NOTAS SOBRE O SHOSHINGE – 20

Reverendo Prof. Dr. Ricardo Mário Gonçalves


Tao-ch’o assegurou ser difícil o iluminar-se através do Caminho dos Sábios,

Esclarecendo que só o Caminho da Terra Pura nos é viável.

Rejeitou a prática de milhares de ações meritórias alicerçadas no próprio poder

E nos exortou à recitação exclusiva do Nome Pleno de Virtudes.

Instruiu-nos bondosamente sobre os três aspectos da fé imperfeita e perfeita,

Com compaixão orientou igualmente os seres das Eras da Imagem, da Decadência e Extinção do Dharma.

Ensinou-nos que, mesmo praticando o mal durante a vida inteira, se encontrarmos o Voto Universal e nele crermos,

Alcançaremos o Mundo do Sereno Cultivo e realizaremos a Maravilhosa Fruição.

 

 

1. Considerações Gerais: Aqui é exposta a doutrina do Patriarca Tao-ch’o (562-645), com ênfase na distinção entre o Portal do Caminho do Sábio (jap. Shôdômon) e o Portal do Caminho da Terra Pura (jap. Jôdomon); é apresentada também a visão da História própria da Tradição da Terra Pura, centrada no conceito de decadência progressiva do Dharma.

 

2. Questões de Vocabulário:

2.1. Tao-ch’o (jap. Dôshaku) = O Quarto Patriarca do Budismo Shin, o segundo de nacionalidade chinesa.

2.2. Caminho dos Sábios (jap. Shôdô) = Também chamado o Portal do Caminho dos Sábios, é, segundo Tao-ch’o, o Caminho da Realização através do Poder Próprio (Jiriki) característico da maior parte das Escolas Budistas, em oposição ao Portal da Terra Pura, Caminho de Realização através do Outro Poder (Tariki) do Voto Original do Buda Amida.

2.3. Nome Pleno de Virtudes = o Nome Sagrado do Buda Amida, cuja recitação é oNembutsu.

2.4. Os três aspectos da fé imperfeita e perfeita (jap. Sanpusanshin) = Os três aspectos da fé perfeita ou pura são: 1- Pureza (jap. Junshin); 2- Unicidade (jap. Isshin); 3- Continuidade (jap. Sôzokushin); os três aspectos da fé imperfeita ou impura são seus opostos, a saber: Impureza, Dispersão e Descontinuidade.

2.5. Eras da Imagem, da Decadência e da Extinção do Dharma (jap. Zômahôme) = Segundo a visão da História própria da Tradição da Terra Pura e de algumas outras correntes budistas, o Dharma decai progressivamente no mundo a partir da época do Buda Shakyamuni. Assim, nos primeiros quinhentos anos após o Ingresso no Nirvana do Buda Shakyamuni, temos a Era do Dharma Correto (Shôbô) em que se conservam plenamente a Doutrina, a Prática e a possibilidade de se alcançar a Iluminação; segue-se a Era da Imagem do Dharma (Zôbô), durando quinhentos ou mil anos, durante a qual subsistem a Doutrina e a Prática, mas a Iluminação não é mais alcançada; em terceiro lugar, temos a Era da Decadência ou Fim do Dharma (Mappô), estendendo-se por dez mil anos, em que só a Doutrina subsiste; finalmente, temos o desaparecimento total da Doutrina, que só será plenamente restaurada pelo Buda Futuro Maitreya, num futuro muito distante.

2.6. Mundo do Sereno Cultivo (jap. Anyôkai) = a Terra Pura do Buda Amida.

2.7. Maravilhosa Fruição (jap. Myôka) = o Nirvana.

 

3. Vida e Obra de Tao-ch’o: Dos três patriarcas chineses do Budismo Shin, Tao-ch’o é o menos estudado e citado pelos Mestres de nossa Escola, o que não quer dizer que ele seja de importância secundária no processo de constituição da dogmática da mesma. Muito pelo contrário, devemos-lhe duas contribuições fundamentais: 1) a divisão do Budismo em dois Portais, o Portal do Caminho dos Ascetas (Jap. Shôdômon) e o Portal da Terra Pura (Jap. Jôdomon); 2) a incorporação da visão da História como um processo de decadência do Dharma – idéia do Mappô ou Fim do Dharma – à dogmática da Terra Pura. Tao-ch’o nasceu no Distrito de Ping-chou, na atual Província de Shan-hsi em 562, na fase final de um período caótico de fragmentação política de uma China que finalmente começava a caminhar rumo à reunificação. Pertencia a uma família pobre e ingressou na vida monástica aos 14 anos, possivelmente para não morrer de fome, como foi o caso de muitos monges de seu tempo. Ainda jovem, viu o reino em que nascera ser destruído por tropas estrangeiras. Vítima da Grande Perseguição ao Budismo movida pelo Rei Wu da Dinastia Chou do Norte (574), foi obrigado, como muitos outros monges, a voltar temporariamente à condição laica, para não ser morto. Experiências traumáticas essas, que o devem ter levado a meditar sobre a superficialidade e a fragilidade de um Budismo em que as pessoas ingressam para garantir a subsistência, abandonando-o pouco depois para sobreviverem a uma mortífera tribulação. (Hoje em dia, no Brasil, vemos essa situação se repetir: desempregados querem ser monges porque não encontram outra ocupação e membros do Samgha desertam de seu posto ao primeiro sinal de dificuldades…) Tao-ch’o se tornou um especialista do Sutra do Nirvana (Jap. Nehangyô), tendo ministrado 24 cursos sobre o mesmo. Aos 48 anos visitou o Templo Hsüan-chung onde leu, numa estela, uma inscrição de louvor ao Mestre T’an-luan que, produzindo um profundo impacto sobre ele, o levou a se converter à Doutrina da Terra Pura, ao constar ser-lhe impossível alcançar a iluminação em sua vida presente por seu próprio esforço. Concentrou-se no estudo do Sutra da Contemplação, texto que abordou em mais de duzentos cursos. Difundiu o Nembutsu entre a gente humilde, ensinando-a a contar o número de recitações com grãos de cereais ou com o rosário. Faleceu no Templo Hsüan-chung aos 84 anos em 645. Deixou dois escritos, o Gatha de Louvor a Amida (Jap. San-Amidabutsu-ge) e a Coletânea de Paz e Alegria (Jap. Anrakushû). O Gatha de Louvor a Amida é um poema em 195 estrofes que celebra o triunfo da Luz do Buda Amida sobre as trevas da ignorância e as imperfeições humanas, que Shinran parafraseou nas 48 estrofes iniciais dos Hinos da Terra Pura (Jap. Jôdo Wasan). Lembra o Prólogo do Evangelho de São João e certos textos da literatura gnóstica. AColetânea da Paz e da Alegria é um comentário ao Sutra da Contemplação em dois volumes. Nessa obra, a Doutrina Amidista relativa à salvação do homem pelo Poder do Nome de Amida é denominada Portal da Terra Pura (Jap. Jôdomon), sendo colocada em oposição às demais escolas budistas, agregadas sob a denominação de Portal do Caminho dos Ascetas (Jap. Shôdômon), as quais ensinam a realização do homem através de seu próprio esforço. Tao-ch’o foi o primeiro Mestre da Terra Pura a abordar o tema da maldade e fraqueza do homem, que o impedem de se realizar através doShôdômon, só lhe restando recorrer à Grande Compaixão de Amida que lhe oferece a perspectiva de salvação pelo Jôdomon. Explica essa impotência do homem em se salvar pelo próprio esforço através da degradação progressiva da natureza humana a partir dos tempos de Sakyamuni, introduzindo pela primeira vez no Amidismo Chinês a Idéia da Decadência do Dharma – Idéia do Mappô.

 

4. A Idéia do Mappô. Não tratarei aqui detalhadamente da Idéia do Mappô no Budismo em geral e em Shinran, assunto que estudei exaustivamente em minha Tese de Doutorado – Considerações sobre o Culto de Amida no Japão Medieval: Um Exemplo de Consciência Histórica no Budismo Japonês – hoje disponível na Internet no site do Apucarana Nambei Honganji. Quem lê japonês poderá consultar os excelentes trabalhos do Prof. Yûzen Matsubara como Shinran to Mappô Shisô (Shinran e a Idéia de Mappô). Só lembrarei aqui alguns pontos que para mim são essenciais:

1 – A semelhança da Teoria Budista do Mappô com a tradição hindu do Kali Yuga(Idade Sombria) em que René Guénon se inspirou para tecer sua crítica radical ao mundo moderno em seus livros La Crise du Monde Moderne, Orient et Occident e Le Régne de la Quantité et les Signes du Temps.

2 – As semelhanças entre as teorias do Mappô e do Kali Yuga com o Mito das Raças da Tradição Greco-Romana, exposto nos poemas de Hesíodo e Ovídio.

3 – Podemos encontrar certas analogias entre a Teoria Budista das Três Épocas e certos esquemas encontrados no Ocidente em que a História é igualmente dividida em três épocas. Temos, por exemplo, as idéias do abade calabrêsJoaquim de Fiore (c.1130-1202), que dividia a História da Humanidade em três eras: a) Idade do Pai (dos leigos casados ou da Revelação do Velho Testamento); b) Idade do Filho (dos clérigos ou da Revelação do Novo Testamento); c) Idade do Espírito Santo (dos monges ou da intensificação da Graça), idade ainda por vir em que seria concretizado o ideal da pobreza proposto pelas Ordens Monásticas e reinariam a paz, a harmonia e a felicidade. Um eco das doutrinas de Joaquim de Fiore se faz presente na obra de Alan Kardec cuja Doutrina Espírita, tão popular no Brasil, nos fala de uma “Terceira Revelação” (o advento do Espiritismo) que equivale à Era do Espírito Santo sonhada pelo visionário calabrês. Eu mencionaria ainda a Teoria da História proposta pelo pensador italiano Giambattista Vico (1688-1744) que, em sua obra Scienza Nuova também propõe a divisão da História da Humanidade em três eras: a dos deuses, a dos heróis e a dos homens.

4 – Há que mencionar ainda a influência exercida sobre Tao-ch’o por Hsin-hang (Jap. Shingyô) (540-594) e sua “Religião dos Três Estágios” (Jap. Sangaikyô), um movimento de tendências messiânicas em grande parte motivado pelas crises da época. Apresentava idéias de crítica social e foi bastante difundida entre as massas, mas foi perseguida e proibida pelos governantes. Partia de uma crítica à postura dominante entre as escolas budistas chinesas do período, que selecionavam em meio à vasta literatura budista determinados textos para sua fundamentação teórica, e tomavam do panteão búdico uma determinada divindade para venerar. Hsin-hang considerava essas escolas como válidas para o “primeiro e o segundo estágios”, ou seja, o Shôbô e o Zôbô, mas totalmente ineficazes no “Terceiro Estágio” ou época atual, isto é, o Mappô. Para esta última era, Hsin-hang preconizava a “Lei Universal”, isto é, a veneração de todas as divindades do panteão budista e a adoção de todas as doutrinas e práticas propostas pelas diferentes escolas. Segundo ele, após quinhentos anos de Shôbô e mil de Zôbô o mundo ingressara na Era doMappô. A “Religião dos Três Estágios” foi exaustivamente estudada pelo Prof.Yabuki Yoshiteru em seu livro Sangaikyô no Kenkyû (Estudos sobre a “Religião dos Três Estágios”) publicado em 1928. Tão profunda foi a repercussão da idéia de Mappô na China dessa época que, por sua inspiração, os Sutras budistas foram gravados em pedra nos fins do século VI para evitar que eles se perdessem totalmente quando se verificasse a extinção do Budismo.