NOTAS SOBRE O SHOSHINGE – 22

Reverendo Prof. Dr. Ricardo Mário Gonçalves

 

Genshin esclareceu amplamente os ensinamentos pregados pelo Buda em seu tempo.

Tomou refúgio exclusivo na Terra do Sereno Cultivo, o que a todos recomendou,

Distinguindo entre a profundidade do coração confiante na prática exclusiva e na superficialidade daquele apegado às práticas mistas,

Estabeleceu com clareza a diferença entre a Terra da Fruição e a Terra Transformada.

Os perversos carregados de pesados males devem apenas recitar o Nome Búdico.

Eu também sou incluído em seu acolhimento;

Ainda que meus olhos toldados pelas paixões não possam percebê-la,

A Grande Compaixão sempre me ilumina, jamais empalidecendo.

 

1. Considerações Gerais: Aqui é resumida a Doutrina do Sexto Patriarca Genshin, autor do Ôjô Yôshû (Notas Essenciais sobre o Ir-Nascer), a respeito da Grande Compaixão Búdica que sempre nos ilumina, ainda que não a percebamos.

 

2. Questões de Vocabulário:

2.1. Genshin (942-1017) = O Sexto Patriarca do Budismo Shin, sendo o primeiro nascido no Japão.

2.2. Terra do Sereno Cultivo (Jap. Anyô) = A Terra Pura do Buda Amida.

2.3. Prática Exclusiva (Jap. Sen, abreviatura de Senju Nembutsu) = A prática exclusiva do Nembutsu.

2.4. Práticas Mistas (Jap. , abreviatura de zasshu) = A prática do Nembutsu mesclada coma de outros exercícios ou atos tidos por meritórios.

2.5. A Terra da Fruição e a Terra Transformada (Jap. Hôkenido) = Por Terra da Fruição ou da Retribuição (Jap. Hôdo) entende-se a Terra Pura do Buda Amida visto como um Buda em seu Corpo Glorioso ou de Retribuição (Sanscr. Sambhogakaya, Jap. Hôjin). Assim como o Corpo Glorioso de Amida resulta das práticas ascéticas do Bodhisattva Dharmakara, a Terra da Fruição também foi edificada a partir das mesmas. Por Terra Transformada (Jap. Kedo) entende-se a Terra Pura manifestada por um Buda em seu Corpo de Manifestação ou Transformação (Sanscr. Nirmanakaya, Jap. Keshin). Assim como o Corpo de Manifestação é um corpo que o Buda manifesta em concordância com o grau de entendimento e percepção dos seres sensíveis que ele intenta salvar – concretamente o Nirmanakaya corresponde ao Buda Histórico Sakyamuni -, a Terra Transformada é a Terra Pura manifestada em consonância com esse mesmo grau de entendimento e percepção dos seres. No Budismo Shin, a Terra Transformada é a mesma Terra da Fruição percebida na perspectiva limitada dos devotos que se mantêm apegados às práticas realizadas a partir de seu esforço pessoal (Jiriki), em virtude de seus sentimentos de dúvida em relação à Sabedoria Búdica expressa pelo Voto Original de Amida.É chamada também de Terra da Indolência e da Soberba (Jap.Kemangoku), pois seus habitantes, demasiadamente orgulhosos para se entregarem de todo o coração ao Voto Original, carecem de confiança e não se empenham suficientemente. É chamada também de Palácio da Dúvida (Jap.Gijô), pois a dúvida os mantém confinados como se estivessem aprisionados num cárcere luxuoso ou restritos às regiões periféricas da Terra Pura, sem acesso ao Centro da mesma.

2.6. Os perversos… jamais empalidecendo = Nesses versos Shinran condensa duas passagens fundamentais do Ôjô Yôshû de Genshin:

Aquele que não conseguir contemplar as contemplações das marcas felizes, deverá de todo o coração, praticar a recitação, fundamentando-se, ou na idéia de veneração, ou na idéia de atração, ou na idéia do ir-nascer.

 Cada uma daquelas luzes ilumina amplamente os mundos das dez direções, atrai e acolhe os seres viventes praticantes do Nembutsu e não os abandona; eu também sou incluído nesse acolhimento, as paixões toldam meu olhar e não consigo vê-la, nas a Grande Compaixão, que jamais empalidece, constantemente me ilumina.

 

3. Formação do Budismo Japonês – marcos cronológicos:

538 – Seimei, soberano do reino coreano de Kudara, oferece sutras e imagens budistas à Corte Imperial Japonesa, marcando a introdução oficial do Budismo no Japão.

604 – Promulgação da Ordenação dos Dezessete Artigos pelo Príncipe RegenteShôtoku (574-622).

701 – Promulgação do Sôniryô (Estatuto dos Monges e das Monjas).

 

Período de Nara (710-784)

736 – Monge indiano Bodhisena chega ao Japão.

752 – Cerimônia de Consagração do Grande Buda do Templo Tôdaiji.

 

Período de Heian (794-1185)

806 – Saichô (Dengyô Daishi) (767-822) estabelece a Escola Tendai.

809 – Kûkai (Kôbô Daishi) (774-835) introduz no Japão a Escola Shingon de BudismoVajrayana.

Ennin (Jikaku Daishi) (794-864), introdutor dos Ritos da Terra Pura no MosteiroEnryakuji no Monte Hiei, sede da Escola Tendai.

Ryôgen (912-985), promotor da Doutrina da Terra Pura.

Kûya (902-972), difusor da prática do Nembutsu entre o povo.

Genshin (942-1017).

1052 – Primeiro ano da Era do Mappô.

Kakuban (Kôgyô Daishi) (1095-1143), reformador da Escola Shingon e promotor do Amidismo Esotérico (Jap. Himitsu Nembutsu).

 

Período de Kamakura (1185-1333)

Hônen (1133 – 1212)

Shinran (1173-1262)

1175 – Estabelecimento da Escola Jôdo por Hônen.

1207 – Édito de Proibição do Nembutsu e banimento de Hônen e Shinran.

 

4. Características Gerais do Budismo Japonês:

4.1. Íntima associação com o Estado = Desde seus primórdios o Budismo Japonês foi patrocinado pelo Estado Imperial, com que sempre teve uma íntima associação. O poder político e o poder espiritual sempre estiveram tão unidos entre si que, na prática, muitas vezes não conseguimos distinguir um do outro. O próprio Imperador (Tennô) é, nas suas origens, um xamã. O Budismo é assimilado, não tanto por seu conteúdo doutrinário como por ser visto como um poder mágico capaz de proteger o Estado e de prestar um culto eficaz aos Ancestrais do Clã Imperial e das poderosas famílias aristocráticas a ele associadas.

4.2. Sincretismo = O Budismo possuiu uma tradição de convívio pacífico com as crenças dos países em que se implanta. Tal tradição muitas vezes conduz ao sincretismo. No Japão, não obstante alguns conflitos iniciais entre o xamanismo local e a religião alienígena, logo se chega a uma acomodação.De início, temos registros de oráculos em que os deuses locais (Kami) pedem para serem convertidos ao Budismo e aceitos como divindades tutelares do Dharma. Posteriormente, é elaborada uma teoria do sincretismo denominada Honji Suijaku, segundo a qual as divindades locais são reconhecidas como emanações dos Budas e Bodhisattvas do panteão budista,

4.3. Doutrina do Veículo Uno (Sanscr. Ekayana, Jap. Ichijô) = Desde a época do Príncipe Regente Shôtoku encontramos uma tendência, por parte de uma pequena elite, de estudar profundamente a doutrina e, inclusive, de partir para teorizações originais. Dentre estas, temos a ênfase na Doutrina do Veículo Uno, pregado no Sutra do Lótus, que tende a mitigar as diferenças entre as diferentes doutrinas, e mesmo entre o Budismo Monástico e o Budismo Laico, vendo essas diferentes tendências como distintos meios salvíficos que se destinam a conduzir todos os seres viventes a um único Caminho de Libertação.

 

5. Primórdios da Tradição da Terra Pura no Japão: Nos comentários de sutras atribuídos ao Príncipe Regente Shôtoku há citações do Grande Sutra da Vida Imensurável, o que atesta que o mesmo já era conhecido no Japão no século VI. No ano de 640, o monge Eon, que estudara na China, ministra na Corte Japonesa um curso sobre o mesmo texto. No Período de Nara, mais monges eruditos escrevem tratados sobre os Sutras da Terra Pura. Surgem também obras de arte de inspiração amidista. Práticas de culto e contemplação próprias da Tradição da Terra Pura, praticadas na Escola Chinesa T’ien-t’ai (Jap. Tendai) são trazidas ao Japão por Ennin e implantadas no Mosteiro de Enryakuji. Um importante propagador do Amidismo foiRyôgen (912-985), que enfatizou a importância da prática do Nembutsu na hora da morte como garantia do ir-nascer na Terra Pura. Outro importante divulgador doNembutsu foi Kûya (903-972), cognominado o “Santo das Ruas”, que passava seus dias percorrendo as ruas e feiras de Kyoto onde difundia a prática da recitação do Nome de Amida entre o povo.

 

6. Genshin – Vida e Obra: É a Genshin, celebrado por Shinran como o Sexto Patriarca do Budismo Shin, que devemos a consolidação do Amidismo como crença dominante nos meios aristocráticos japoneses da segunda metade do Período Heian. Natural da Província de Yamato, Genshin, também chamado Eshin, perdeu seu pai Urabe Masachika com tenra idade. Aos nove anos de idade ingressou no Mosteiro de Enryakuji, onde se tornou discípulo de Ryôgen. Dotado de uma grande facilidade para o estudo e de um forte pendor para a oratória, fez uma carreira brilhante como autor de tratados de lógica budista e como preceptor da Corte. Admoestado por sua mãe que temia vê-lo se empolgar com as glórias mundanas, renunciou a todas as honrarias para viver retirado no Pavilhão de Yokawa, no Mosteiro de Enryakuji, onde passou a se dedicar ao estudo e à prática da Tradição da Terra Pura e à orientação de irmandades dedicadas a práticas devocionais amidistas. Escreveu nessa época uma série de tratados, dos quais o mais famoso é o Ôjô Yôshû. Profundamente respeitado pela aristocracia, inspirou a escritora Murasaki Shikibu a criar a figura do “monge de Yokawa”, um dos personagens de seu famoso romance Genji Monogatari (A História deGenji). Morreu segurando a ponta de um cordão amarrado à mão de uma estátua de Amida, suspirando pelo ir-nascer na Terra Pura. Encontramos uma síntese de sua doutrina amidista em um pequeno texto denominado Yokawa Hôgo (Palavras do Dharma de Yokawa):

 

É uma grande alegria para os seres viventes afastarem-se dos Três Caminhos do Mal e nascerem como seres humanos. Por mais baixa que seja a condição de um homem, não será ele inferior aos animais. Por mais pobre que seja sua casa, sua situação será melhor do que a dos demônios famintos. Ainda que ele não consiga realizar seus intentos, seus sofrimentos não podem ser comparados com os do inferno. Penoso é viver neste mundo em que não encontramos ponto de apoio, nossa condição é fraca e inferior, o que atua como estímulo para desejarmos a Realização Búdica. Por isso devemos nos alegrar por termos nascido como seres humanos. Ainda que nossa fé seja fraca, profundo é o Voto Original e se a ele recorrermos, certamente iremos nascer na Terra Pura. Ainda que não nos sintamos predispostos ao Nembutsu, se o recitarmos, grandes serão nossos méritos, que garantirão a aparição de Amida na hora de nossa morte. Por isso devemos nos alegrar pelo encontro com o Voto Original. Os pensamentos ilusórios são uma condição inerente ao homem não iluminado, sua consciência nada apresenta fora eles. Se praticarmos o Nembutsu até a hora da morte, conscientes de nossa condição de homens não iluminados, plenos de pensamentos ilusórios, certamente alcançaremos a visão de Amida no derradeiro instante e, no momento em que estivermos repousando sobre as flores de lótus, os pensamentos ilusórios se converterão em iluminação. Os Nembutsu pronunciados em meio aos pensamentos ilusórios são semelhantes às flores de lótus não contaminadas pela impureza de onde brotam. Não devemos, pois, duvidar da certeza do ir-nascer na Terra Pura. Sem desprezar os pensamentos ilusórios, devemos lamentar a pouca profundidade de nossa fé, aprofundar nossa perseverança e pronunciar continuamente o Nome.

(Seiten pág. 961.)

 

De todos os trabalhos de Genshin o mais importante foi o Ôjô Yôshû, que contribuiu extraordinariamente para a difusão do Amidismo entre a nobreza da época, além de ter exercido considerável influência sobre a literatura e as artes e de ter se constituído no ponto de partida para as reflexões de mestres amidistas posteriores. Pode ser comparado à Divina Comédia de Dante, por causa das impressionantes descrições do inferno e da Terra Pura de Amida. Mas há diferenças. Dante, além de poeta, foi um político derrotado que viveu exilado, longe de sua terra natal. Diverte-se lançando nos infernos seus inimigos políticos e imaginando os tormentos a que os mesmos estariam sendo submetidos. Já em Genshin sentimos uma profunda e incondicional compaixão por todos os seres que sofrem. O objetivo do autor era apresentar toda a miséria da condição dos seres viventes, através das descrições dos infernos e demais planos de sofrimento, para depois apresentar as alegrias e a perfeição da Terra Pura de Amida, despertando assim nos fiéis um desejo ardente de alcançá-la. Apresentou também os métodos concretos para se conseguir o ir-nascer na Terra Pura, que consistem nas meditações amidistas da Escola Tendai. Para Genshin, o Nembutsu consistia principalmente numa contemplação minuciosa da figura de Amida e de sua Terra Pura. Particular atenção è dispensada à prática do Nembutsuna hora da morte. Minuciosas instruções são ministradas quanto à instalação do moribundo num aposento diferente do habitualmente utilizado por ele, longe de seus objetos de uso pessoal, para facilitar uma atitude de desapego e desligamento da existência. São apresentados modelos de discursos piedosos para que os amigos do moribundo os repitam, com o objetivo de manter a mente do mesmo fixada noNembutsu. Estamos diante de uma verdadeira Ars Moriendi, de uma liturgia para a morte comparável ao famoso “Livro Tibetano dos Mortos”. Não obstante sua ênfase nas práticas de meditação e contemplação, na observância dos Preceitos e outras práticas do Budismo tradicional, Genshin não esquece as fraquezas da condição humana e das dificuldades, e mesmo da impossibilidade de muitos em se imporem semelhantes disciplinas. Para esses, Genshin ensina um método simplificado de meditação que consiste em visualizar mentalmente a ulna (ponto fulgurante semelhante a um “terceiro olho” que a tradição coloca entre as sobrancelhas dos Budas) de Amida. Prevendo ainda a existência de pessoas para quem até mesmo esse exercício simples não seria praticável, recomenda, como último recurso, a recitação pura e simples do Nome de Amida. Nessas reflexões sobre as fraquezas e limitações humanas e na exortação à prática do Nembutsu jaculatório vemos em Genshin o precursor por excelência de Hônen e de Shinran.