma não pode existir oeste nem leste. O leste e o oeste não possuem um caráter supremo. Eles são unidirecionais. Não pode existir leste nem oeste na Terra Pura em si mesma. Aquilo que possui uma direção não pode ser supremo. Podemos dizer apenas que a direção do ser humano estabelece-se em função de apoiar-se nessa preocupação suprema. A Terra Pura não existe na direção Oeste. Isso diz respeito à direção da humanidade. O direcionamento para o Oeste existe na condição humana. Trata-se da direção assumida pelo ser humano apoiado pela aspiração religiosa. A condição humana que não se apóia na preocupação suprema não possui qualquer direção. Trata-se aqui de uma condição humana sem direção. Penso que podemos possuir uma direção mesmo sem nos apoiarmos em uma preocupação suprema , mas essa direção não possui um caráter supremo. Vista sob a perspectiva da preocupação suprema , a direção não suprema aparece como uma ausência de direção. Trata-se de um passo à frente seguido de um passo atrás. Por exemplo , pensamos que a guerra ou a paz se constituam em uma direção , mas considerada pelo ponto de vista da direção suprema isso nada mais é do que uma ausência de direção. Trata-se aqui de um passo à frente seguido de um passo atrás. O progresso , o retrocesso , a civilização ou a barbárie não são direções. São uma pura e simples estagnação. Não é possível dizer que a direção da humanidade estabeleceu-se através da passagem da barbárie em direção à civilização. Considerado sob o ponto de vista do fundamento supremo , não se avançou um passo que seja. Isso não é progresso nem coisa alguma. Trata-se de um passo à frente seguido de um passo atrás. Ou de um direcionamento sem direção. Podemos dizer que a angústia é a perda da direção. Trata-se de uma mente angustiada. Existe aqui uma característica própria ao pensamento contemporâneo como um pensamento existencial. Nessa característica do pensamento existencial contemporâneo , existe um importante conceito que é o conceito de angústia. Esse conceito deriva de uma pessoa chamada Kierkegaard , mas constitui-se na atmosfera contemporânea. No esclarecimento desse conceito de angústia , existe a referência ao conceito de temor(como por exemplo, o temor derivado da crise econômica), mas se pensarmos em termos de sua diferença torna-se fácil esclarecer esse conceito de angústia. Seres humanos sentem temor em relação aos problemas de caráter não supremo. Existe por exemplo temor em relação à direção da vida cotidiana. No entanto, esse temor não está simplesmente circunscrito a si mesmo , ele possui uma raiz. Essa raiz é a angústia. A angústia existe na base do temor. A Terra Pura quando compreendida em sua relação com a auto-consciência humana aponta para a superação da angústia. A posse da Terra Pura expressa a superação da angústia. Em função disso, ela é chamada no Budismo de “Mente serena”. Os conceitos de Terra Pura e de “Mente serena” não são conceitos sem conexão. Não é possível realizar a serenidade da mente sem a Terra Pura.

A Mente serena

Conversei a respeito de diversos aspectos desse conceito de “Mente serena” quando visitei Daisetsu Suzuki no ano passado,ao retornar do encontro com Paul Tillich. Nesse momento , senti no diálogo com estrangeiros a respeito da fé religiosa que a conversação parece desenvolver-se em uma direção satisfatória, mas que em um determinado momento perdemos contato com a questão em pauta. Refletindo a respeito disso , senti que existe um conteúdo específico no conceito budista de fé. Trata-se aqui do conceito da “Mente serena”. A fé é a “Mente serena”, a “Mente da Fé” é a mente serena. No entanto , parece que não é bem assim no caso dos estrangeiros. O diálogo a respeito da “Mente serena” pode iniciar-se através de certos procedimentos , mas não se trata ai da “Mente serena”. Em função disso, perdemos o ponto em pauta quando o diálogo adentra em sua fase posterior. Em função disso, eu disse para Daisetsu: “essa expressão “Mente serena” não terá vindo da China? No caso do Shinshu , a palavra “Mente serena” considerada como um termo técnico claro e distinto parece ter-se originado com o Grande Mestre Shan-Tao. Ele refere-se à prática , à Mente serena e à atividade. Essas expressões esclareceram o sentido da “Mente serena” através das três mentes do “Sutra da contemplação da Vida Imensurável”. Tornou-se ai em um termo técnico extremamente claro e rigoroso. No entanto , penso que talvez tenha sido assim em suas origens,mas o Zen transmitido por Bodhidharma era chamado de “Portal do dharma da Mente serena” (Anjin Homon). Penso que na China talvez se tratasse de um termo técnico comum ao Zen e ao Nenbutsu.

O Zen esclarece a “Mente serena” em seu aspecto da Realização. O Shinshu esclarece essa “Mente serena” como a Fé. Podemos dizer que a Realização é o fim e a Fé o início , mas não se trata aqui de um simples início. Trata-se de algo que inicia a partir do fim na medida em que a Realização tem seu ponto de partida na Fé. O Zen esclarece a Realização , mas essa Realização nos é dada através da Fé. A Realização já está completa na Fé. Não se trata de ir da Fé para a Realização, a Fé já consiste na Realização. Esclarece-se aqui a “Mente serena” em função da Fé. Acredito que as coisas tenham se dado desta forma.

Disse que essa expressão “Mente serena” apareceu na China , mas seria muito sério dizer que ela não existe no Budismo Mahayana indiano. Não pode existir Budismo sem a “Mente serena”. Nas palavras do “Tratado da transmutação da pura consciência” existe a expressão “A mente que habita na natureza do dharma”. “Habitar” significa aqui a serena habitação , o sereno habitar da mente na natureza do dharma. A Mente da natureza do dharma é um conceito importante na doutrina do “Tratado da transmutação da pura consciência”. A mente da natureza do dharma significa aqui a característica verdadeira de todos os dharmas. Em Nagarjuna ela é chamada de natureza do vazio. Seja no que diz respeito ao Prajnaparamita ou ao Yogacara , trata-se do conceito fundamental do Budismo Mahayana. “Habitar na mente da natureza do dharma”, isso é a “Mente serena”. A Terra Pura é a mente da natureza do dharma. Ela é realizada pela primeira vez através da mente da natureza do dharma. Nesse momento, a mente é a consciência , a consciência que retornou a si mesma. Essa é a “Mente serena”. Assim sendo , no Shinshu esse conceito de mente é abordado através das três mente e da “Mente indivisa”, mas não devemos pensar psicologicamente esse conceito de mente. Para que a mente possa retornar a si mesma , ela precisa romper consigo mesma. A “Mente serena” que resulta do retorno da mente a si mesma não é pura e simplesmente uma mente. Ela é melhor compreendida como sabedoria. Transmutando a consciência , realizamos a sabedoria. A mente é a consciência , mas quando ela retorna a si mesma ela já não é mais uma consciência. Trata-se aqui da sabedoria. A sabedoria retorna à consciência. Nossa consciência está sonhando. À consciência desperta desse sonho , chamamos de sabedoria.

No mundo da consciência não existe uma mente absolutamente serena. O mundo que vivemos atualmente e em que os problemas surgem e se expandem é um mundo que surge da consciência. Quando nos interrogamos a respeito do que é o mundo da consciência , podemos dizer que se trata do mundo da razão. Em seu interior existe o si mesmo , em seu exterior existe o mundo. É uma consciência que se reflete. A relação entre o si mesmo e o mundo é extremamente tensa , da mesma forma com que o é a relação entre o indivíduo e a sociedade. Em um pensamento atravessado por essa tensão , se não se desenvolver um dos termos da equação , o outro também não pode se estabelecer. Ao mesmo tempo , eles se relacionam um com o outro mantendo sua independência. Se o outro termo não existir, essa relação não se estabelece , mas ao mesmo tempo um não pode ser absorvido no outro.

Essa é a base da estrutura do mundo. Trata-se aqui de um reflexo da consciência. Assim sendo , aparecem o sujeito e o objeto em nossa consciência. Em função disso , ocorrem diversos problemas. Em função dessas consciências , a mente não pode repousar em si mesma. A Terra Pura como representação da consciência é uma Terra provisória e expediente. Trata-se aqui de uma utopia. O fundamento do si mesmo é representado aqui como uma utopia. A “Mente serena” não tem consistência nessa dimensão. A existência é a superação da consciência. Se nos interrogarmos a respeito do aspecto mais fundamental da consciência contemporânea , ou a respeito do ponto de partida de nossos dias , podemos dizer que ele tem seu ponto de partida em Descartes. Trata-se aqui do Renascimento. Descartes clarificou a modalidade da consciência da humanidade moderna. Ela consiste no “penso, logo existo”. Enquanto permanecer nessa estrutura , o ser humano não conhecerá a serenidade. O “penso, logo existo” é a consciência da modernidade. A cultura nascida desta consciência foi completamente instrumentalizada pelo capitalismo. O sistema da instrumentalização da consciência contemporânea surgiu assumindo a forma da trindade da economia , da ciência e da tecnologia. Se não for possível romper com ela , a humanidade não conhecerá a serenidade. Assim sendo , trata-se de superar o capitalismo existindo em seu interior. Se não for dessa maneira , não se estabelecerá a serenidade na mente da humanidade contemporânea. Enquanto pensarmos a Terra Pura dentro dos limites da consciência capitalista , ela será apenas uma utopia. Ou então , se constituirá em um puro e simples sentimentalismo. Não é simples desfazer essa situação. No entanto , o capitalismo pode ser uma imensa construção , mas seu fundamento está na consciência. Ou na auto-consciência. O capitalismo pode ser uma construção imensa , mas sua base é extremamente frágil. Na ruptura com essa base existe o repouso da mente na natureza do dharma.

Assim sendo , na escola Zen essa mente foi expressa por Huike através da seguinte solicitação em seu encontro com Bodhidharma: “pacifique a minha mente!”. Em relação a isso , Bodhidharma respondeu: “traga-me sua mente que eu a pacificarei!”. No entanto , ao procurar pela mente , ela mostrou-se inatingível. Nesse momento, disse Bodhidharma: “então , ela já está pacificada!”.

Eu disse que a mente é inatingível. Se por ela buscarmos ela se mostrará inatingível , se a situarmos do lado de lá e a procurarmos ela nos parecerá inatingível , mas as coisas não são assim. É dito que é inatingível. O inatingível é a mente da natureza do dharma. Essa natureza já superou a consciência. É a mente , mas supera a mente. Se não fosse dessa forma , não seria possível repousar na serenidade.

Existem muitas outras coisas a que gostaria de me referir , mas como já estamos na hora vamos parar por aqui.

 

Notas.

  1. 1)Mestre da escola da Terra Pura do período posterior da Dinastia Tang na China. (N.T)
  2. 2)O termo Jataka é geralmente entendido como significando os relatos mitológicos das existências passados do Buda Sáquia-Muni. Como no pensamento do Professor Yasuda essa literatura e o mito do Bodhisatva Dharmakara que nela se baseia são desmitologizadas como símbolos da “Oitava consciência”(Alaya-vijnana) da escola Yogacara, existe aqui mais uma acepção do conceito de Jataka como existência fundamental. Ou seja , como a subjetividade fundamental dos seres sencientes.(N.T)
  3. 3)Poema que aparece no final do segundo Capítulo do Kyogyoshinshõ do Mestre Shinran. Tradicionalmente , é empregado como a base da liturgia no Honganji. (N.T)