O Poder Salvífico do Nembutsu de Sabedoria

1. Considerações Gerais:

Seguem-se agora seis estrofes dos Shozomatsu Wasan (Hinos das Três Épocas) que focalizam o poder salvífico do Nembutsu de Sabedoria que nos é proporcionado pela Compaixão dos Dois Budas – Sakyamuni e Amida. As duas primeiras estrofes, fundamentadas no Surangama Sutra, evocam a figura do Bodhisattva Mahasthamaprapta que ensina a realização através do Nembutsu de Sabedoria. Há que lembrar que para Shinran o Mestre Honen era uma manifestação (nirmanakaya, keshin) do Bodhisattva Mahasthamaprapta (V. Apêndice). As duas últimas estrofes glosam textos do Mestre do Dharma Seikaku, de Agui (1167-1235), companheiro de Shinran na comunidade de Honen em Yoshimizu, autor do Tratado sobre a Fé Exclusiva(Yuishinshô).

 

2. Tradução:

Declarou o Buda da Luz Sem Impedimento:

“Para beneficiar os seres sensíveis do futuro,

Ao Bodhisattva Mahasthamaprapta

Transmiti o Nembutsu de Sabedoria”.

 

Compadecendo-se dos seres sensíveis do mundo impuro,

Mahasthamaprapta nos aconselha o Nembutsu;

Ele abraça as pessoas de Fé,

Introduzindo-as na Terra Pura.

 

Através da Compaixão de Sakyamuni e Amida,

Foi-nos concedido o Anseio pela Realização Búdica;

É ingressando na Sabedoria da Fé

Que nos tornamos gratos para com a Benevolência Búdica.

 

A obtenção do Nembutsu de Sabedoria

É obra do Poder do Voto de Dharmakara;

Sem a Sabedoria da Fé

Como alcançaríamos o Nirvana?

 

É uma grande tocha na longa noite da ignorância!

Não vos entristeçais com a escuridão de vossos olhos de sabedoria!

É uma embarcação no Grande Oceano dos nascimentos e mortes!

Não há que lamentar o peso dos impedimentos de vosso mau karma!

 

Sendo ilimitado o Poder do Voto,

Nosso mau karma, por pesado e profundo que seja, não nos oprime;

Sendo sem limites a Sabedoria Búdica,

Não rejeita os corações distraídos e negligentes.

 

3. Questões de Vocabulário:

3.1. Buda da Luz Sem Impedimento (Jap. Mugekôbutsu) = o Buda Amida.

3.2. Bodhisattva Mahasthamaprapta (Jap. Daiseishi Bosatsu) = A história da transmissão do Nembutsu de Sabedoria ao Bodhisattva Mahasthamaprapta se encontra em uma passagem do Surangama Sutra (Sutra da Marcha Heróica) que também inspirou a Shinran oito estrofes de louvor a esse Bodhisattva arroladas nos Jôdo Wasan(Seiten, págs. 488-489). Há que lembrar que existem duas Escrituras distintas com esse nome. A primeira, cujo título completo é Surangama Samadhi Sutra (Sutra da Contemplação da Marcha Heróica) foi traduzida para o chinês por Kumarajiva entre 402 e 412, compreende dois rolos e figura também no Kangyur tibetano. A segunda, chamada também Buddhosinisa Sutra (Sutra do Usinisa de Buda) (Usinisa – Jap.Butchô –, é a calota no alto da cabeça do Buda, uma das 32 marcas maiores que distinguem o Tathagata do comum dos mortais.), foi, segundo um catálogo chinês, traduzida em Cantão no ano de 705 pelo mestre indiano Paramiti. Compreende dez rolos. Trata-se de um sutra pseudepígrafo composto na própria China e, como tal, foi desmascarado no Japão pelos monges eruditos da Escola Hosso em Nara, no ano de 779, o que não impediu que esse Sutra fosse muito estudado e comentado pelos mestres das Escolas Zen e Shingon da China e do Japão. É esse o Sutra citado por Shinran nos Wasan e no Kyogyo Shinsho (Seiten, págs. 385-386). Existe uma tradução inglesa: The Surangama Sutra, translated by Charles Luk (Lu K’uan Yu), London, Rider, 1966. Encontra-se arrolada na Edição Taishô do Cânon Sino-Japonês, na seção correspondente aos Textos Esotéricos (Mikkyô-bu).

3.3. Nembutsu de Sabedoria (Jap. Chie no Nembutsu) = Sendo o Budismo uma religião gnóstica em que a Salvação é proporcionada pelo Conhecimento, mesmo na tradição da Terra Pura, geralmente vista como um ramo devocional do Budismo, vemos que o Nembutsu e a Fé estão estreitamente vinculados com a Sabedoria.

3.4. Anseio pela Realização Búdica (Jap. Gansabusshin) = expressão equivalente aDaibodaishin (Grande Bodhicitta).

3.5. Poder do Voto de Dharmakara (Jap. Hozo Ganriki) = o Outro Poder ou Poder do Voto Original de Amida, Buda que, antes de sua realização búdica, era um Bodhisattva de nome Dharmakara, conforme é narrado no Grande Sutra (Daimuryojukyô).

3.6. Longa Noite da Ignorância (Jap. Mumyô Jôya) = essa expressão nos remete a uum famoso versículo do Dhammapada:

Longa é a noite para quem vela, longa é a estrada para quem está fatigado, longa é a série dos nascimentos e das mortes para os insensatos presos à ilusão dos desejos e que desconhecem a Verdadeira Lei. (V, 60)

 

4. Comentário:

O Budismo é uma religião gnóstica que prega a Salvação pelo Conhecimento e, dentre as diferentes escolas budistas, o Shin não é uma exceção. Embora o Shin seja geralmente encarado como uma forma devocional de Budismo, a Fé proposta pelo mesmo como via salvífica está intimamente vinculada à Sabedoria, o que é facilmente perceptível através de uma análise de expressões usadas por Shinran , como shinchi (crer e saber), chie no nembutsu (Nembutsu de Sabedoria) e shinjin no chie(Sabedoria da Fé), estas duas últimas presentes nos  Wasan que aqui analisamos.

Em suma, o Shin não é uma religião à parte do restante do Budismo, é uma modalidade do Caminho Búdico cujos princípios básicos são os mesmos que temos nas demais escolas. A diferença está na soteriologia ou no método de salvação: Enquanto que nas outras escolas o praticante conquista a Sabedoria a partir de seus próprios esforços, no Shin esta lhe é proporcionada juntamente com a Fé, por obra e graça do Outro Poder.

Nos Wasan de que agora nos ocupamos, Shinran, fundamentando-se no Surangama Sutra, expõe a tradição segundo a qual o Nembutsu de Sabedoria foi transmitido pelo Buda Amida ao Bodhisattva Mahasthamaprapta (Seishi, Daiseishi Bosatsu), cuja missão é anuncia-lo aos seres viventes. O mesmo tema é desenvolvido nas oito estrofes de louvor a Seishi que constam dos Jôdo Wasan. Essa ênfase no Bodhisattva Mahasthamaprapta se explica pelo fato de Shinran crer ser ele a divindade essencial(Honji) da qual seu Mestre Hônen seria uma manifestação ou emanação (Suijaku). Em uma anotação à margem dessas oito estrofes dos Jôdo Wasan Shinran afirma enfaticamente: O Bodhisattva Daiseishi é a essência (Honji) do Venerável Genkû (Hônen). (Seiten, pág. 489)

Um importante documento sobre essa crença de Shinran relativa a Hônen é a terceira das 10 cartas de sua esposa, a Senhora Eshin-ni, endereçadas à filha Kakushin-nientre 1256 e 1268, descobertas nos arquivos do Nishi Honganji em 1923. Essas cartas são uma preciosa documentação não só para o estudo da biografia de Shinran, mas também para o conhecimento de aspectos econômicos, sociais e culturais da Idade Média japonesa.

 

APÊNDICE

CARTA DA SENHORA ESHIN-NI

Com certeza, li vossa carta do 1º dia do 12º mês do ano passado (1262), depois do 20º dia do mesmo mês. Primeiramente, quanto ao regresso do Pai à Terra Pura, trata-se de algo que já era esperado, nada mais há a dizer.

Quando ele desceu a montanha, fez um retiro no Pavilhão Hexagonal (Rokkaku-dô)para orar por sua futura libertação. Na madrugada do 95º dia, o Príncipe Shôtoku se lhe manifestou em uma revelação num sonho, transmitindo-lhe uma mensagem. Assim, na mesma madrugada, ele deixou o Pavilhão e, em busca de condições que lhe propiciassem a futura salvação, procurou o local onde se encontrava o Venerável Hônen e com ele se encontrou. Desde então, da mesma forma com que fizera o retiro de cem dias no Pavilhão Hexagonal, por cem dias visitou o Venerável, chovesse ou fizesse sol, superando todos os obstáculos. Ouviu ele, por várias vezes, o Venerável Mestre discorrer com empenho a respeito da futura salvação esclarecendo se tratar do Caminho da Libertação dos nascimentos e mortes, aberto aos bons e aos maus, sem distinção. Após tomar sua firme decisão, o pai sempre se dirigia ao local em que seu preceptor se encontrava, ainda que as pessoas o advertissem que ele poderia cair nos caminhos do mal. Dizia ele que costumava retrucar a muitas pessoas que assim fazia porque sua condição era a de alguém que por incontáveis eras vinha perambulando por nascimentos e mortes.

Ora, quando eu estava num local denominado Go da Fronteira, situado emShimotsuma de Hitachi, tive um sonho: era como se estivesse no ritual de consagração de uma capela. Essa capela fora construída voltada para a direção leste. Parecia ser a véspera do dia da celebração principal. A capela estava iluminada por muitas velas que ardiam diante dela. Do lado oeste dessa iluminação, havia algo semelhante a um torii(arco monumental), em cuja trave horizontal estava dependurada uma pintura búdica. Uma das figuras representadas não tinha o rosto de um Buda, era apenas uma auréola em meio a um brilho. Não se percebia uma forma distinta, era apenas uma luz que brilhava. Uma outra figura ostentava claramente as feições de um Buda, e então eu perguntei:

–          Que Buda é esse?

Um desconhecido respondeu:

–          Aquele que é apenas uma luz é o próprio Venerável Hônen, é o Bodhisattva Mahasthamaprapta.

Então eu perguntei:

–          Quem é o outro?

–          É o Bodhisattva Avalokitesvara, ou seja, é o monge Zenshin.

Ao ser surpreendida com essa resposta, despertei e percebi então que se tratava de um sonho.

Tive, pois, esse sonho. Já tinha ouvido dizer que não devemos contar essas coisas a ninguém. Além disso, mesmo que contasse isso a alguém, certamente não seria aceito como verdadeiro. Contei ao pai apenas a parte relativa ao Venerável Hônen, e ele então observou:

–          Existem vários tipos de sonhos, esse é certamente um sonho que diz a verdade. Em vários lugares tivemos casos de pessoas que tiveram sonhos em que o Venerável foi visto como uma emanação de Mahasthamaprapta. Além do mais, este se apresenta como luz.

Eu não disse ao pai que o havia visto como Avalokitesvara, mas depois disso, na intimidade de meu coração, nunca mais o vi como uma pessoa comum. Há que tomar consciência de tudo isso. Seja lá como tenha sido o momento de seu passamento, jamais tive a menor dúvida a respeito disso. Além disso, embora seja algo muito comum, Masukata guardou tudo profundamente na memória, jamais se esquecendo de seus últimos momentos por ele testemunhados, inclusive levando-se em conta os laços entre pai e filho. Isso me deixa muito contente.

                                               


 

Esta nota contém as palavras reveladas por Avalokitesvara na madrugada do 95º dia do retiro de 100 dias feito pelo pai no Pavilhão Hexagonal, ao ter deixado a montanha, na época em que servia como doso (oficiante subalterno) no Monte Hiei. Registrei-as aqui para que possais vê-las.

                                       (Carta 3, Seiten, págs. 616-618)