NOTAS SOBRE O SHOSHINGE – 16

Rev. Prof. Dr. Ricardo Mario Gonçalves

 

 1. A Escola Cittamatra, a Gnose e “Matrix”: O que pode haver de comum entre a Escola Cittamatra, a antiga Gnose judaico-cristã e o filme “Matrix”? Os três têm em comum a tese de que não vivemos num mundo real, mas sim em um mundo falso, ilusório, virtual.

A Escola Cittamatra nos apresenta uma fenomenologia da consciência do homem profano, escravo do egoísmo, da ignorância, da cólera e dos desejos. Essa consciência, confusa e desnorteada, tal como ocorre no filme “Matrix”, cujos personagens são prisioneiros de um mundo virtual criado pelo computador. Só que segundo a Escola Cittamatra, somos nós mesmos os programadores do falso mundo que nos aprisiona…

No Evangelho da Verdade, um dos textos gnósticos descobertos em Nag Hammadi, no Egito, em 1945, encontramos uma concepção semelhante:

Assim eles não tinham conhecimento do pai, uma vez que ele era quem eles não viam. Visto que ele era objeto de medo e agitação e instabilidade e incerteza e divisão, havia muita futilidade agindo entre eles por causa dele, e (muita) ignorância vazia – como quando a gente cai em sono profundo e se vê no meio de pesadelos: correndo para algum lugar – sendo perseguido e não podendo escapar – em luta corpo a corpo – sendo surrado – caindo de um lugar alto – sendo soprado para cima pelo vento, e sem asas; às vezes, também, parece que a gente está sendo assassinada, embora ninguém esteja nos dando caça – ou matando o vizinho cujo sangue nos mancha inteiros: até que, passando por todos esses sonhos, a gente acorda. Os que estão no meio de todas essas aflições não vêem nada, pois essas coisas (de fato) não são nada. Assim são aqueles que rejeitaram a falta de conhecimento como sono, considerando-a como nada. Nem consideram eles seus outros produtos como sendo coisas reais. Ao contrário, eles as afastam como um sonho à noite, e consideram conhecimento do pai como sendo a luz. Dessa forma é que cada pessoa agia enquanto estava sem conhecimento: como se estivesse dormindo. E a pessoa que tem conhecimento é como alguém que acordou. Ótimo para a pessoa que retorna e acorda! E bem-aventurado seja aquele que abriu os olhos do cego!

 

2. Yogacara-Madhyamika: Já mencionei a existência de polêmicas na Índia entre as Escolas Madhyamika e Cittamatra. Os discípulos de Nagarjuna, alicerçados no conceito de Vazio, censuraram os seguidores de Vasubandhu por admitirem a realidade da Consciência e dos fenômenos dela emanados. Os adeptos do Cittamatra, por sua vez, consideravam o Madhyamika uma forma de niilismo, pois para eles o Vazio consistia na ausência da dualidade sujeito/objeto no seio da Consciência, considerada a única realidade existente. Entretanto, há que lembrar que as doutrinas Cittamatra, associadas às práticas meditativas, conduzem à experiência da Realidade Última – Tathata (o “Assim Mesmo”) – em que todos os conceitos são abolidos. Assim, as teorias Cittamatra devem ser entendidas como conceitos provisórios, eficazes para descrever a condição do homem profano, mas destinadas a serem superadas com a experiência última da Realidade. Lembrando a teoria das duas verdades propostas por Nagarjuna – a verdade convencional, mundana (Sanscr. Samvrti-satya, Jap. Sezokutai) e a verdade do Sentido Último (Sanscr. Paramartha-satya, Jap. Shôgitai) – podemos concluir que a Escola Cittamatra se ocupa basicamente da primeira. Assim, foi possível criar uma escola híbrida, conciliando ambas as correntes, a que se dá o nome de Escola Yogacara-madhyamika, que toma da doutrina nagarjuniana o conceito de Realidade Última e aplica as teorias Cittamatra no âmbito da verdade convencional e mundana. Essa atitude conciliatória, presente no Budismo Tibetano, pode ser encontrada também no Budismo Sino-Japonês e, particularmente, em Shinran, que venera como Patriarcas da Terra Pura os fundadores de ambas as escolas. Assim, o Budismo Shin concilia em seu seio as duas grandes correntes filosóficas do Budismo Mahayana, a Escola do Vazio e a Escola da Consciência, na pessoa de seus principais expoentes, Nagarjuna e Vasubandhu. Voltaremos a esse assunto quando tratarmos do Terceiro Patriarca T’an-luan.

3. O “Tratado da Terra Pura: Shinran, deixando de lado as principais obras de Vasubandhu, focaliza exclusivamente o Tratado da Terra Pura, comentário de Vasubandhu ao Sutra da Vida Imensurável, traduzido para o chinês em 529 pelo tradutor-missionário Bodhiruci. O Tratado compreende duas partes, uma em verso e outra em prosa. A primeira parte, em verso, compreende os Cantares da Aspiração do Nascer na Terra Pura, uma descrição poética da Terra Pura do Buda Amida. A segunda parte, em prosa, consiste num comentário aos Cantares em que é proposto um método prático para se alcançar o Nascimento na Terra Pura, compreendendo cinco práticas (Cinco Portais do Pensamento, Jap. Gonenmon): 1 – Portal da Adoração (Jap.Raihaimon); 2 – Portal do Louvor (Jap. Sandanmon); 3 – Portal da Formulação do Voto (Jap. Saganmon) 4 – Portal da Contemplação (Jap. Kansatsumon); 5 – Portal da Transferência de Méritos (Jap. Ekômon). Os Cinco Portais constituem um verdadeiro caminho yóguico , uma aplicação à Terra Pura das técnicas de meditação yóguicas usadas pelos Mestres da Escola Cittamatra.

O Portal da Adoração compreende atividades realizadas com o corpo: prostrações, circum-ambulação, veneração com as mãos unidas em postura de prece, oferta de incenso, etc.

O Portal do Louvor, dedicado à atividade da palavra, compreende a recitação do Nome do Buda Amida.

O Portal da Formulação do Voto compreende o cultivo de uma intensa aspiração ao Nascimento na Terra Pura, através da qual o praticante pacifica sua mente e adquire a Quietude (Samata).

O Portal da Contemplação consiste na visualização dos ornamentos da Terra Pura, do Buda Amida e dos Bodhisattvas que a povoam. Os ornamentos nada mais são que os do Coração Compassivo do Buda, já que resultam de seu propósito de dispensar a salvação a todos os seres viventes. Tal visualização propicia o desenvolvimento da Visão Interior (Vipasyana).

O Portal da Transferência de Méritos permite beneficiar todos os seres viventes.

Os três últimos Portais compreendem atividades do pensamento. Assim, os Cinco Portais constituem uma forma de Yoga integral, compreendendo atividades físicas, verbais e mentais, comparável ao Yoga dos Três Segredos (Sanmitsu Yuga) do Budismo Shingon.

As práticas da Terra Pura acima descritas constituem, na visão de Vasubandhu, a própria vivência do Caminho do Bodhisattva pregado pelo Budismo Mahayana.

Apresentamos abaixo a tradução integral dos Cantares elaborada com a colaboração do Prof. Dr. Mário Bruno Sproviero, do Curso de Chinês da USP, a quem cabem todos os créditos pelas soluções poéticas encontradas para a transposição o mais fiel possível do texto chinês para a língua portuguesa.

 

CANTARES DA ASPIRAÇÃO DO NASCER NA TERRA PURA

 

(Compostos pelo Bodhisattva Vasubandhu e traduzidos para o chinês pelo Venerável Bodhiruci em 529, sob a Dinastia Wei Posterior.)

 

Tradução brasileira do Prof. Dr. Mário Bruno Sproviero e do Rev. Prof. Dr. Ricardo Mário Gonçalves.

 

1

Honrado do Mundo! (1) Eu, coração uno,

Tomo refúgio no Tathagata (2);

Sua luz sem antítese replena as dez direções (3);

Aspiro nascer no reino da Paz e Alegria (4).

2

Eu me fundamento no Sutra (5),

Nas feições de suas virtudes verdadeiras;

Em suma, exponho os Cantares da Aspiração,

Em consonância com a Doutrina Búdica.

3

Contemplo a fisionomia daquele mundo:

Transcende o curso das três esferas (6);

No âmago, é qual o espaço vazio:

Vasto, imenso, infindável.

4

A grande compaixão do justo curso,

Da salutar raiz transmundana (7) nasce;

Sua pura luz plenamente irradia

Qual disco do espelho, sol, lua.

5

Dotado de natureza gemífera,

Replena de portentosos ornamentos,

Suas fulgurações de luz imácula

Alumbram o mundo, translucidamente.

6

Natureza preciosa, a erva virtuosa,

Doce, suave, versa à esquerda e direita;

Quem a toca, sente um fruir excelso

Que ofusca a maciez da Kacilindika 8).

7

Preciosa floração, transbordantes espécies,

Replena lagos, arroios, nascentes;

Sutil sopro acaricia flores e folhedos;

Luzes entrelaçadas intermitem.

8

Palácios, copiosas esplanadas,

Panorama fugente nas dez direções;

Arvoredo polimorfo iridescente,

Orlado de balaústres preciosos.

9

Gemas sem conta entremeiam-se,

O enredo replena o espaço;

Polífonos sinos repicam,

Irradiam o som do Excelso Dharma (9).

10

Afluem ornamentos de vestes floridas,

Fragrâncias contínuas, plenipresentes,

A Sabedoria Búdica luz qual sol puro,

Somem as sombras sensuais da insipiência.

11

Som hialino… desperta fundo e longe,

Sutil, raptor, ressoa nas dez direções:

“Eis o verdadeiro iluminado, Amitayus (10),

Rei do Dharma, guardião do bem”.

12

Montes de puras flores do Tathagata,

Metamorfoses da flor do Iluminado…

Extasia o sabor do Dharma Búdico,

Meditação e Samadhi (11) são a ambrósia.

13

Eterna libertação do prurir corpo-mental,

Fruitiva ventura; eviterna, sem eivas;

Eis o mundo da boa raiz Mahayana:

Igualdade sem desdouro, abolição de nomes.

14

Seres do sexo feminino, da raiz anômala (12),

Dos dois infra-veículos (13), nem nascem;

Toda a aspiração dos seres viventes,

Será plenamente satisfeita.

15

Eis porque eu aspiro ali nascer,

Ali, no Reino do Buda Amitayus;

Incontáveis e grandes gemas reais

No sutil, raptor mirante de flores puras.

16

Uma braça, a luz dos Laksanas (14),

Além da multidão vivente, cores e formas,

A voz sutil e alumbradora do Tathagata,

Eco hialino, ressoa nas dez direções.

17

Qual terra, água, fogo, ar,

Espaço vazio, sem distinções,

Assim devas, homens (15), falange imutável,

No puro transoceano da sabedoria nasce.

18

Qual rei do Monte Sumeru (16),

Majestoso, alumbrador, sublime;

Devas, homens, heróis, uma teoria (17),

Áulico converter-se (18), em veneração.

19

Contemplo a força do Voto Original Búdico:

Não passa em vão quem o encontra;

Pode incontinenti satisfazer

O grande oceano precioso do mérito.

20

O Reino da Paz e Alegria, Puridade:

Eternamente gira a roda incorruptível;

Nirmanakayas (19), Bodhisattvas (20), solares,

Estáveis qual o Monte Sumeru.

21

A imácula luz-ornamento,

A cada pensamento, a cada tempo,

Plenamente alumbra a assembléia dos Budas,

Alentando toda a ordem vivente.

22

Afluem melodias celestes, flores, vestes,

Fragrâncias miríficas, em oferendas,

Ao magnificarem os méritos dos Budas,

Nos corações, não há discernimentos.

23

Tantos sejam os mundos

Vazios da jóia dos méritos da Lei Búdica,

Ali aspiramos, todos nós, nascer,

Desvelar a Lei Búdica, qual Budas.

24

Compus o Tratado, expus os Cantares,

Eu aspiro a ver o Buda Amitayus;

Com toda a ordem dos viventes,

Aspiro nascer no Reino da Paz e Alegria.

 

Notas Explicativas

Rev. Prof. Dr. Ricardo Mário Gonçalves

 

(1)Do sânscrito Bhagavat, um dos epítetos do Buda.

(2)Outro epíteto do Buda cujo significado é: “Aquele que veio da Verdade”.

(3)Os quatro pontos cardeais, os quatro pontos colaterais, o zênite e o nadir.

(4)A Terra Pura ou Paraíso do Buda Amida (Buda da Vida e da Luz Imensuráveis).

(5)O “Sutra da Vida Imensurável” (Grande Sukhavati-vyuha ou Daimuryojukyo).

O Mundo dos Desejos, o Mundo da Forma e o Mundo da Não-Forma, as três divisões do Universo segundo a cosmologia budista. Este verso, que fala da transcendência dos mesmos, prova que, ao contrário do que dizem muitos intérpretes fundamentados na tradição judaico-cristã, o Budismo não é uma mera mística naturalista, possuindo uma clara visão de transcendência.

(6)Nova menção à transcendência.

(7)Ave mítica de penugem extremamente suave.

(8)A Lei ou fundamento de toda a existência, conteúdo da pregação do Buda.

(10) O Buda da Vida Imensurável, Amida.

(11) Êxtase ou estado de contemplação mística.

(12) Refere-se às pessoas vaidosas, narcisistas, apegadas a sua própria beleza.

(13) Os veículos e doutrinas do Hinayana ou Pequeno Veículo, considerados inferiores por proporem apenas a iluminação individual, deixando de lado o ideal altruísta da salvação de todos os seres, próprio do Mahayana ou Grande Veículo.

(14) Marcas do corpo do Buda que o distinguem do comum dos mortais.

(15) Tien-ren (Tenjin), segundo o texto sino-japonês. O primeiro impulso nos leva a querer traduzir como “homens celestes”. Trata-se, porém, da tradução do sânscritodevanam manusyanam, ou seja, devas (anjos ou deuses celestiais) e homens. Essa expressão mostra que o estado búdico transcende não só a condição humana como também a divina.

(16) A Montanha Cósmica do Centro do Mundo, de acordo com a cosmologia tradicional da Índia, assimilada pelo Budismo.

(17) A palavra teoria tem aqui o sentido de uma procissão religiosa análoga às realizadas nas antigas cidades gregas.

(18) Referência ao pradaksina, circum-ambulação ritual feita no sentido dos ponteiros do relógio.

(19) Emanações ou projeções dos Budas no mundo fenomênico cujo objetivo é instruir e libertar os seres nele aprisionados por sua ignorância.

(20) Os adeptos que ocupam o mais elevado grau na hierarquia espiritual do Budismo Mahayana. Pela sua sabedoria transcendem o mundo e fazem jus ao Nirvana, mas pela sua compaixão permanecem ligados ao mundo de nascimentos e mortes (Samsara), com o objetivo de propiciar a libertação aos seres sensíveis nele aprisionados por sua ignorância.