NOTAS SOBRE O SHOSHINGE – 3

 Rev. Prof. Dr. Ricardo Mário Gonçalves

 

O Bodhisattva Dharmakara, durante seu estado causal,

Achando-se na presença do Buda Lokesvara-Raja,

E tendo examinado as causas das Terras Puras dos Budas,

E o bem e o mal destas Terras Puras e dos planos celeste e humano,

Estabeleceu o mais excelso e mais sublime Voto

E fez surgir o extraordinário e Grande Voto Original.

Depois de meditar durante cinco kalpas, ele escolheu o melhor

Dos votos e de novo jurou que Seu Nome seria ouvido nas dez direções.

 

1 – Aqui começa a narrativa do mito básico da Tradição da Terra Pura, o Mito do Buda Amida.

Mito (do grego mythos) significa “história exemplar”, “história sagrada” que nos ensina coisas fundamentais sobre o homem e o mundo.

Mythos vem do radical my (mudo, silencioso), também presente em mysterion(mistério). Tanto o mito como o mistério, dizem respeito a realidades inefáveis, além da palavra e do pensamento humano. O mito seria uma tentativa de “expressar o inexpressável” através de uma narrativa.

1.1   – Entendemos o Budismo, especialmente o Budismo da Terra Pura, como uma religião gnóstica (salvação pela Sabedoria). Toda religião gnóstica tem seu mito fundamental. A Gnose Cristã tem seu mito, distinto da tradição bíblica, que explica a origem da ignorância e o processo de salvação do homem através do autoconhecimento. O Mito de Amida é o mito da Gnose da Terra Pura.

1.2   – O mito de Dharmakara (Amida) se passa em uma dimensão fora de nosso tempo profano, e, ao mesmo tempo, dentro do coração de cada um de nós. É isso que o Prof. Ryojin Soga quer dizer quando afirma que o Bodhisattva Dharmakara é oalayavijnana (a mente profunda inconsciente).

 

2- VOCABULÁRIO:

Bodhisattva = Transcrevo, aqui, a definição muito feliz dada pelo Prof. Kakushô Takagami (1894-1949), um erudito da Escola Shingon (ramo Chizan) que estudou a Filosofia com o Prof. Kitaro Nishida, o Sutra Kegon no Templo Todaiji e a Doutrina da Terra Pura na Universidade Otani. Participou do “Movimento da Verdade” (Shinri Undô), movimento budista não-sectário baseado no Dhammapada, liderado pelo Prof. Entai Tomomatsu. Em 1934 pronunciou na Rádio Tokyo uma série de palestras sobre o “Sutra do Coração da Perfeição da Sabedoria” que o tornou famoso, onde disse: – O Bodhisattva é aquele que não só busca o Despertar, como também faz os outros despertarem. Em outras palavras: O Bodhisattva é aquele que, por sua Sabedoria, pode ingressar no Nirvana, mas que, por sua Compaixão, permanece no mundo dos nascimentos e mortes (Samsara).

 

Dharmakara = Repositório do Dharma, Fundamento do Dharma.

Durante seu estado causal = No tempo de sua ascese, ou seja, da prática das virtudes do Bodhisattva, visto como causa de sua Realização Búdica posterior como Amida.

Possíveis alternativas de tradução: “no tempo de sua ascese”, “no tempo em que trilhava o Caminho do Bodhisattva, rumo à Realização Búdica”, “quando se entregava à prática do Caminho”.

O tempo da ascese de Dharmakara não é o nosso tempo profano, é um tempo sagrado, um tempo mítico ou primordial, o illud tempus reatualizável através do rito. Realizando o rito da leitura do Shoshinge, reatualizamos em nós esse tempo primordial.

Um paralelo:

No Sutra de Mahavairocana (Dainichikyô) é dito que o Buda Mahavairocana prega o Dharma ao Vajrasattva (o Eterno Discípulo, arquétipo do Discípulo) no dia do Tathagatha que transcende os três tempos. Três tempos seriam o passado, o presente e o futuro. Temos aqui uma excelente definição do tempo sagrado segundo o Budismo!

Lokesvara-raja = O “Buda Senhor Rei do Mundo”. Lokesvara, no Hinduísmo, é um dos nomes do deus Siva. No Budismo, é um dos nomes do Bodhisattva Avalokitesvara (Kannon), figura profundamente relacionada com o Buda Amida.

O culto de Lokesvara floresceu no Império Khmer Medieval (Camboja), em cuja capital Angkor podemos ver gigantescas estátuas da divindade com quatro rostos, fitando os pontos cardeais. Simbolizam a onisciência e onipresença do Buda, assimiladas ao poder do rei divino (devaraja) do povo Khmer, no caso, Jayavarman VII.

Lokesvararaja, como Rei Senhor do Mundo, está relacionada com a figura doCakravartin (Rei do Mundo, duplo do Buda) e reúnem em si os poderes: real (temporal) e sacerdotal (espiritual).

Um paralelo:

Um paralelo bíblico de Lokesvara-raja é a figura de Melquisedec, Rei de Salem (Rei da Paz e da Justiça), sacerdote do Deus Altíssimo (Gênesis 14, 18) que abençoa Abraão e, segundo a Carta aos Hebreus atribuída ao apóstolo Paulo, é a fonte do poder espiritual de Jesus, feito sacerdote para a eternidade segundo a ordem de Melquisedec (Hebreus 6, 19).

Uma figura medieval do Rei do Mundo é a do Preste João, ora identificado com o imperador cristão da Etiópia, ora com o rei dos nômades Tangut (Hsi-Hsia) de origem tibetana, na Ásia Central, na época de Gengis Khan. Entre os mongóis há um culto ao Rei do Mundo (cakravartin) como uma forma idealizada de Gengis-Khan.

Terras Puras dos Budas = A expressão Terra Pura não existe em sânscrito, foi criada pelos chineses. Em sânscrito, existem expressões como Sukhavati (Terra da Suprema Alegria, Gokuraku, em japonês) e Buddhaksetra (Campo ou País Búdico). Tratando-se de um conceito dinâmico, e não estático, o Prof. Susumu Yamaguchi propunha traduções alternativas como terra da purificação, purificar a terra, purificação da terra, etc.

Plano Celeste = Devas, da raiz indo-européia DIV (brilhar), da qual derivam: Deus, Theos, Zeus, Júpiter, Dhyaus Pitar, Diva, etc.

Kalpa = Ciclo cósmico, eon. Em escolas como a Hosso-shû, é dito que o discípulo leva três grandes kalpas para atingir o Supremo Despertar.

Voto Original = Do sânscrito purva-pranidhana.

3 – Um modelo para o diálogo inter-religioso? O trecho – E tendo examinado…planos celeste e humano. – poderia ser visto como um arquétipo budista do diálogo inter-religioso.