A GRANDE PRÁTICA

 

No capítulo referente à Prática do Kyogyoshinsho, Shinran (1173-1262) distingue as pequenas práticas e a Grande Prática. A Grande Prática consiste na recitação do Nome do Buda da Luz Livre de Impedimentos. Esta é a prática também chamada “Nembutsu apenas”. Enquanto a Grande Prática é uma só, as pequenas práticas são muitas. As pequenas práticas são nossas, tanto no sentido de serem concebidas e criadas por nós, como por sermos nós que as exercitamos. E por serem executadas por nós, supõem  nosso esforço e disciplina para que se realizem.

A Grande Prática, ao contrário, não depende de nós. Não foi por nós concebida nem podemos exercê-la. A Grande Prática é a prática do Buda, aquela que é por Ele realizada em pról da nossa libertação. Consiste na recitação do nome do Buda da Luz Livre de Impedimentos. A Luz de Amida é chamada Livre de Impedimentos (um de seus atributos) pois nada pode impedi-la de aclarar, iluminar, ao contrário da luz física, ante a qual se pode opor um obstáculo.

Mas se a Grande Prática é a recitação do Nembutsu, esta recitação não é aquela que fazemos quando pensamos em recitar o Nembutsu e dizemos “Namo Amida Butsu”. Uma recitação realizada por nós não é a Grande Prática. Pode ser, isto sim, uma consequencia da Grande Prática. Recitando o Nembutsu por nós, Amida nos chama, buscando acordar-nos para Sua existência e Sua ação, que são a condição única para nossa salvação. Chamando-nos, Amida tenta nos fazer ver que estamos sendo conduzidos, de modo infalível, à Plenitude. O chamado do Buda é a Grande Prática, o Nembutsu do Outro Poder. Com este chamado, nossa atenção vai sendo orientada em sua direção. O lugar de onde Amida nos chama é a Terra Pura. Estamos aqui neste Saha (mundo de ilusão) e Amida, de lá da Terra Pura, nos chama. Imaginemos que estivéssemos numa rua e alguém nos chamasse. Naturalmente nos voltaríamos para a direção de onde o chamado viesse. Para lá, nossa atenção seria atraída, em virtude do chamado. Por isso o Voto inusitado do Bodhisattva Dharmakara. Ao invés de retornar ao mundo, como fazem, em geral, os Bodhisattvas, Dharmakara concebeu buscar entrar no Nirvana, desde que de lá pudesse abrir as portas do Nirvana a todos os seres através do chamado. É do interior da Terra Pura que vem o chamado que ressoa no Saha, no Samsara. E este chamado vem para todos, indiscriminadamente, sem condições, sem requisito de virtude ou qualificação. Se fosse de outra forma, sempre haveria alguém que não seria salvo pelo Voto, por não alcançar as qualificações e a libertação não seria universal. Mas o chamado se dirige a todos igualmente. Chama o ser humano, tal como ele é aqui e agora. Chama-nos já, neste instante mesmo, enquanto ainda somos falíveis, mesquinhos, errôneos. O chamado não indaga como somos. Quer apenas libertar-nos, salvar-nos do sofrimento em que nos debatemos neste mundo de cegueira e ignorância.

O caráter universal da libertação pelo Voto tem sido motivo de controvérsias desde o tempo de Shinran pois envolve aqueles que, do ponto de vista humano, são considerados maus. Mas suponhamos que passássemos junto a um lago e víssemos alguém, em desespero, afogando-se. Supondo ainda que dispuséssemos de uma corda que nos possibilitasse salvar aquele que se afoga, será que perguntaríamos pelos seus méritos, pelas suas virtudes, para vermos se ele merecia ser salvo? Não. Até mesmo nós que não somos Budas, que somos tão pouco caridosos e compreensivos, nada perguntaríamos. Atiraríamos a corda pois só nos importaria salvar da morte quem alí se afogava. Se assim o faríamos nós, quanto mais não o fará, por nós, um Buda.

A Prática de Amida, a Grande Prática, este chamado do Buda a todos os seres para que sejam libertados tal como são, é a única omniabrangente, universal. As pequenas práticas são todas parciais e seletivas pois se restringem àqueles que são capazes de realizá-las. E a Grande Prática foi formulada porque a natureza Búdica sabe quão pouco o homem pode ou consegue fazer para libertar-se. Mas o Poder  da natureza Búdica é ilimitado e para ela não há obstáculos. Por isso também, a Grande Prática é a única prática perfeita por ser concebida e praticada pelo Buda. E toda pequena prática é imperfeita justo porque foi concebida e é praticada por seres imperfeitos como nós.

Tolos como somos, primeiro achamos que temos que nos libertar a nós mesmos. Confiamo-nos ao que concebemos como instrumento de transformação de nós mesmos e dedicamo-nos às pequenas práticas. Ao início, não temos ainda atenção ao que está sendo feito por nós e o queremos fazer por nós mesmos. É como se quizéssemos levar água a uma fonte para que o rio existisse. Só que da fonte já jorra água e o rio corre sem que o percebessemos. E da fonte sempre jorra mais água do que aquela que lhe poderíamos levar pois não somos fontes. A pouca água que conseguíssemos levar, de uma fonte foi vertida.

Eis porque o Budismo da Terra Pura, surge como fecho de conclusão da mensagem de Siddharta Gautama, o Buda histórico. Anuncia o que, ao fim, descobrimos: o Buda faz pelo homem o que o homem não é capaz de fazer por si mesmo e o faz exatamente por isso.

 

 Shogyo Gustavo Pinto

 07 de março de 1988