NOTAS SOBRE O SHOSHINGE – 9

Rev. Prof. Ricardo Mário Gonçalves

 

Quando recebemos a Fé, vemos, respeitamos e nos alegramos amplamente;

Transcendemos, instantânea e horizontalmente, os cinco planos do mal.

Todos os seres humanos profanos, bons e maus,

Ouvindo o Voto Universal do Tathagata, e nele crendo,

São considerados pelo Buda detentores da grande e suprema compreensão.

Tais pessoas são chamadas de “Lótus Brancos”.

 

1. Considerações Gerais: Aqui é descrita a vida dos seres humanos perfeitos na Fé, os chamados Myôkônin. Não são nem místicos exaltados que se embriagam com a fé, nem idealistas que buscam conquistar a perfeição se esforçando passo a passo. São pessoas que, graças à Fé doada gratuitamente pelo Buda, transcendem instantaneamente os planos do mal, tornando-se merecedores dos maiores louvores por parte do Buda.

 

2. Questões de Vocabulário:

 2.1. Vemos = há que lembrar que, na tradição indiana, ver equivale a saber ou conhecer (Veda).

 2.2. Transcendemos, instantânea e horizontalmente = no vocabulário de Shinran, a transcendência instantânea, súbita, alcançada através do Outro Poder do Voto Original que opera em nós através da Fé que nos é doada; contrasta coma a transcendência vertical e gradual, que o homem busca conseguir passo a passo, através de seu próprio esforço. O termo transcendência horizontal aparece no Grande Sutra (Seiten, pág. 57) e em Shan-tao, mas só o Mestre Shinran lhe deu ênfase.

2.3. Os cinco planos do mal = 1) o mundo infernal; 2) o mundo dos fantasmas famintos; 3) o mundo dos animais; 4) o mundo dos seres humanos; 5) o mundo dos Devas (deuses). Nota-se que, na cosmovisão do Budismo, os Deuses não são seres transcendentes, pertencem à esfera do relativo, embora eles sejam mais poderosos, perfeitos e sábios do que os homens.

2.4. Buda = o Buda Histórico Sakyamuni.

2.5. Detentores da grande e perfeita compreensão = expressão extraída do Sutra denominado Assembléia do Tathagatha da Vida Imensurável, variante do Grande Sutra.

2.6. Lótus Branco (do sânscrito Pundarika) = o lótus é uma flor pura que brota do lodo impuro; da mesma forma, a pureza do homem de fé brota no solo impuro das paixões mundanas. A expressão foi extraída do Sutra da Contemplação da Vida Imensurávelque diz:

Deveis saber que aqueles que rememoram o Buda (praticam o Nembutsu) são como lótus brancos entre os homens; os Bodhisattvas Avalokitesvara e Mahasthamaprapta tornam-se seus bons amigos; sentar-se-ão no Local da Iluminação e nascerão na Família dos Budas.

(Seiten, pág. 122)

 

Shinran transcreve no Kyôgyôshinshô as mesmas palavras do Sutra:

 

Também é dito (no Sutra da Contemplação); – Deveis saber que aquele que praticar o Nembutsu será um Lótus Branco entre os homens.

(Seiten, pág.246)

 

Lembro, também, a presença da palavra sânscrita Pundarika no título original do Sutra do Lótus da Lei Excelente (Saddharma-pundarika-sutra), importante Texto Sagrado do Budismo Mahayana.

 

3. Shinran se explica: As “Notas às Inscrições dos Rolos Sagrados”.

 Existe uma obra em que Shinran explica, em linguagem facilmente compreensível a seus discípulos, passagens capitais das Escrituras Sagradas e de seus próprios textos. Trata-se do Songô Shinzô Meimon (Notas às Inscrições dos Rolos Sagrados) em que são explicadas as passagens escriturísticas com que eram enriquecidos os rolos sagrados entronizados nos altares, contendo o Nome Sagrado de Amida (Songô) e os retratos dos Patriarcas (Shinzô).

Os dois primeiros versos da passagem do Shoshinge que estamos examinando são explicados por Shinran, nessa obra, da seguinte maneira:

Quando recebemos a Fé, vemos, respeitamos e nos alegramos amplamente;

A passagem acima diz respeito às pessoas que, alcançando a Fé, experimentam uma grande alegria e se tornam respeitosas. A grande alegria é aquela que experimentamos depois de obter algo que nos deve alegrar amplamente.

Transcendemos, instantânea e horizontalmente, os cinco planos do mal.

A passagem acima nos ensina que, ao alcançarmos a Fé, instantânea e horizontalmente transpomos os cinco planos do mal.

Transcendência instantânea e horizontal: Por instantânea se entende o fato da condição de integrante da Assembléia dos Retamente Estabelecidos ser alcançada imediatamente, sem intervalo de tempo ou de dias. Horizontal significa transversal e se refere ao Poder do Voto do Tathagata; designa o Outro Poder. Transcender significa transpor. O Grande Oceano dos Nascimentos e Mortes é transposto facilmente, transversalmente, sendo então alcançado o Despertar do Supremo Nirvana.

(Seiten, pág. 532)

 

4. Verticalidade, Horizontalidade e transcendência: A expressão transcender horizontalmente soa como algo insólito em nossos ouvidos. Ela nos convida, pois, a examinar as noções de verticalidade, horizontalidade e transcendência em Shinran e no Simbolismo Universal das Religiões.

Shinran sistematiza as noções de verticalidade e horizontalidade em algumas passagens do Livro da Fé (Shin no Maki) do Kyôgyôshinshô (Seiten, pags. 236-237; 242-243), no Gutokushô (Notas do Néscio Tonsurado) (Seiten, págs. 424-425) e na 8ª Carta do Mattôshô (Lâmpada para os Tempos Futuros). Limito-me aqui a transcrever essa última passagem, em que essas complexas noções são sintetizadas de forma simplificada, mas suficiente para os objetivos deste estudo:

 Quanto às Duas Transcendências, temos: 1 – Transcendência Vertical; 2 – Transcendência Horizontal. Agora, nesta Escola da Terra Pura, temos a Transcendência Horizontal. A Transcendência Vertical é a do Caminho dos Ascetas (Shôdômon)e do Poder Próprio (Jiriki).

(Seiten, pág. 604)

Há que lembrar, em primeiro lugar, que o Gutokushô e a 8ª Carta do Mattôshô são textos extremamente importantes, que situam a Doutrina da Terra Pura dentro do contexto mais amplo do Budismo Geral, desfazendo a falsa impressão de que ela possa ser uma forma herética ou aberrante deste último.

A horizontalidade ou transversalidade, no Simbolismo Universal das Religiões, geralmente exprime a contingência, a imanência, a dimensão profana da existência, ao passo que a verticalidade, concretizada em imagens simbólicas como a escada, nos remetem ao movimento ascensional em busca da transcendência. Assim, conforme nos diz René Guénon em Lê Symbolisme de la Croix (O Simbolismo da Cruz), o braço horizontal da cruz exprime as diferentes possibilidades de manifestação da existência humana, ao passo que o eixo vertical nos remete a uma hierarquia espiritual: a parte inferior do mesmo simboliza as modalidades infra-humanas de existência e a porção superior as modalidades supra-humanas. No caso de Shinran, a verticalidade continua a representar a transcendência, limitada, porém, às formas ascéticas de Budismo, em que o homem busca a Libertação através de seu esforço próprio (Jiriki). A horizontalidade, porém, ganha em Shinran um sentido totalmente novo, o de uma outra forma de transcendência, obtida através da Graça Salvífica do Voto Original do Buda Amida (Tariki). É interessante lembrar que, na língua japonesa, o termo horizontal tem o sentido de insólito ou antinatural. Assim, uma morte violenta é denominada ôshi(literalmente, morte horizontal), um comportamento desonesto e impudente é chamado ôchaku (literalmente, vestimenta horizontal) e o ato de insistir teimosamente numa atitude que todos condenam é expresso pela frase yokoguruma wo osu (literalmente,empurrar o carro transversalmente, de lado). No Budismo anterior a Hônen e Shinran, era considerado normal e natural que os chamados bons obtivessem a Realização Búdica através da ascese e das boas obras, e que os maus permanecessem prisioneiros das esferas penosas da existência. A Doutrina da Terra Pura vem revelar uma forma insólita, antinatural de transcendência, a salvação dos maus por obra e graça do Outro Poder. Daí o fato dessa transcendência ser qualificada como horizontal.

 

5. Myôkonin, Myôkônin-den e Ôjô-den: Os seres humanos praticantes do Nembutsu e perfeitos na Fé, são designados pelo Patriarca Shan-tao como pessoas maravilhosas e excelentes (Myõkônin). No Budismo Shin, essa palavra é usada para designar os devotos celebrados como modelos exemplares de Fé. Tanto na China como no Japão se desenvolveu uma literatura hagiográfica composta por coleções de biografias de devotos considerados perfeitos modelos de Fé, denominadas Ôjô-den (Relatos sobre Nascidos) e Myôkônin-den. As coletâneas denominadas Ôjô-den remontam à China. Uma das mais antigas e célebres do Japão é a Nihon Ôjô Gokuraku-ki (Relatos Japoneses sobre os Nascidos na Terra da Suprema Alegria), compreendendo 45 biografias, composta pelo aristocrata letrado Yoshishige no Yasutane (séc. X), discípulo e amigo do Patriarca Genshin (942-1017). As coletâneas de biografias de devotos humildes do Budismo Shin, intituladas Myôkônin-den começaram a ser elaboradas por volta de 1830 e sua composição se estendeu até o período entre as duas guerras mundiais. O Prof. Daisetz Teitaro Suzuki escreveu vários estudos sobre os Myôkônin, como o livro Mística Cristã e Budista, já editado no Brasil.