NOTAS SOBRE O SHOSHINGE – 8

Rev. Prof. Dr. Ricardo Mário Gonçalves

 

A Luz do Coração Compassivo, que nos envolve e atrai, eternamente resplandece, a nos proteger.

Ainda que ela já tenha dissipado as trevas da ignorância,

As nuvens e a neblina da avidez, do desejo, da ira e do ódio

Sempre toldam os céus da Verdadeira Fé.

É tal como a luz solar: ainda que ela seja toldada por nuvens e neblina,

Abaixo destas continua claro, não há trevas.

 

1. Considerações Gerais: Aqui a metáfora da luz solar que permanece a brilhar através das nuvens é evocada para descrever a ação salvadora da Grande Compaixão do Buda Amida que envolve o coração tocado pela Fé com um firme abraço protetor , embora este esteja tomado pela ignorância, pelo desejo e pela cólera, os três venenos que nos impedem de ter a clara visão do Real.

 

2.Questões de Vocabulário:

2.1.Coração = referência à Grande Compaixão do Buda Amida. Por isso, acrescentamos o termo compassivo à tradução em português, para torná-la mais clara.

2.2.Ignorância (sânscrito avidya) = literalmente, ausência de luz ou de visão.. Termo aparentando a Veda (Sabedoria como Visão), vocábulo que tem a mesma raiz que o verbo latino vedere (ver).

2.3.Avidez e desejo (jap. ton-ai, sanscr. tanha) = note-se que o termo japonês ai (amor), correspondente ao sânscrito trisna tem, no contexto budista, uma conotação negativa, pois designa o desejo incontrolável, doentio, que nos abrasa como uma sede ardente.

2.4.Ira e ódio (jap. shinzô, sansc. kroda) = a cólera é um sentimento negativo porque, além de perturbar a serenidade da mente, é um gravíssimo obstáculo à conquista da Iluminação.

2.5.Nuvens e neblina = metáfora referente às paixões que atuam como um véu a impedir a clara visão da realidade exterior e interior.

 

3. Ainda sobre o conceito de Salvação no Budismo Shin: A Salvação no Budismo Shin não consiste em se tornar feliz, na transformação do mau em bom ou na eliminação das paixões mundanas. Consiste em obter a visão clara, ou o Olhar Búdico que nos mostra quão ilusória e falaz é a imagem de felicidade que acalentamos, e nossa verdadeira situação de um ente mau, carregado de paixões negativas que agora se nos apresentam tais como elas são. Em suma, nosso eu é iluminado pelo Olhar Búdico. O Buda que nos ilumina nos é revelado através de nosso eu que é iluminado. A tomada de consciência de nossas paixões é, ela própria, a prova de que estamos sendo iluminados. É dessa forma que aquele que obtém a Fé é sempre iluminado e guardado pela Luz de Amida. Ainda que dia e noite as paixões continuem a se manifestar, elas não são mais obstáculos para nós. Pelo contrário, ficamos mais certos do poder do Voto Original, cujo significado se torna mais claro para nós. Tal é o sentido dessa metáfora da luz solar e das nuvens e névoas, que nos ajuda a dissipar as incertezas que freqüentemente se manifestam em nossa vida espiritual. A Luz de Amida, que não conhece impedimentos, penetra nas profundezas de nosso coração, expondo-nos a totalidade de nossas mazelas, e não a fração delas que nos é acessível pela introspecção ou pela psicanálise. No dizer do Prof. Hisao Inagaki, da Associação Internacional de Estudos de Budismo Shin, essa Luz atua em vários níveis e toma várias formas, de acordo com as necessidades dos seres a serem salvos, podendo aparecer inclusive nos sonhos dos devotos, ou, no instante de sua morte, como um guia luminoso que vem para conduzi-los à Terra Pura.

 

4. O Buda como divindade solar: Nesta, como em outras passagens das Escrituras Sagradas, a luz solar é empregada como uma metáfora para indicar a Luz Búdica. A maior parte das antigas civilizações considerava o Sol um ser divino, por causa de sua luz e de seu calor vivificante. Na Mitologia Japonesa temos a Deusa Amaterasu Ômikami, também chamada de Hirume, a Mulher-Sol, considerada uma emanação de Amida pelo Mestre Zonkaku (1290-1377), filho do 3º Grão-Mestre do Honganji,Kakunyo, neto de Shinran. Na tradição budista, muitas vezes o Buda é comparado ao Sol. A imagem do Buda, que toma como modelo a de Apolo, o deus grego do Sol e da Luminosidade, tem aspectos solares evidentes, como os raios emitidos a partir de seu corpo dourado. Da mesma forma com que, no mundo físico, temos o Sol como centro de nosso sistema planetário a ilumina-lo e a aquece-lo, podemos conceber o Buda como um Sol Espiritual a iluminar e a aquecer nosso coração. No Budismo Esotérico o Buda Universal e Eterno é chamado de Mahavairocana (Dainichi, em japonês), o Grande Sol. O simbolismo solar, onipresente nas narrativas sobre a vida do Buda Sakyamuni, fez com que, no século XIX, o orientalista francês Èmile Sénart duvidasse da existência histórica do mesmo, interpretando-o como mito solar.

Assim como no Budismo o Sol é a imagem da Sabedoria Búdica, na teologia pagã greco-romana tardia, impregnada de neoplatonismo, Hélios, o Deus-Sol, é visto como imagem física do Nous, o Intelecto Supremo. Veja-se, por exemplo, o tratado denominado Do Rei Hélios, de autoria do Imperador Juliano, dito o Apóstata (331-363). No Paganismo Romano Tardio, temos o Culto do Sol como Sol Invencível (SOL INVICTUS), sincretizado com o deus solar persa MITHRA.

Em um estudo sobre o significado simbólico da luz e da chuva, René Guénon nos fala de antigas representações do Sol em que emanam do mesmo, alternadamente, raios retilíneos e ondulantes, os primeiros representando a luz e estes últimos o calor vivificante do Astro Rei. Podemos aplicar essa representação ao Buda Amida, vendo nos raios retilíneos a Sabedoria que elimina as trevas da ignorância, e nos ondulados a Grande Compaixão vivificante e salvadora. Lembra ainda Guénon, a propósito de representações do Coração do qual emanam raios retilíneos e ondulados, que muitas vezes os símbolos do Sol e do Coração são equivalentes, o que é exatamente o caso da presente passagem do Shoshinge.