SERMÃO PARA A CERIMÔNIA DE HOONKO EM 2001

Shogyo Gustavo Pinto

 

O Namo Amida Butsu que dizemos é, na verdade, um eco do Namo Amida Butsu que o Buda da Luz e Vida Infinitas diz por nós. Só que ressoamos pouco e mal. Amida repete por nós, sem cessar, ininterruptamente, “Namo Amida Butsu”. Mesmo quando dormimos, Ele continua nos chamando.

Mas não ouvimos a maioria dos Nembutsu que Ele diz buscando nos despertar. Na caverna que somos, a voz de Amida é abafada pelo alarido de nossos estridentes desejos vociferando quereres. Só deixamos que ressoem alguns poucos, dentre todos os “Namo Amida Butsu” que Ele recita. Faz-se o eco, quando Amida consegue acalmar nosso ego atarefado ou entretido, quando adormece ao menos um pouco a ânsia que nos tem cada dia. Todos os outros chamados se esvaem em nossa desatenção.

Observando-me no cotidiano, percebo que escuto poucas vezes por dia o Chamado de Amida. Só nessas ocasiões me lembro de recitar o Nembutsu. Quando penso que Yokan (1032-1111) respondia ao Chamado 60.000 vezes por dia, me dou conta de que vivo muito esquecido de Amida. É terrível esquecer assim de meu melhor amigo. Ninguém faz tanto por mim quanto Ele e eu me esqueço de agradecer-lhe. Quero ser como Genza San que murmurava sem cessar “muito obrigado, muito obrigado” mas logo em seguida me esqueço de faze-lo. Um pensamento qualquer, alguma tolice insignificante ocupa minha consciência e um véu denso oculta em mim o único desejo sensato, justo aquele que o Buda me deu. Quando me dou conta de que isto ocorreu, já nem sei quanto tempo se passou. Arrependo-me mais uma vez de minha ingratidão, desejo corrigir-me mas sempre acabo esquecendo de novo. Todos os dias é assim. Ó, Namo Amida Butsu, dê um jeito em mim porque eu não consigo me dar um jeito!

Noto também quantas coisas me aborrecem só porque não me lembro de que a única coisa que importa é nascer na Terra Pura e isto já me foi assegurado pelo Voto. Nas inúmeras ocasiões em que esqueço que já fui salvo, aborreço-me por coisas que então me parecem importantes. As mentiras, mesquinharias, falsidades ou traições de que todos somos com frequencia alvos, os meus próprios erros, tanto os grandes quanto os pequenos, tudo isto me enraivece quando lhes atribuo primazia na minha atenção. Os textos sagrados já me ensinaram que todas as condições que permeiam a existência são fruto de causas e condições do passado e vêm ao presente para aprendermos o que só assim nos pode ser ensinado. Sei, portanto, que nada há a lamentar, nem pode algo ser desfavorável já que nos ensina o necessário. Tudo isto eu compreendi e percebi como verdadeiro. Mas quando surge o que chamam de problema, escorrego de volta às interpretações estereotipadas do passado e me esqueço do que aprendi.  Nos momentos raros de lucidez em que me lembro de Amida, as nuvens se desvanecem e nada do que foi antes um problema resta como tal. Ah, que tristeza eu me esquecer do Namo Amida Butsu! Por outro lado, que maravilha extraordinária quando escuto Amida me lembrando que já fui salvo!

Há também muitas coisas que me preocupam só porque me esqueço da Confiança que Amida está sempre tentando incutir nesta minha mente insegura. Preocupo-me com o meu próprio futuro. Preocupo-me mais ainda com o passado, o presente e o futuro dos meus filhos, com as pessoas que amo, com a sobrevivência da nossa Missão no Brasil, com tantas coisas cujo rumo que tomarão ignoro. Mas se me preocupo, é porque em algum lugar de mim mesmo persiste escondido um temor de que algo possa dar errado, de que algum mal possa me suceder ou ao que amo. Preocupo-me, portanto, por pura falta de confiança em Amida. Fomos salvos para a Eternidade e o mundo de ilusão em que sonhamos acordados não tem nenhuma consistência. Namo Amida Butsu!

Quando paro e penso nisto, todos os meus temores revelam-se infundados, ridículos. Lembram-me o medo que sentiu um menino chamado Gustavo, quando uma tênue réstia de luz deitava à parede do quarto, à noite, o que ele não sabia ser só a sombra de um prosaico paletó pendurado no cabide. Volta-me, vívida, a imagem de minha mãe atendendo ao choro assustado do filho e secando-lhe as lágrimas com a luz que dissipava toda fantasmagoria. Creio-me adulto mas vejo-me ainda o mesmo menino. Mudaram só as sombras, permanecem os infundados temores. A Luz, hoje noutra dimensão, volta a dissolver o que amedronta. Basta abrir os olhos mas tantas vezes nem percebo que os tenho cerrados. Quando Amida consegue me fazer ver, sei que o realmente importante já de há muito está resolvido! Já fomos salvos! Estamos sendo levados para a Terra Pura pelo próprio Buda Amida! Quando abro os olhos, eu sei isto! Não tenho nenhuma dúvida! O problema é que logo depois, ante um fato qualquer, a memória do que vi se apaga e volto a crer em dramas e tragédias, temo, sofro, sem notar que retomei as ilusões. Que lástima! Namo Amida Butsu!

Já de há muito percebi que Amida não habita só numa Terra Pura incalculavelmente distante, na direção do Oeste. Ele está também presente, como ação poderosa e contínua, neste mundo ilusório. É aqui que Ele nos está conduzindo à Terra Pura, inspirando-nos a Mente Confiante. Seus Boddhisattvas, emissários da Compaixão, são incontáveis e estão em toda parte, velando por cada ser, tal como a mãe amorosa cuida do filho que sofre. O que me surpreende é que eu consiga perder de vista esta monumental verdade e ainda recaia no absurdo de supor que algum evento escape ao plano que Amida concebeu e executa para me salvar.  Não sei como consigo reincidir tanto na ignorância da qual eu próprio já ri. Tento vencê-la e acabo sempre vencido por ela. Namo Amida Butsu!

Quando constato esta minha capacidade de recair em ilusões, descubro também quão persistente é Amida! Até hoje não desistiu de me salvar de mim mesmo! Que incrível! Dou-lhe tantas razões para concluir que eu não tenho mesmo jeito mas Ele não se deixa convencer. É extraordinário! Há quantas vidas Ele vem insistindo comigo? E eu continuo teimosamente aferrado às minhas ilusões. Nem assim Ele desanima. Felizmente devo admitir que Amida é mais teimoso do que eu. Se não desistiu até hoje, não desistirá mais. Ele vai me salvar! Felizmente agora vejo que não escaparei. Serei levado, apesar de mim, para a Terra Pura! Ou melhor, é por ser como sou, que Amida não teve outro jeito senão vir até aqui para me salvar! Namo Amida Butsu!

Muito obrigado, ó Buda, por não teres desistido deste tolo que é o Gustavo. Que alívio, que alegria, saber que há um Buda ainda mais capricornianamente obstinado do que eu, decidido a me salvar sem nem dar trelas à minha resistência.

Seu Poder é tal, que Ele consegue até mandar recados Seus às pessoas ao meu redor, usando este tolo para transmitir Sua sabedoria. Até isso Ele consegue: fazer com que um estafeta trapalhão como eu, entregue Sua correspondência no endereço certo e na hora exata. Namo Amida Butsu!

Para o Poder de Amida, nem mesmo a minha ignorância é impedimento. Deve ser por isso que os textos Sagrados o chamaram de “O Buda da Luz Livre de Impedimentos”. Os antigos Chineses que assim traduziram o Sutra, deviam ser clarividentes que lá do passado deram-se conta de que um dia ainda existiria um insensato renitente como eu mas que nem a minha completa escuridão impediria Amida de clarear o mundo. Namo Amida Butsu!

. . .

“Ó, Gustavo, neste seu Sermão você me fez um pedido quando disse: “Namo Amida Butsu, dê um jeito em mim porque eu não consigo me dar um jeito”. Confie! Faz muito tempo que eu já dei um jeito em você! Fiz um Voto de só me salvar se pudesse salvar você. Eu já me salvei, já o salvei. Mas como sei que você tem dificuldade de confiar, não se preocupe. Eu lhe darei a confiança! Com isso, está tudo resolvido. Agora você pode viver tranquilo. Tudo o que você não conseguia fazer, eu já fiz por você. Aproveite bem a sua vida aí no mundo da ilusão. Procure por mim e você me verá escondido nas cores da aurora e do poente, na face do dia, no rosto da noite, na alegria de cada sorriso, na compaixão por cada pranto. Conte à todos que aí estão junto com você, que eles também foram salvos. Diga-lhes que eu os ajudarei a confiar nisso. E quando o tempo necessário para esta sua vida se completar, eu trarei você direto para o coração do Nirvana, que é a Terra Pura da Suprema Realização. Muitas vezes você me fez esse pedido. Ouça com atenção: Este seu anseio pelo Nirvana, fui eu quem lhe dei, para poder libertá-lo. Agora, para comemorarmos, diga junto comigo: Namo Amida Butsu, Namo Amida Butsu, Namo Amida Butsu”.