O Primeiro Rebelde Budista

O Primeiro Budista Rebelde

Shinran, o fundador do Budismo Shin, rompeu com a tradição japonesa para iniciar uma religião de igualitarismo radical que disponibilizou os benefícios do budismo a todos.

Em Mente Zen, Mente de Principiante Shunryu Suzuki disse aos estudantes Norte Americanos convertidos para que o seu caminho de sua prática seja o ‘nem de leigo nem o  de monge’, um estilo de prática quase monástico, mas sem o apoio tradicional de uma sangha leiga ou patrocínio de ricos.

Mesmo enquanto seguiam a prática budista, os alunos tinham que atender às exigências da vida leiga: manter empregos, amizades, compromissos familiares e todo o resto. Este modelo de “base-central”’ é algo que praticamente todas as comunidades de práticas têm trabalhado desde então.

O que não é tão conhecido é que o modelo de Suzuki de ‘nem leigo, nem monge’ vem de outro mestre anterior: Shinran (1173-1262), uma das figuras mais célebres do budismo japonês.

Shinran foi o fundador de Jodo Shinshu, ou Budismo Shin, como é conhecido em inglês –  corrente japonesa da tradição da Terra Pura que se originou na Índia e veio a abranger um enorme número de praticantes do leste asiático. O Budismo Shin apareceu pela primeira vez no Ocidente no final do século 19, e o professor, escritor e tradutor D. T. Suzuki, mais conhecido por suas obras sobre o Zen, escreveu extensivamente na década de 1960 sobre a tradição Shin; porém suas práticas, incluindo cantar o nome de Buda Amida, agora que estão se tornando amplamente reconhecidas na América do Norte entre os budistas convertidos.

Antes de Shinran, grande parte do budismo na Ásia se inscreveu em uma hierarquia clara que situava Monges acima dos leigos. Shinran rompeu com esta tradição de duas maneiras distintas: Ele foi o primeiro Monge japonês ordenado a se casar abertamente, e também foi o primeiro a agir como Monge e simultaneamente morava como um homem de família, vestindo as roupas [de Monge] e ensinando os leigos, mas absolutamente se recusando a viver nos templos. Ao revisar a sua própria vida, ele declarou: ‘Eu não sou nem um monge nem um leigo’. Suas inovações em estilo de vida e status religioso abriram caminho para o igualitarismo radical do Budismo Shin, o que não considerava a vida leiga como um impedimento para a realização religiosa e permitiu que as mulheres fossem totalmente ordenadas antes de muitas outras escolas. Era um caminho que revelaria possibilidades para o desenvolvimento contínuo do Budismo no Ocidente.

Como os seus contemporâneos, o mestre zen Dogen (1200-1253) da Soto-shu [Escola Soto] e Nichiren (1222-1282) da Nichiren-shu, Shinran começou sua carreira como Monge no Monte Hiei, sede da dominante escola Tendai. Todos os três vieram da ordem eclesiástica de Tendai, envolvida com a corrupção, com muitos monges que procuravam riqueza e fama, escondiam suas esposas e namoradas, além de excluir as mulheres do recinto sagrado do Monte Hiei.

Em 1203, Honen (1133-1212), um monge que havia rejeitado recentemente as autoridades do Tendai, estava ensinando um novo caminho de prática da Terra pura em que os leigos e os ordenados eram vistos como iguais no caminho espiritual. Esta prática poderia ser praticada por qualquer pessoa, seja por um membro comum da sociedade, casado e com família ou como renunciante celibatário. Tudo o que o caminho exigia era a prática do Nembutsu, cantando o nome de Buda Amida, ‘Namu Amida Butsu’. Através desta prática, Honen ensinou, que somoss plenamente abraçados pela Compaixão Ilimitada.] Duas décadas em práticas monásticas na seita Tendai, Shinran teve dificuldade em acreditar que tal caminho funcionaria. Para alcançar a libertação, não é preciso renunciar a este mundo, desapegar-se de tudo e completar um difícil caminho de prática? No entanto, antes de abandonar as doutrinas oficiais da Escola Tendai, Honen tinha sido uma das monges mais respeitadas de seu tempo, então Shinran sentiu que poderia haver alguma validade nessa nova abordagem.

Shinran sobre a Grande Confiança

“Quando se contempla o grande Oceano da Fé, ele não escolhe entre o rico e o pobre, não há nada para ser masculino ou feminino, velho ou jovem, não há karma mau pequeno ou grande, não há o peso da duração da prática, não há distinção de práticas relativas e boas práticas, súbita ou gradual, meditativa ou não meditativa, ortodoxa ou heterodoxa…  mas apenas a Verdadeira Confiança, inconcebível, inexplicável, inefável” – Kyogyoshinsho

Aos 29 anos, Shinran entrou em um retiro intensivo em Rokkakudo, um templo em Kyoto, na esperança de receber algum tipo de visão ou insight iluminador. No início do 95º dia de seu retiro de 100 dias, Kannon, o Bodhisattva of Compaixão (Avalokiteshvara), apareceu em um sonho e disse: ‘Se o seu Karma deve levá-lo a transgredir o preceito de encontro a uma mulher e se juntar a ela, então eu me juntarei a ela como uma jóia, adornarei sua vida e, eventualmente, levarei você para a Terra Pura ‘.

Despertando deste predição do sonho, Shinran estava convencido da verdade sobre o modelo ensinado por Honen, tornou-se último discípulo, e entrou no caminho do ‘Namu Amida Butsu’. Como outros paradigmas de prática única, como o zazen de Dogen e o Daimoku de Nichiren (recitação do título do Sutra de Lotus), o caminho do nembutsu de Shinran fora focado como uma prática central e acessível.
Honen e Shinran, no entanto, não receberam sanção oficial para ensinar este novo caminho da prática da Terra pura. Eventualmente, Honen, Shinran e outros líderes do movimento recém-surgido foram processados ​​como Monges fora da lei, tinham seu status de monges ordenados revogadas, receberam nomes de leigos e foram exilados para o campo rural. Dois desses Monges foram executados, tendo sido acusados ​​de quebrar seus votos com damas da Corte [Imperial]. Eventualmente, quando as situações foram esquecidas, Honen, Shinran e outros foram autorizados a retornar, mas por essa altura Honen estava idoso e mal [de saúde]. Ele faleceu dali a um ano.

Shinran, entretanto, sentiu que os fazendeiros, os pescadores e os marginais que ele encontrou no campo eram mais genuínos e com os pés no chão: abriram seus corações ao caminho do nembutsu, da compaixão ilimitada de Amida; mais prontamente do que muitos dos aprendizes, dos hipócritas do clero que pareciam preocupados com pequenas rivalidades burocráticas e os privilégios do poder. Ele decidiu não voltar para Kyoto. Os próximos 30 anos, Shinran viveu e trabalhou entre os camponeses; ele nunca mais morou em um templo. Ele se casou com uma mulher chamada Eshinni, e eles se tornaram parceiros no ministério e na vida, criando sete filhos juntos. Ela [Eshinni] já tivera um sonho que refletia o próprio Shinran: em seu sonho, Shinran era uma encarnação de Kannon, assim como ela mesmo havia cumprido a predição do sonho de Shinran no qual ele encontraria a mulher que emanaria Kannon.

O pensamento de Shinran continuou a informar o budismo no Japão e além, com conceitos como paixões cegas, ser tolo e compaixão ilimitada, tornando-se parte do vocabulário da língua inglesa da prática budista Shin no Ocidente. No budismo Shin, a pessoa presa nas próprias criações de sua mente, é pega devido a suas próprias ‘paixões cegas’ (bonno em japonês). As paixões e os desejos, como palavras e conceitos, não são negativos em si mesmos. É somente quando ficamos obcecados com nossas idéias sobre o que pensamos que somos ou devemos ser que ficamos cegos à realidade diante de nós. Assim como o amor deve ser desdobrado e não pode ser forçado, nossa experiência mais ampla de vida e morte pode realmente se desdobrar apenas na liberdade do encontro mútuo entre nós e o mundo, quando não somos mais cegos por nossa vontade de forçar as coisas a um modelo que foi preconcebido em nossas mentes.

Uma das chaves do pensamento de Shinran reside no fato de que ele viu todos os seres sujeitos a paixões cegas, incluindo monges e monjas budistas ordenados. Ninguém está totalmente livre das paixões cegas. Ninguém está provido do potencial para realizar a libertação dos seus laços. O encontro com a realidade, a realização do vazio, é descrito no budismo Shin como o abraço da compaixão ilimitada (japonês, mugai no daihi; muen no ji). Embora o vazio, além de todas as distinções, seja sem forma e sem caráter, a experiência de libertação do sofrimento de nossas paixões cegas para o vasto oceano do Vazio, é no entanto, experimentado como uma realização positiva, o que Shinran chama de entrada no ‘oceano da Luz Ilimitada’ (kokai) de grande compaixão. A compaixão traduz adequadamente o termo budista japonês jihi, como o primeiro vem do latino com ‘com’ e paixão, ‘sentimento’. Assim, a ‘compaixão’ é ‘sentir com’ o fluxo da realidade, uma compaixão sem limites porque está além da categorização, inefável, inconcebível.

Aquele que está cheio de paixões cegas é chamado de ‘ser tolo’ (japonês, bonbu), e a encarnação da compaixão ilimitada é Buda Amida. Paixão cega e compaixão ilimitada, ser tolo e Buda Amida: são termos de despertar na vida religiosa diária do Shin Budista de Shinran. Além disso, esses opostos são capturados na prática central do budismo Shin, dizendo ou cantando o nome de Buda Amida na forma da frase ‘Namu Amida Butsu’, que significa ‘eu confio ao despertar da Luz Infinita’.
O nembutsu é derivado do Sânscrito Namo Amitabha Buda. Namo é o mesmo que ‘namas’ da saudação sul-asiática ‘namastê’, ‘eu me inclino à você’. Na prática da Terra pura, ‘Namo’ ou ‘Namu’, ‘eu me curvo’, é uma expressão de humildade profunda, naturalmente, a partir da consciência de si mesmo como um insensato cheio de paixões cegas. O nome do Buda Amida vem do Sânscrito Amitabha, que significa o ‘Buda da Luz Infinita’ (alternadamente, Buda Amitayus, ‘Buda da Vida Infinita’). No entanto, uma vez que a compaixão ilimitada sempre está se desdobrando e nunca é estática, a representação mais precisa é ‘o despertar da Luz Infinita’. Assim como muitas vezes experimentamos uma escuridão palpável quando estamos preocupados e um sentimento de clareza ou iluminação quando somos liberados de nossas preocupações , a realização do vazio / unicidade vem a nós como um vívido senso de Luz Ilimitada: nos tornamos mais conscientes da presença da natureza ao nosso redor, como as sutis flores que crescem à beira da estrada.

Nós nunca podemos nos livrar completamente das paixões cegas, no entanto, enquanto vivermos nesta mente e corpo limitados que chamamos de ‘eu’. Em qualquer momento de libertação de nossa prisão do ego, podemos sentir o ímpeto profundo para nunca mais reclamar novamente, nunca mais prejudicar os outros. E ainda assim nos queixamos; ainda assim prejudicamos. No entanto, uma vez que fomos despertados para a ação da compaixão ilimitada de Amida, cada momento de ignorância e paixão cega torna-se outra oportunidade de obter uma visão e aprender de novo, e ao longo do tempo nossos apegos começam a suavizar e liberar-se um pouco mais facilmente. No Budismo Shin, valorizamos muito as nossas paixões cegas como a própria fonte de nossa própria sabedoria e compaixão.

No ritmo diário da vida do nembutsu, de dizer ou cantar ‘Namu Amida Butsu’, os momentos mais pequenos de reflexão e apreciação possuem tanto significado como as grandes realizações. Se estamos conscientes no momento de dizer ‘Namu Amida Butsu’ ou não, nossa vida se transforma ao longo do tempo por estar mergulhada na totalidade do Dharma, através da audição dos ensinamentos, bem como cânticos, prostrações e outras práticas corporais. Assim, ao ver uma planta começar a murchar, lembro-me da minha tolice em esquecer de fornecer água ao ser que me dá beleza, ar fresco e brota nova vida. Ao ouvir o meu gato miar, volto para olhar meu relógio, visto que em minhas preocupações eu esqueci da sua comida.

Se somos leigos ou ordenados, mulheres ou homens, é somente através do reconhecimento de nossos erros que aprendemos e crescemos. Nossas paixões cegas são como fertilizantes para o campo de nosso próprio desenvolvimento espiritual, como paixões cegas e compaixão ilimitada andam de mãos dadas: quanto mais nos tornamos conscientes da nossa loucura, maior será a iluminação da compaixão ilimitada; quanto mais profundamente entramos no oceano da compaixão ilimitada, mais percebemos como nos afogamos em nossa própria loucura. É um processo pelo qual estamos iluminados e imersos na Luz do oceano da grande compaixão de Amida. Ao cantar o Nome de Amida, a mente verdadeira, real e sincera de Amida torna-se una com a mente do seguidor através da ação da compaixão ilimitada. Shinran viu-se como o ser mais tolo de todos e chamou-se de ‘Gutoku Shinran’, que significa, literalmente, ‘Shinran, o tolo tonsurado’. Suas vestes não eram tanto um sinal de realização religiosa, mas sim um reflexo de sua auto-representação como um tolo recebendo o dom da compaixão ilimitada.

Esta é uma mensagem universal com a qual qualquer pessoa pode se relacionar. Mesmo os mestres budistas mais bem sucedidos são, no entanto, humanos, têm fraquezas e limitações e estão sujeitos a erros e a falibilidade humana. Assim, entre os seguidores do caminho de Shinran do budismo Shin, havia monges formados, bem como camponeses analfabetos, e certamente alguém poderia ver um mestre mais adiante no caminho budista do que um mero leigo. No entanto, Shinran viu as coisas um pouco diferente. Enquanto a norma é ver o monástico formado bem avançado no caminho, Shinran viu seus seguidores leigos, muitos deles camponeses analfabetos, iguais ou mesmo superiores aos monges de sua época. No que é talvez a passagem mais famosa do Tannisho, um registro das palavras de Shinran feitas por seu seguidor Yuien, Shinran é citado dizendo:

“Mesmo uma boa pessoa atinge o nascimento na Terra Pura [a realização do reino do vazio], quanto mais a pessoa doente [que está sobrecarregada com o peso kármico das paixões cegas].

Mas as pessoas do mundo constantemente dizem: ‘Mesmo a pessoa má atinge o nascimento, quanto mais a pessoa boa’. Embora isso possa ser falado à primeira vista, isso vai contra a intenção do…  Outro Poder. A razão é que, uma vez que a pessoa de auto-poder, sendo consciente de fazer o bem, não tem o pensamento de confiar seu eu completamente ao Outro Poder, ele ou ela não é o foco de [compaixão ilimitada],… de Buda Amida. Mas quando o auto-poder é removido e confia-se no Outro Poder ocorre, que a pessoa atinge, [ou percebe] a Terra da Verdadeira Recompensa [a Terra Pura do Vazio].”

Esta afirmação traz um significado universal. A condição humana, tem o karma de querer se identificar com o ‘bem’ e evitar ver o ‘mal’, ou com o potencial para o mal kármico dentro de si. No entanto, procurar se apresentar sempre como ‘bom’ é ser apanhado no funcionamento do ego, ou o que Shinran chama de ‘auto-poder’, impedindo que se abra ao desdobramento espontâneo da Natureza de Buda, A Grande Compaixão, o que Shinran chama ‘Outro Poder’ é ‘diferente do ego’. A declaração de Shinran ‘quanto mais a pessoa doente’ também traz crítica específica de seus contemporâneos, Monges Formados que presumem ser especialistas em budismo, mas exibem seu status social e privilégio, em contraste com os agricultores e os povos comuns que carecem de tais pretensões e estão em maior harmonia com os ritmos da natureza, que possuem muito pouca riqueza material e devem viver em constante consciência de impermanência. O ponto sutil aqui é que o budismo é uma prática corporal primeiro, em que se fala o nembutsu em voz alta. Então o coração pode abrir e a mente pode seguir, mas somente se alguém é suficientemente humilde e livre da necessidade de possuir e o desejo de controlar o mundo através do intelecto.

Shinran definiu dois momentos-chave no arco do caminho do nembutsu: shinjin, confissão verdadeira, como o momento de Realizar Compaixão Ilimitada, e ojo, nascimento na Terra Pura, que vem ao final da vida. Há um paralelo com a história do Buda histórico Shakyamuni: sua conquista do nirvana aos 35 anos e sua entrada no parinirvana, repouso completo, aos 80 anos. Esses dois momentos também são conhecidos como ‘nirvana com resíduo’ versus ‘ nirvana sem resíduo ‘, onde o que ‘resta’ ‘denota o resíduo do karma que permanece ao viver essa vida finita. Perceber a verdadeira confissão é ser iluminado, abraçado e dissolvido na grande Luz da Infinita Compaixão de Amida, mas é apenas no fim da vida, entrando na Terra Pura além da concepção, que é totalmente liberado dos laços da existência . Mesmo assim, a promessa budista do Shin é parar pouco a pouco e retornar a este mundo para completar a jornada  de bodhisattva da libertação universal em serviço aos outros.

Shinran sobre ter um Coração Honesto:

“Aqueles que nem conhecem os personagens

para o bem ou para o mal,
Todos têm corações honestos e reais.
Aqueles que fingem saber o que é bom e ruim
estão apenas apresentando um show.
Não sei o que é realmente errado ou certo, ortodoxo ou heterodoxo.
embora sem a menor misericórdia ou compaixão,
Eu quero ser reconhecido e ensinar os outros.”

Enquanto alguns podem experimentar um ótimo momento de realização, semelhante à realização do nirvana pelo Buda, outros podem experimentar uma série de momentos menores que não são menos significativos. Aqui há uma certa semelhança com a prática koan do Rinzai Zen, a série de problemas não-lineares que o praticante deve passar. Alguns experimentam um grande avanço, alterando a vida, seguido de realizações menores que ajudam na maturação; outros experimentam uma série de realizações menores que pontuam um processo de aprofundamento do despertar. Grande ou pequeno, pequeno ou grande, cada momento é incomparável como uma expressão do despertar da Luz Infinita.

Esta é a nossa dança com a realidade e conosco, o ritmo e a música de ‘Namu’, em nossa tolice e ‘Amida Butsu’, como a fonte da compaixão ilimitada que surge da nossa realidade mais profunda e verdadeira. Em última análise, mesmo o nembutsu não surge de nós mesmos, de nosso próprio ego, mas é experimentado como um chamado do nível mais profundo da realidade, das profundezas de nosso próprio ser, em que o fluxo do vazio ou unidade é realizado em cada manifestação de forma e aparência. Assim, Shinran afirma: ‘A verdadeira confissão é a Natureza de Buda’. O movimento da compaixão ilimitada também é conhecido como o Voto Original de Amida (japonês, Amida no hongan), o voto de levar todos os seres à realização da unidade, surgindo espontaneamente das profundezas da existência. O nembutsu expressa nosso recebimento deste voto profundo para libertar e perceber a unidade com todos os seres, porque todos os seres são o eu. É uma expressão de profunda gratidão, que nossas vidas são sustentadas na maior rede de interdependência. Nós somos sustentados por aqueles que ajudam a prover nosso meio de vida, comida, abrigo, família e amizades, e em um nível mais profundo, somos naturalmente movidos a expressar nosso apreço pelo sofrimento compartilhado na vida e na morte, nossa iluminação mútua na loucura e compaixão , nossa unidade no caminho que nos leva além da vida e da morte. Este é Namu Amida Butsu.

A declaração de Shinran ‘Eu não sou nem monge nem leigo’ vem no final de seu trabalho principal, o Kyogyoshinsho (Tratado de Ensino, Prática, Confissão Verdadeira e Realização). É uma declaração histórica, descrevendo as circunstâncias de seu professor e ele próprio no sofrimento: exilados, defraudados, mas ainda ensinando no campo. É também uma declaração filosófica em consonância com a dupla verdade, com o vazio como base da realização religiosa que está além de todas as categorias, leigo e ordenado. Em última análise, é a própria auto-expressão de Shinran como um ser tolo: ‘Não sou qualificado para ser considerado um bom monge ou um bom leigo’.

O igualitarismo de Shinran está enraizado na realização da unidade profunda com todos os seres. É radical na sua inclusão, além das palavras e na profundidade da autoconsciência. Qualquer crítica feita aos seus contemporâneos na vida monástica, bem como o seu apreço por camponeses e pescadores, veio de um lugar de inclusão em que Shinran se viu como o maior dos tolos. Em um momento de grande turbulência social e política, ele expressou suas críticas e defesa semelhante de um lugar de grande compaixão. Talvez haja algo de valor nisso ao qual possamos considerar hoje.
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Mark Unno é Professor  Associado da cátedra de Budismo do Leste Asiático no Departmento de Estudos da Religião na Universidade de Oregon e o autor de  Shingon Refractions: Myoe and the Mantra of Light.  Ele mora em Eugene, Oregon.

 

“The Original Buddhist Rebel,” by Mark Unno, originally published in the Winter 2017 issue of Tricycle: The Buddhist Review, vol. XXVII, no. 2. www.tricycle.org.

NOTA: Este artigo foi publicado originalmente na Tricycle: The Buddhist Review, vol. XXVII, no. 2 e foi traduzido e publicado com autorização do autor e da editora da revista. A reprodução é consentida desde que citada ambas as fontes, do texto original e desta tradução.