NOTAS SOBRE O SHOSHINGE – 13

Rev.Prof. Dr. Ricardo Mário Gonçalves

 

Ele revelou que a Prática Difícil é penosa como percorrer uma estrada terrestre,

E insistiu para crermos que a Prática Fácil é agradável como navegar sobre a água.

Disse que quando a Fé Inquebrantável no Voto Original do Buda Amida for despertada,

No mesmo instante ingressaremos espontaneamente no Estado Firmemente Estabelecido,

E que, apenas recitando sempre o Nome do Tathagata,

Deveremos retribuir o benefício do Grande e Misericordioso Voto.

 

1. Considerações Gerais: Vimos, no segmento precedente, o pensamento de Nagarjuna, com ênfase na idéia de crítica aos dois extremos, o ser e o não-ser. A idéia de que o Dharma Búdico é um “meio” entre dois extremos aparece já como uma afirmação do Buda Sakyamuni, em textos do Cânon Pali. Um exemplo conhecido é a definição do Dharma como via média entre o ascetismo e o hedonismo, contida no Primeiro Sermão em Sarnath. Temos também, num sutra do Samyutta Nikaya a definição do Dharma como “meio” (majjhenadhamma) entre o Uno e o Múltiplo. Por Uno entenda-se aqui a tradição bramânica ortodoxa e por Múltiplo uma referência à Escola Materialista ou Lokayata.

No presente segmento, o Caminho do Nembutsu é apresentado como Caminho Fácil, a partir das explanações feitas por Nagarjuna no capítulo “Do Caminho Fácil” (Vol. V, Cap. IX) do “Tratado Expositivo das Dez Terras”.

 

2. Questões de Vocabulário:

2.1. Prática Difícil = A prática do Budismo segundo as Escolas do Poder Próprio (Jiriki), em que o praticante busca se realizar com seus próprios esforços.

2.2. Prática Fácil = A prática do Budismo segundo a Tradição da Terra Pura, em que o praticante alcança a realização graças ao Outro Poder (Tariki), ou seja, o Poder do Voto Original do Buda Amida.

2.3. Espontaneamente = através da operação do Outro Poder.

 

3. Sobre a autoria dos textos sagrados:

Shinran cita em seu trabalho duas obras de Nagarjuna, o “Tratado da Grande Perfeição da Sabedoria” (Daichidoron) e o “Tratado Explicativo das Dez Terras”(Jujubibasharon). É interessante lembrar que ele não cita a principal obra de Nagarjuna, ou seja, o “Tratado da Via Média” (Madhyamaka-sastra).

Ora, as duas obras utilizadas por Shinran são consideradas suspeitas pela moderna crítica filológica, já que não temos nem o original sânscrito nem traduções tibetanas das mesmas. Dispomos apenas das traduções chinesas feitas por Kumarajiva. Por causa disso, muitos estudiosos as consideram apócrifas. O que podemos concluir disso? Cairiam por terra os fundamentos doutrinários do Budismo Shin pelo fato da autoria dos ditos tratados ser posta em dúvida? Não necessariamente, como pretendemos mostrar.

O empenho em se encontrar a todo custo um autor individual de um texto, religioso ou não, é uma atitude ocidental moderna. No Oriente, principalmente no que diz respeito aos textos religiosos, isso sempre foi considerado um problema de menor importância. O que importa é a mensagem passada pelos textos, não a identidade do redator dos mesmos.

Ocorre com os textos atribuídos a Nagarjuna o mesmo problema que temos em relação aos textos bíblicos. Por exemplo, antes do advento da moderna ciência bíblica que utiliza o método histórico-crítico, sempre se acreditou que o Pentateuco foi escrito por Moisés, que os Salmos foram compostos pelo Rei Davi e que os Provérbios, o Cântico dos Cânticos e o Eclesiastes foram escritos pelo Rei Salomão. Hoje tudo isso ruiu por terra. O Pentateuco é o produto final de um lento processo redacional levado a cabo por quatro escolas distintas de pensadores e escribas designadas como Eloísta (E), Javista (J), Sacerdotal (P) e Deuteronomista (D). Pouquíssimos dos 150 Salmos podem ser considerados como autenticamente davídicos e quase nada do que é atribuído ao Rei Salomão remonta ao mesmo. Muitos dos Provérbios, por exemplo, são simples transcrições ou adaptações de originais egípcios. Porventura tais constatações abalam a autoridade dos referidos textos como Escrituras Sagradas? É claro que não. A única coisa que muda é que não devemos considerar mais “Moisés”, “Davi” e “Salomão” como nomes de autores, mas apenas como designações simbólicas que constelam em torno de si textos dotados de certas características de conteúdo e estilo literário.

Voltando aos textos nagarjunianos, pouco importa se eles foram ou não escritos pelo punho do indivíduo Nagarjuna. O que importa é saber se eles possuem ou não as características próprias daquilo que poderíamos chamar de “escola nagarjuniana”, por exemplo, o emprego da Dialética do Vazio. Todos os estudiosos consideram essa parte como não sendo sujeita a discussão, no que diz respeito a nossos dois textos. Portanto, há que aceitá-los como nagarjunianos, já que eles nos transmitem o mesmo tipo de conteúdo que encontramos nas obras autênticas de Nagarjuna, como o Madhyamaka-sastra.

 

4. Kumarajiva, o tradutor de Nagarjuna:

É interessante nos determos um pouco a analisar a vida e a obra de Kumarajiva, a quem devemos, não só a tradução dos tratados nagarjunianos, como também a do Sutra de Amida (Amidakyô). A vida de Kumarajiva, como a de Nagarjuna, é plena de aventuras rocambolescas. Nascido na cidade-oásis de Kucha, na Ásia Central, em 344 ou 350, filho de uma princesa local e de um indiano de origem bramânica, começa a estudar sânscrito ainda criança e ingressa na Ordem Budista em companhia de sua mãe aos sete anos de idade. Dois anos mais tarde, mãe e filho partem para a Cachemira onde estudam o Hinayana com o Mestre Bandudhuta. Depois, regressam à Ásia Central, detendo-se por um ano em Kachgar, onde Kumarajiva prossegue seus estudos de Hinayana e se dedica também ao aprendizado dos Vedas, da Gramática, da Retórica e da Astrologia. Também se aplica ao estudo do Mahayana com o Mestre Suryasoma e se converte ao Grande Veículo. Terminada sua formação monástica, regressa a Kucha onde adquire fama de mestre erudito. Convida seu antigo Mestre Bandudhuta para vir a Kucha e o converte ao Mahayana após um longo debate. Sua reputação chega até a China, então fragmentada em vários reinos rivais. O soberano da Dinastia Ch’in Anterior, no ano de 382, manda uma força expedicionária a Kucha para buscá-lo. O general comandante, um bárbaro brutal, arrasa a cidade e leva Kumarajiva como prisioneiro. No caminho de volta, ouvindo falar da queda da Dinastia Ch’in, o general funda um reino próprio, Liang Posterior, capital Liang-shou, onde Kumarajiva permanece dez anos como cativo. O general não tem o mínimo respeito por seu douto prisioneiro. Diverte-se, obrigando-o a montar a cavalo só para vê-lo cair da montaria. Põe à prova sua fidelidade aos Preceitos Monásticos, trancando-o numa sala com iguarias finas, vinhos e uma bela garota. Kumarajiva sucumbe à prova… Para garantir sua sobrevivência e sua segurança, procura adquirir fama de mago, curandeiro e milagreiro. Entrementes, aproveita o cativeiro para estudar chinês intensamente. Em 401 o reino de Ch’in Posterior destrói o Estado de Liang e Kumarajiva é recebido com todas as honras pelo rei Yao Hsing em Ch’ang –an, a antiga Capital Imperial. O rei funda para ele uma Oficina de Tradução onde Kumarajiva vive o resto de sua vida dedicado ao trabalho de tradução de textos budistas, com a colaboração de discípulos e colaboradores. Conta-se que o rei Yao Hsing, que respeitava muito Kumarajiva por sua inteligência, lamentava que um sábio tão genial estivesse fadado a morrer sem deixar descendentes, por causa da obediência ao Preceito do celibato monástico. Presenteou-o então com um harém de dez belas garotas. Kumarajiva passava os dias trabalhando na Oficina de Tradução e as noites no harém, desfrutando as meninas. Costumava dizer a seus colaboradores:

-Sou um lótus nascido do lodo; procurem ver em mim a flor e ignorem o lodo.

Conta-se ainda que quando ele faleceu em 413, as chamas da pira funerária não consumiram sua língua, prodígio que foi encarado como um sinal a atestar sua sabedoria.

O Budismo da China e do Japão deve a Kumarajiva a tradução de muitos de seus mais importantes textos sagrados. Além do Sutra de Amida e dos tratados nagarjunianos, traduziu ele o Sutra do Lótus da Lei Excelente (Hokkekyô), o Ensinamento de Vimalakirti (Yuimagyô) e o Sutra do Diamante (Kongokyô). Cercou-se de uma plêiade de discípulos e colaboradores que, sob sua orientação, levaram avante o trabalho de tradução como uma empresa coletiva. Seng-chao (Sôjô) (374-414), um de seus principais discípulos, legou-nos os “Comentários ao Ensinamento de Vimalakirti”(Chûyuimagyô), registro das atas das discussões que se desenrolaram na Oficina quando da elaboração da tradução do Yuimagyô. Os discípulos davam suas opiniões sobre passagens do texto e a Kumarajiva cabia dar a última palavra. Nessa obra podemos surpreender a Oficina de Tradução em pleno funcionamento.

Kumarajiva foi mais do que um tradutor, também é celebrado como um mestre de doutrina e um exegeta. O Budismo Sino-Japonês o venera como Patriarca da Escola San lun (Sanron), guardiã e transmisora do pensamento nagarjuniano.

Um excelente estudo sobre a dialética nagarjuniana e sua introdução na China através do trabalho de Kumarajiva e seu círculo é:

ROBINSON, Richard H. – Early Madhyamika in India and China, Madison, The Wisconsin University Press, 1967.

 

5. O Avatamsakasutra e a Doutrina das Dez Terras:

Segundo o Budismo Mahayana, a caminhada do Bodhisattva é feita através de uma série de etapas ou graus que recebem a denominação de terras (Bhumi) ou moradas. A doutrina comumente aceita nas escolas budistas japonesas nos fala de dez terras(dasabhumi).

As principais escrituras em que é exposta a Doutrina das Dez Terras são as seguintes:

1)O Avatamsakasutra (jap. Kegongyô) ou Sutra do Ornamento de Flores, especialmente o capítulo do mesmo denominado Dasabhumikasutra ou Sutra das Dez Terras, praticamente um Sutra independente.

2)O Dasabhumivibhasasastra (jap. Jûjûbibasharon) ou Comentário Explicativo do Sutra das Dez Terras atribuído a Nagarjuna (c. 150-250), conservado apenas na tradução chinesa de Kumarajiva (344-413), extremamente importante para a Tradição da Terra Pura.

3)O Dasabhumisastra ou Tratado das Dez Terras de Vasubandhu (320-400).

4)O Yogacarabhumisastra ou Tratado da Terra da Prática do Yoga atribuído aMaitreya (270-350) ou a Asanga (390-470), irmão de Vasubandhu.

A volumosa Escritura conhecida como Avatamsakasutra é um dos mais importantes textos sagrados do Budismo Mahayana. Trata-se, na realidade, de uma coletânea de Sutras independentes entre si compostos em diferentes datas, sistematizada provavelmente na Ásia Central por volta do século IV. Existem três traduções chinesas: 1) a de Buddhabhadra, composta por volta de 420, em 60 volumes; 2) a deSiksananda, elaborada entre 695 e 704, em 80 volumes; 3) a de Prajna, entre 796 e 797, em 40 volumes, que compreende apenas o capítulo final, denominado em sânscrito Gandavyuhasutra (O Sutra do Brinco). Existe também uma tradução tibetana, composta no século IX por Vairocana Raksita, em 6 vol., de conteúdo semelhante ao das duas primeiras traduções chinesas.

Segundo a tradição conservada pelas escolas sino-japonesas Kegon e Tendai, o Avatamsakasutra foi pregado imediatamente depois da iluminação do Buda Histórico Sakyamuni. Entretanto, como ninguém conseguiu entendê-lo, o Buda tomou a iniciativa de colocar seus ensinamentos em um nível compreensível a seus interlocutores, passando então a pregar os Agamas, Sutras de conteúdo elementar, correspondentes ao chamado Budismo Primitivo.

Uma peculiaridade interessante desse Sutra é que nele o Buda Sakyamuni permanece silencioso, integrado em profundo samadhi com o Buda Cósmico Vairocana, enquanto a pregação é feita pelos Bodhisattvas, que abordam os principais pontos doutrinários do Grande Veículo: a vacuidade de todos os fenômenos, a Consciência vista como substrato do Real, a contingência universal, o caráter inefável da realidade e a interpenetração de todos os fenômenos. Particularmente curioso se mostra este último ponto, já que se trata de uma concepção holográfica dos fenômenos, em que cada fenômeno individual é, ao mesmo tempo, ele próprio e o reflexo de todos os demais, de modo que cada uma das partes que formam o Todo contém, de certa forma, a Totalidade, sendo assim transcendidas as noções de Um e de Múltiplo: A Unidade e a Pluralidade são unidas assim sem contradição nem obstáculos. Essa concepção holográfica do Cosmos inspirou, no Japão, a construção do Grande Buda de bronze do Templo Todaiji de Nara, representando Vairokana, por ordem do Imperador Shômu. Ela foi reproduzida, em tamanho menor, nos Kokubunji ou templos provinciais.

O que agora nos interessa é a extensa pregação sobre o Caminho do Bodhisattva feita no capítulo denominado Dasabhumikasutra e no capítulo final, o Gandavyuhasutra.

No Dasabhumikasutra, o Bodhisattva Vajragarbha descreve as dez terras do Caminho do Bodhisattva a seis companheiros reunidos no mundo celeste dos deuses Paranirmitavasavartin.

No Gandavyuhasutra, também denominado Dharmadhatupravesa (jap. Nyûhôkaibonou Capítulo do Ingresso no Mundo do Dharma) é narrada a peregrinação em busca da Sabedoria empreendida pelo Bodhisattva-menino Sudhana (jap. Zenzai Dôji), guiado pelo Bodhisattva Manjusri. Durante sua caminhada, encontra ele 53 Bodhisattvas dos quais aprende uma série de pontos doutrinários do Mahayana. Desfilam ali os mais variados tipos humanos da Índia da época: o monge, a monja, o brâmane, o asceta, o heresiarca, o comerciante, o marinheiro, a cortesã, etc. O derradeiro personagem que ele encontra é o Bodhisattva Samantabhadra (Virtude Universal) que enuncia dez votos considerados a base do Caminho do Bodhisattva.

A propósito desse texto, cito aqui um dado curioso sobre a cultura japonesa, freqüentemente evocado como um exemplo da profunda influência exercida pelo Budismo sobre a mesma. Durante o Período Tokugawa (1600-1868), uma das mais importantes estradas do Japão era a Via Tokaido, que ligava Edo, a Tóquio de hoje, então capital do Xogunato, a Kyoto, a capital imperial. Ao longo da mesma foram estabelecidas 53 estações de posta com estalagens para o repouso dos viajantes. O número 53 foi inspirado, evidentemente, pelo Gadavyuhasutra. Existe uma curiosa obra literária desse período, o Tokai Dôchû Hizakurige (Viajando a pé pela Via Tokaido) um romance humorístico (Kokkeibon) do escritor Jippensha Ikku (1785-1831) que narra as aventuras hilariantes de dois gaiatos, Yajirobei e Kitahachi, que fazem a viagem a pé de Edo até Kyoto. Trata-se de um pastiche humorístico da peregrinação do Bodhisattva-menino Sudhana.

O Avatamsakasutra é citado várias vezes pelo Mestre Shinran em seu tratado fundamental Kyôgyôshinshô, e, segundo o Prof. Daiei Kaneko, pertence à mesma família literária em que se encontram os Três Sutras da Terra Pura.

O Avatamsakasutra nos descreve, na verdade, um longo caminho em 52 etapas. Antes de chegar às Dez Terras, há toda uma caminhada preparatória que compreende:

10 níveis de fé;

10 viharas (moradas);

10 caryas (práticas);

10 parinamas (transferências de méritos).

O processo final de obtenção da iluminação, uma vez atingida a 10ª Terra, é dividido em duas etapas, 51ª e 52ª:

51ª – etapa semelhante à iluminação;

52ª – etapa da Iluminação Maravilhosa, em que a Iluminação Búdica é finalmente alcançada!

A Fé, primeira etapa dessa longa caminhada, é definida no Avatamsakasutra da seguinte maneira:

A Fé é o Fundamento do Caminho e a Mãe das Virtudes; faz crescer e alimenta todos os bons Dharmas, elimina as redes das dúvidas, liberta da correnteza do apego e indica o Supremo Caminho do Nirvana.

(Seiten, pág. 230)

O Alcance da Fé equivale ao Despertar do Bodhicitta (Bodaishin), isto é, da firme decisão de alcançar a iluminação.

Após a longa preparação inicial, o Bodhisattva chega à primeira das Dez Terras; a partir desse ponto não é mais um Bodhisattva comum, é um Bodhisattva Nobre ou Sagrado(Arya Bodhisattva) que certamente atingirá seu supremo objetivo: a Iluminação ou Realização Búdica.

Eis uma visão geral das Dez Terras, cada uma das quais correspondendo a um dos Dez Paramitas ou Perfeições ensinadas pelo Budismo Mahayana:

1 – Terra Jubilosa (pramuditabhumi, kangiji) – Perfeição do Dom (Generosidade, Desapego).

2 – Terra Imaculada (vimalabhumi, rikuji) – Perfeição da Moralidade (Obediência aos Preceitos).

3 – Terra Iluminadora (prabhakaribhumi, hokkoji) – Perfeição da Paciência.

4 – Terra Radiante de Luz (arcismatibhumi, enneji) – Perfeição do Esforço (Perseverança).

5 – Terra Difícil de Conquistar (sudurjayabhumi, nanshôji) – Perfeição da Concentração.

6 – Terra à Vista do Real (abhimuktibhumi, genzenji) – (Perfeição da Sabedoria).

7 – Terra do Distanciamento (durangamabhumi, ongyoji) – Perfeição dos Hábeis Meios Salvíficos.

8 – Terra Inabalável (acalabhumi, fudoji) – Perfeição do Voto.

9 – Terra da Excelente Inteligência (sadhumatibhumi, zenneji) – Perfeição da Força.

10 – Terra das Nuvens do Dharma (dharmamegabhumi, hounji) – Perfeição do Conhecimento.

Lembro aqui que o esquema das “Dez Terras” inspirou o Mestre Kobo Daishi a elaborar um sistema de “Dez Moradas” em suas obras Jujushinron (Tratado das Dez Moradas do Coração) e Hizohoyaku (A Chave Secreta da Câmara Oculta) em que, ao mesmo tempo em que sistematiza uma classificação das escolas de Sabedoria de seu conhecimento, budistas ou não, descreve o processo de desenvolvimento e aprofundamento do espírito humano em dez etapas:

1ª morada: o substrato sensitivo e instintivo do homem – a vida animal.

2ª morada: o despertar da consciência moral: doutrinas éticas e sociais (Confucionismo, Preceitos Budistas).

3ª morada: o despertar da consciência religiosa: religiões teístas (Taoísmo, Bramanismo, Xintoísmo).

4ª morada: o Caminho do sravaka (Pequeno Veículo).

5ª morada: o Caminho do pratyekabuddha (Pequeno Veículo).

6ª morada: Escola Hosso (Cittamatra) (Transição para o Grande Veículo).

7ª morada: Escola Sanron (Madhyamika) (Transição para o Grande Veículo).

8ª morada: Escola Tendai (Grande Veículo).

9ª morada: Escola Kegon (Grande Veículo).

10ª morada: Escola Shingon de Budismo Esotérico (Veículo do Diamante ouVajrayana).

O Prof. Yusho Miyasaka, da Escola Shingon, propõe que este esquema seja utilizado como um modelo para situarmos as escolas reformadas do Budismo de Kamakura dentro de uma visão abrangente de todo o Budismo. Para isso, mantemos as nove primeiras moradas, sendo a décima substituída por uma das escolas de Kamakura. Para entender essa formulação, é preciso lembrar que:

1 – A prática do Budismo Esotérico é entendida por Kobo Daishi como sendo o Yoga dos Três Segredos (Sanmitsu Yuga): (a – segredo da ação: gestos simbólicos ou mudras; b – segredo da palavra: recitação de mantras e dharanis; 3 – segredo do pensamento: contemplações e visualizações).

2 – O Mestre Kakuban (1095-1143), reformador da Escola Shingon, admitia que, na impossibilidade da prática dos Três Segredos, bastaria a prática de um único segredo, como via substitutiva.

Vistas então na perspectiva de Kakuban, como vias substitutivas do Yoga dos Três Segredos, ou Escolas de Um Único Segredo, as escolas de Kamakura obedeceriam à seguinte classificação:

Segredo da Ação: Budismo Zen (meditação sentada).

Segredo da Palavra: Escola Jodo (Honen) e Escola de Nichiren (recitação doNembutsu e do Daimoku).

Segredo do Pensamento: Budismo Shin (primazia da experiência da Fé do Voto Original).

No caso de Shinran, portanto, o Budismo Shin ocuparia a Décima Morada no lugar da Escola Shingon. Lembro que na visão de Shinran as Doutrinas Tendai e Kegon – importantes alicerces doutrinários do Zen e do Shingon -, conservam uma grande importância, medida pelo número de citações de seus Sutras fundamentais no Kyôgyôshinshô:

Avatamsakasutra: 8 citações.

Sutra do Nirvana (complemento do Sutra do Lótus, na Escola Tendai): 36 citações.