NOTAS SOBRE O SHOSHINGE – 21

 Reverendo Prof. Dr. Ricardo Mário Gonçalves

 

Somente Shan-tao tornou clara a Verdadeira Intenção do Buda.

Compadecendo-se dos praticantes das boas ações meditativas e não meditativas, e também dos perversos e malvados,

Revelou que a Luz é a condição auxiliar e o Nome é a causa do Ir-Nascer.

Quando tais praticantes são conduzidos ao Oceano da Grande Sabedoria do Voto Original,

São levados a receber, de forma correta, o Coração Adamantino;

Depois de alcançarem a sintonia com o Buda em um pensamento momentâneo de alegria,

Alcançam o Tríplice Benefício, à semelhança da Senhora Vaidehi,

E imediatamente são levados a obter a Eterna Bem-Aventurança da Essência do Dharma.

 

1. Considerações Gerais: Aqui é exposta a Doutrina do Quinto Patriarca Shan-tao que, através de uma revolução hermenêutica, possibilitou a releitura do Budismo como uma religião de salvação, a contrastar com a visão até então predominante do mesmo como uma via de libertação ascética e contemplativa. Por isso Shinran o proclamou como sendo o único a tornar clara a Verdadeira Intenção do Buda: proporcionar a salvação aos ignorantes e perversos através da pregação do Voto Original de Amida.

 

2. Questões de Vocabulário:

2.1. Shan-tao (613-681) = O Quinto dos Sete Patriarcas do Budismo Shin, o terceiro de nacionalidade chinesa.

2.2. Boas ações meditativas e não-meditativas (Jap. Jôsan, expressão que sintetiza os conceitos de Jôzen – boas ações meditativas – e sanzen – boas ações não-meditativas) = Boas ações meditativas são aquelas praticadas em estado de concentração mental, e boas ações não-meditativas são aquelas que, ainda que praticadas com a mente dispersa, visam à cessação do mal e o exercício do bem. Ambas as práticas são o apanágio dos chamados bons.

2.3. Perversos e malvados (Jap. Gyakuaku) = A expressão se refere aos culpados das Cinco Perversidades e das Dez Más Ações.

As Cinco Perversidades são: 1) parricídio; 2) matricídio; 3) matar um Mestre; 4) perturbar a harmonia da Comunidade Budista; 5) derramar o sangue de um Buda.

As Dez Más Ações são: 1) matar; 2) roubar; 3) cometer adultério; 4) mentir; 5) usar linguagem dúbia; 6) falar mal do próximo; 7) adular; 8) não controlar os desejos; 9) entregar-se à cólera; 10) aceitar doutrinas errôneas.

2.4. Luz (Jap. Kômyô) = A Luz da Sabedoria do Buda Amida.

2.5. Nome (Jap. Myôgô) = O Nome Sagrado do Buda Amida, o nembutsu recitado ou jaculatório.

2.6. Causa e condição auxiliar (Jap. Innen) = Na teoria budista da Originação Dependente estabelece-se uma distinção entre causa principal (Sanscr. Hetu, Jap. In) e condição auxiliar (Sanscr. Pratyaya, Jap. En). Assim, os frutos, efeitos ou conseqüências (Sanscr. Phala, Jap. Ka) resultam do concurso de uma causa principal com uma ou mais condições auxiliares. Por exemplo, a árvore é uma conseqüência que resulta de uma causa principal (semente) e de uma série de condições auxiliares (solo fértil, água, luz, ar, etc.). Na Doutrina de Shan-tao que é assumida por Shinran, o Ir-nascer na Terra Pura (processo de salvação ou libertação) tem por causa o Nome Sagrado (Jap. Myôgô) e por condição auxiliar a Luz da Sabedoria (Jap. Kômyô) do Buda Amida. Para Shinran, o Nome Sagrado, como causa principal da manifestação da Fé, é comparado a um pai compassivo, e a Luz da Sabedoria, que elimina as trevas da dúvida e alimenta e fortalece a Fé, é vista como semelhante a uma mãe misericordiosa.

2.7. Coração Adamantino (Jap. Kongôshin) = Referência à Fé do Outro Poder (Tariki), sólida e inquebrantável como o diamante (Sanscr. Vajra, Jap. Kongô), contraposta à fé frágil e quebradiça resultante do poder próprio (Jiriki) do praticante.

2.8. Alegria (Jap. Kyôki) = Alegria de ter ouvido o Dharma e alcançado a Fé.

2.9. Sintonia com o Buda em um pensamento momentâneo (Jap. Ichinen so-ô) = A sintonia com a Sapiência Búdica alcançada através de um único pensamento momentâneo de Fé.

2.10. Vaidehi (Jap. Idai, forma abreviada de Idaike) = Literalmente, “mulher da nação Videha”. Esposa de Bimbisara, rei do Estado monárquico de Magadha, nos tempos do Buda Histórico Sakyamuni. Mãe do príncipe Ajatasatru. Quando este, em um golpe de Estado, destronou e encerrou o pai numa masmorra, condenando-o à morte por inanição, Vaidehi passou a levar secretamente comida ao rei prisioneiro. Descoberta, foi também aprisionada pelo filho. Tomada por profunda angústia, invocou o Buda Sakyamuni que, vindo a seu encontro, pregou-lhe o Sutra da Contemplação da Vida Imensurável.

2.11. Tríplice Benefício (Jap. Sannin) = O termo japonês Nin (Sanscr. Ksanti) que geralmente tem o sentido de “paciência”, tem aqui a conotação de um benefício proporcionado por uma certeza ou convicção. Refere-se aqui a três faculdades alcançadas através da Fé do Outro Poder: 1) a alegria da Fé: 2) a Sapiência Búdica que dissipa todas as ilusões; 3) a confiança no Voto Original que elimina todas as dúvidas.

2.12. Eterna Bem-Aventurança da Essência do Dharma = A condição de Eterna Bem-Aventurança de quem alcançou o Nirvana ou Supremo Despertar.

 

3. Vida e Obra de Shan-tao: Shan-tao nasceu em 613 em Ssu-chou, na atual Província de An-hui, ou, segundo outra tradição, em Lin-tzu, na Província de Shan-tung. Viveu no período áureo do Budismo chinês, ou seja, na fase inicial da Dinastia T’ang (618-907), uma das mais brilhantes épocas da História da China. A China, recém-unificada após vários séculos de fragmentação, anarquia e invasões externas, expandia-se então pela Ásia Central e Meridional, abrindo-se a influências estrangeiras (Mesopotâmia, Pérsia, Índia). Religiões estrangeiras como o Cristianismo Nestoriano, o Zoroastrismo, o Maniqueísmo e, posteriormente, o Islamismo, penetraram no país e foram bem recebidas. A Capital do Império, Ch’ang-an (hoje Shi-an), era uma esplêndida metrópole cosmopolita em cujas movimentadas avenidas os chineses se acotovelavam com turcos, iranianos, anamitas, coreanos, japoneses, etc. Shan-tao ingressou na vida monástica ainda jovem, dedicando-se, na primeira fase de sua carreira, ao estudo doSutra do Lótus da Lei Excelente (Jap. Hokkekyô) e do Sutra do Ensinamento de Vimalakirti (Jap. Yuimagyô). Um dia, viu uma pintura representando a Terra Pura do Buda Amida e sentiu um profundo anseio de nela ir-nascer. Visitou o Monte Lu e outros locais sagrados para estudar e praticar os ensinamentos da Terra Pura. Viveu por vários anos no Templo Wu-chen, no Monte Chung-nan, onde se dedicou à contemplação do Buda Amida e de sua Terra Pura segundo o método conhecido como Pratyutpanna Samadhi (Jap. Hanshû Zanmai) pregado no Sutra do mesmo nome, tendo alcançado algumas visões. Por volta dos 20 anos de idade, procurou Tao-ch’o e tornou-se seu discípulo. Dedicou-se profundamente ao estudo do Sutra da Contemplação e à prática das Dezesseis Contemplações nele descritas, que lhe propiciaram visões da Terra Pura e do Buda Amida. Pregou a Doutrina da Terra Pura em Ch’ang-an e praticou intensamente o Nembutsu jaculatório. Teria elaborado cerca de cem mil cópias do Sutra de Amida e confeccionado cerca de trezentos mandalas da Terra Pura. Quando o Imperador Kao-tsung resolveu preparar um nicho para abrigar uma estátua de Mahavairocana no Monte Lung-men, na Província de Ho-nan, Shan-tao foi nomeado superintendente das obras. Tornou-se conhecido como o “Mestre do Templo Kuang-ming” (Templo da Luz). Faleceu em 681. Criou uma importante escola de estudo e prática da Doutrina da Terra Pura que exerceu uma profunda influência na China e no Japão. Como veremos, foi o principal inspirador de Hônen, o mestre de Shinran. Sua obra escrita compreende um tratado doutrinário, o Comentário ao Sutra da Contemplação da Vida Imensurável (Jap. Kanmuryojukyo-sho), e quatro trabalhos sobre liturgia: 1) Louvor ao Serviço do Dharma (Jap. Hôji-san); 2) Portal do Dharma da Contemplação (Jap. Kannen Hômon); 3) Adoração e Louvor ao Ir-Nascer (Jap. Ôjô Raisan); 4) Louvor ao Pratyutpanna (Jap. Hanshu-san). Privilegiaremos aqui a análise de seu tratado doutrinário.

 

4. Uma revolução hermenêutica: o Comentário ao Sutra da Contemplação da Vida Imensurável: Em seu Comentário dividido em quatro livros, Shan-tao realiza uma verdadeira revolução hermenêutica, contrapondo sua leitura pessoal do Sutra da Contemplação à interpretação corrente do mesmo feita pelos mestres de seu tempo, como Chi-tsang (Jap. Kichizô) (549-623) e Chia-ts’ai (Jap. Kasai) (620-680). Em suma, enquanto os demais mestres viam no Sutra um guia para a contemplação, em conformidade com a visão corrente do Budismo como uma via ascética e contemplativa, Shan-tao considerava o mesmo um anúncio de uma religião de salvação centrada na fé, cujo principal destinatário seria o ser humano profano e ignorante, carregado de paixões e de culpas, representado pela Rainha Vaidehi. Shan-tao estabelece uma classificação das práticas budistas, dividindo-as em Práticas Corretas e Práticas Diversas. As Práticas Corretas são as práticas amidistas e as Práticas Diversascompreendem as demais práticas budistas.

As Práticas Corretas são: 1 – Leitura de Sutras; 2 – Contemplação; 3 – Adoração; 4 – Recitação do Nome; 5 – Louvor e Oferendas ao Buda Amida.

Shan-tao privilegia a Recitação do Nome (Jap. Shômyô) como a Prática Principal que conduz ao Ir-Nascer, definindo as outras quatro como Práticas Auxiliares. A Recitação é a única prática por ele considerada eficaz em proporcionar a salvação aos entes profanos e ignorantes, escravos das paixões e carregados de pesadas culpas. Os presentes versículos do Shoshinge sintetizam as idéias de Shan-tao sobre o Nembutsu.

 

5. Sonhos e Visões: Ao concluir sua obra, Shan-tao esclarece que a mesma lhe foi revelada por um monge que aparecia em seus sonhos. Adverte ainda que a obra deve ser conservada com respeito e cuidado como se fosse um Sutra, nenhuma palavra devendo ser omitida ou acrescentada. Isso me recorda o relato feito por Carl Gustav Jung a respeito de suas conversações com um velho sábio de nome Philemon, personificação das forças de seu inconsciente, detentoras de um saber além da mente consciente, bem como o processo de redação de seus Septem Sermones Ad Mortuos. Devo lembrar também a teoria estruturalista da criação literária que nos remete a casos em que o escritor percebe que sua obra se faz como que por si mesma, à revelia de sua vontade pessoal. Algo semelhante ocorre com a literatura dita “psicografada”, tão popular nos meios espíritas brasileiros, e com o método conhecido como “escrita automática”, preconizado pelo surrealista André Breton.

 

6. A Dupla Fé Profunda: Dentre as formulações doutrinárias de Shan-tao, é de fundamental importância o conceito de Dupla Fé Profunda, que Shinran transcreve no Livro da Fé (Shin no Maki) do Kyôgyô Shinshô:

A Fé Profunda consiste em crer em profundidade. Temos aqui dois itens. O primeiro consiste em crer profunda e firmemente que sou um ente profano carregado de culpas e males, errante através de nascimentos e mortes em que me vejo mergulhado desde um passado imemorial, sem encontrar nenhuma possibilidade de libertação. O segundo consiste em crer profunda e firmemente que os quarenta e oito Votos do Buda Amida atraem e acolhem os seres viventes que, entregando-se ao Poder daqueles Votos sem a menor dúvida ou hesitação, certamente hão de alcançar o Ir-Nascer.

(Seiten, págs. 215-216)

 

7. A Parábola do Caminho Branco Entre os Dois Rios: Outra célebre passagem de Shan-tao transcrita por Shinran (cf. Seiten, págs. 219-221) é a Parábola do Caminho Branco Entre os Dois Rios (Jap. Niga Byakudô). Limito-me a apresentar aqui um breve resumo:

 Um viandante caminha sozinho por uma planície deserta, na direção leste-oeste. De repente, vê à sua frente dois rios que impedem seu caminho, um rio de fogo ao sul e um rio de água ao norte, ambos largos e profundos. Entre os dois, um estreito caminho branco, medindo não mais que quatro ou cinco polegadas de largura, é constantemente varrido pelas águas e pelas chamas e conduz à margem ocidental. O viandante, que vinha sendo perseguido por feras e bandidos, se encontra só diante desse obstáculo. Ele se vê num impasse. Se parar, será pego pelas feras e pelos malfeitores. Se avançar, perecerá engolido pelas águas ou pelas chamas. De qualquer forma, opta por tentar a travessia. Ouve então uma voz proveniente da margem oriental onde ele se encontra que lhe brada:

– Amigo! Prossiga por este caminho com determinação, pois ele é o único! Não há nenhum perigo de morte! Se você se detiver, certamente morrerá!

E da margem ocidental também alguém o chama, dizendo:

– Siga! Vá direto em frente com o pensamento correto e o coração unificado! Eu o protegerei! Não tema de maneira alguma o risco de cair na água ou no fogo!

Animado por essas duas exortações, o homem se dispõe a prosseguir. Mal dá dois passos, ouve as vozes dos perseguidores que tentam dissuadi-lo:

– Volte, amigo! Esse caminho é perigoso, você não conseguirá atravessá-lo! Você certamente irá morrer! Fique conosco, não lhe faremos mal!

O homem segue em frente, concentrando-se no caminho, surdo a esses apelos. Em um instante atinge a outra margem onde um amigo o espera, liberto para sempre das dificuldades que o afligiam.

A margem oriental é o mundo profano em que vivemos, a margem ocidental é a Terra Pura da Suprema Felicidade. Os bandidos e as feras que fingem ser amigos são os órgãos dos sentidos, os agregados psicofísicos e os elementos materiais de que são compostos os seres viventes e o mundo em que vivem. A planície deserta representa o fato de que em nossa vida seguimos sempre os maus amigos, em vez dos bons. Os rios de água e fogo são o desejo e a cólera que impulsionam os seres viventes. O estreito caminho branco é um pensamento puro a almejar pelo Ir-Nascer na Terra Pura, que se manifesta em meio aos torvelinhos de desejo e cólera. O percurso leste-oeste seguido pelo viandante é a orientação das práticas do mesmo para o Ir-Nascer na Terra Pura do Ocidente. O brado que o interpela a partir da margem oriental é a voz do Buda Sakyamuni, perpetuada nos Sutras. O chamado que ecoa a partir da margem ocidental é a intenção salvífica do Voto Original de Amida. Os bandidos que tentam dissuadir o viandante de prosseguir são os seres humanos apegados a concepções e práticas errôneas, que em vão apregoam suas falsas doutrinas. A libertação atingida pelo homem ao alcançar a margem ocidental é libertação final dos nascimentos e mortes e o amigo que ele encontra é o Buda.

Nessa parábola parecem ecoar ressonâncias da escatologia do Zoroastrismo da Pérsia, em que encontramos a travessia da estreita ponte de Cinvat que a alma deve fazer guiada pela figura feminina da Daena. Esta aparece aos olhos do homem virtuoso como uma belíssima donzela de dezesseis anos que o conduz em segurança à outra margem. O homem perverso, porém, a verá como uma megera horrorosa que o fará cair no abismo em baixo da ponte. Em uma escritura apócrifa do Judaísmo, o Segundo Livro de Esdras, existe uma imagem parecida:

Outro exemplo: há uma cidade construída e erguida numa planície, ela está cheia de coisas boas.

Entretanto, sua entrada é estreita, sobre um precipício; há água do lado direito e fogo do lado esquerdo.

Existe um único caminho que passa entre os dois, isto é, entre o fogo e a água, tão estreito que apenas um homem sozinho consegue atravessá-lo.

Se agora essa cidade for oferecida a um homem como herança, como poderá ele entrar na posse da mesma, a não ser transpondo a perigosa passagem diante dele?

(II Esdras 7, 6-9)

 

Lembro ainda que a passagem através do fogo e da água é um tema iniciático presente em vários contextos, como, por exemplo, na ópera A Flauta Mágica de Mozart.