NOTAS SOBRE O SHOSHINGE – 14

Rev. Prof. Ricardo Mário Gonçalves

1. Introdução ao Tratado Expositivo das Dez Terras: O Tratado Expositivo das Dez Terras (Sanscr. Dasabhumika-vibhasa-sastra, jap. Jujûbibasharon), texto nagarjuniano em que Shinran fundamenta sua exposição sobre a Doutrina de Nagarjuna sobre o Nembutsu, compreende 35 capítulos distribuídos em 17 volumes. O termo vibhasa do título em sânscrito significa: exposição variada, pormenorizada, aprofundada ou detalhada. Contrariamente ao que é prometido pelo título, o texto não é um comentário abrangente sobre as Dez Terras. Compreende apenas extensas considerações sobre a primeira Terra – Terra Jubilosa – e sobre parte das explanações do Avatamsakasutra sobre a segunda Terra – Terra Imaculada. Isso faz com que alguns intérpretes considerem que o texto esteja incompleto. Parte do original teria se perdido, ou então Kumarajiva não teria conseguido completar a tradução. Assim, o Prof. Iwao Hosokawa, que considera o “Tratado” uma produção da fase de maturidade de Nagarjuna, nos diz que o objetivo do mesmo não seria uma exposição pormenorizada sobre as Dez Terras, mas apenas a apresentação de uma reflexão, destinada aos leigos e profanos, sobre a realização através da Fé, centrada nas duas primeiras Terras. Já o Prof. Ichijô Ogawa nos diz que o objetivo do “Tratado” é definir o Bodhisattva como alguém que alcançou o estágio dito sem retrocesso, o que acontece já na primeira Terra. Diz ainda que Nagarjuna focaliza o aspecto altruísta do Caminho do Bodhisattva – a prática de beneficiar os seres sensíveis – que concerne exatamente às duas primeiras Terras, correspondentes à Perfeição do Dom (danaparamita) e à Perfeição dos Preceitos (silaparamita).

Resumirei brevemente o “Tratado”:

Cap. 1 – Introdução: O Autor explica os objetivos da obra, através de 13 perguntas e respostas. Adverte solenemente que permanecer nos Veículos do Pequeno Veículo equivale, para o Bodhisattva, a uma morte espiritual pior que a queda nos infernos, pois se trata de um isolamento infindo em um “ensimesmamento” egoísta.

Cap. 2 – Ingressando na Primeira Terra: Aqui é apresentado um panorama geral das Dez Terras. Destaco a Primeira Terra como ingresso no estado sem retrocesso, sobre o qual o Autor discorrerá longamente; a Quinta Terra, em que o Bodhisattva se aplica às artes e ciências – o que está na base dos chamados “Caminhos” que florescem na Cultura Japonesa -; e, finalmente, a Sétima Terra, em que o Bodhisattva corre o risco de estacionar, julgando que, com a prática dos Seis Paramitas nas Terras anteriores chegou já ao fim do Caminho. Diz ainda que até o Buda Sakyamuni precisou de auxílio do Outro Poder – do Poder do Buda do Passado Dipankara – para alcançar a Sabedoria. Lembremos ainda que até a Sétima Terra o Bodhisattva precisa fazer muito esforço para progredir, mas que daí em diante, caso escape ao risco de estagnação, progredirá espontaneamente, sem esforço.

Cap. 3 – A Forma da Terra: O Autor apresenta uma descrição geral da Primeira Terra e apresenta o Buda Amida como Buda do Tempo Presente.

Cap. 4 – Purificando a Terra: O Autor explica como na Primeira Terra o Bodhisattva deve purificar sua vida. Destaca-se a como ponto de partida do Caminho Búdico e como elemento purificador da mente.

Cap. 5 – Explicando o Voto: O Autor explica como o Bodhisattva, tomando consciência de sua missão, enuncia Dez Grandes Votos. Este é o último dos capítulos preliminares destinados a uma apresentação geral do Bodhisattva da Primeira Terra.

Cap. 6 – O Despertar do Bodhicitta: Voltando ao tema fundamental da formulação dos Votos na Primeira Terra, o Autor explica que o Despertar do Bodhicitta (ardente anseio por alcançar o Despertar) depende do Princípio da Co-manifestação Dependente (o encadeamento de causas e condições auxiliares).

Cap. 7 – A Mente Disciplinadora: Alguns dos anseios despertados segundo o Princípio da Co-manifestação Dependente têm continuidade, outros não. O Autor discorre sobre as razões que conduzem à cessação destes últimos. Faz também uma solene advertência contra a atitude diabólica dos pregadores que distraem seus ouvintes com considerações sobre a realização de anseios mundanos, afastando-os do Dharma. Eis aqui uma carapuça que se ajusta perfeitamente na cabeça dos pregadores tele-evangelistas que pululam por aqui difundindo a famigerada Teologia da Prosperidade…

Cap. 8 – O Estado Sem Retrocesso: Neste capítulo, o Autor explica que a principal característica do Bodhisattva da Primeira Terra é o alcance do Estado Sem Retrocesso.Isso se dá quando o Bodhisattva, depois de ter assimilado perfeitamente o Princípio do Vazio, tem a experiência da Visão do Buda que lhe proporciona contentamento, pureza e alegria.

Estes três últimos capítulos mostram quão importante é para o Bodhisattva o despertar do Bodhicitta e quão difícil é para ele perpetuar esse estado de espírito.

Cap. 9 – O Caminho Fácil: Este capítulo, de importância fundamental para o Budismo Shin, será estudado detalhadamente mais adiante.

Cap. 10 – A Eliminação dos Karmas: Dando seqüência ao capítulo anterior, dedicado ao encontro do Bodhisattva com o Voto Original de amida, o Autor explica que esse encontro é o ponto de partida para a eliminação dos karmas.

Cap. 11 – As Virtudes do Discernimento: O Autor prega as virtudes da contrição.

Cap. 12 – O Discernimento do Dom: O Autor explica como a contrição desperta a Grande Compaixão no coração do Bodhisattva, que passa então a praticar a virtude do Dom.

Cap. 13 – O Discernimento da Doação do Dharma: Explica que a doação do Dharma é o Supremo Dom.

Cap. 14 – A Forma da Tomada de Refúgio: Explica a ardente tomada de refúgio nas Três Jóias.

Os capítulos restantes explicam aspectos diversos da vida dos Bodhisattvas na Primeira e na Segunda Terra.

 

2. O “Caminho Fácil”: O Cap. 9 – O Caminho Fácil é de capital importância para o Budismo Shin. Nele Nagarjuna explica o Caminho Fácil do Nembutsu, que não é uma alternativa ao Caminho Difícil das práticas ascéticas, mas sim uma nova perspectiva que se abre como uma seqüência ou continuação do mesmo. A passagem fundamental é a seguinte:

Existem vários ensinamentos búdicos. É como no mundo profano, onde temos caminhos difíceis e fáceis. Por exemplo, as estradas terrestres são difíceis de serem percorridas, mas a navegação pela água é fácil e agradável. Assim também ocorre com o Caminho do Bodhisattva, onde há muitas variações. Há os que buscam o estado “sem retrocesso” através de perseverantes esforços, mas há os que, através do Caminho Fácil da Fé, rapidamente adquirem a convicção de que todos os fenômenos são desprovidos de nascimento, compreendem assim a vacuidade de todos os Dharmas e alcançam o estado “sem retrocesso”, no qual os seres viventes não são negligenciados.

Mais adiante, diz o Autor:

Caso o Bodhisattva queira alcançar nesta vida o estado “sem retrocesso” e obter o Supremo Despertar, deverá mentalizar os Budas das Dez Direções (e, especialmente, Amida, o representante dos Budas do Presente), recitando seus nomes.

Vemos aqui que, segundo o autor do “Tratado”, o Nembutsu é o Caminho Fácil que conduz ao estado sem retrocesso, que consiste basicamente na compreensão da vacuidade de todos os fenômenos, o que, conforme a doutrina básica de Nagarjuna, dissolve a dicotomia entre Samsara e Nirvana.

 

3. Shinran e o Budismo de Nagarjuna: Segundo o Prof, Ichijô Ogawa, o alicerce doutrinário do ensinamento de Shinran está na Teoria do Vazio e na supressão das dicotomias entre Samsara e Nirvana. Não se trata de eliminar as paixões mundanas, mas sim de vivê-las tendo plena consciência de sua natureza vazia. Tal vivência é o próprio Nirvana. O Prof. Ogawa cita, em apoio de sua tese, uma passagem doNyûshutsunimonge (Hino dos Dois Portais de Ingresso e de Saída) de Shinran:

 Obtendo-se o certo ir-nascer na Terra da Paz e Alegria, o próprio Samsara é o Grande Nirvana; tal é o Caminho Fácil, cujo nome é Outro Poder.

(Seiten, pág.465)

 

O Prof. Osamu Hirano, em seus comentários ao Gutokushô (Notas do Tonsurado Ignorante) também assume a mesma postura:

O espírito do Mahayana está em não afundar em nenhum dos dois (Samsara e Nirvana). Se eu disser: – “Pratiquei o Nembutsu e nasci na Terra Pura, não tenho mais nada a ver com o mundo”, estarei afundando na Terra Pura. Se, pelo contrário, eu valorizar o dinheiro a ponto de dizer que o Nembutsu é uma ferramenta para ganhar dinheiro, estarei afundando no mundo profano.

Expositores ocidentais como Huston Smith e Philip Novak também enxergam na doutrina nagarjuniana o fundamento do ensinamento de Shinran:

A História do Budismo da Terra Pura não teria florescido em tantos lugares e durante tanto tempo como o fez, se não contivesse características que os filósofos encontraram apontando para a natureza profunda das coisas. No caso do Budismo da Terra Pura, o mais influente pensador foi Nagarjuna, reverenciado como o primeiro dos Sete Patriarcas.

Sua filosofia do Caminho do Meio (madhyamika), do sunyata(vazio) serve como o provável fundamento principal filosófico dos ensinamentos da Tradição da Terra Pura, especialmente como explicado pelo Terceiro Patriarca T’an-luan.

A grande realização de Nagarjuna, um brâmane do século III d.C., que se converteu ao Budismo, foi ter levado ao seu extremo lógico a doutrina do anatta do Buda, de que todas as coisas, porque são condicionadas por todas as outras coisas, não têm existência própria e são vazias de existência própria. O que deve ser explicado aqui é como a introvisão de Nagarjuna sobre o vazio pavimenta o caminho para a visão de um universo cheio de graça do Budismo da Terra Pura.

O Buda ensinou que os seres, confusos como são pelos seus desejos e medos ignorantes, são capturados por um ciclo vicioso chamado de Samsara, e a libertação desse ciclo – Nirvana – é o mais alto objetivo humano. Como um discípulo leal do Buda, Nagarjuna afirmou isso, mas também encontrou muitos budistas lutando por um Nirvana que parecia infinitamente distante, porque estavam sutil e corrosivamente apegados a duas idéias: a primeira, que o Nirvana é uma “coisa” definitiva a ser alcançada; e, a segunda, que deve ser alcançado por egos individuais. Nagarjuna viu ambas as idéias como fracassos de se entender o ensinamento- chave do Buda de que tudo é vazio de existência própria.

A surpreendente inferência de Nagarjuna é de que se tanto o Samsara quanto o Nirvana são vazios de existência própria, eles são, em última análise, um só. Nas suas próprias palavras, “não há a menor diferença entre os dois”. Eles não são duas realidades separadas, mas formam um vasto campo de ascenções vazias, vistas através do véu da ignorância (e assim prendem) ou à luz da sabedoria (e assim libertam). Ainda podemos falar de um “caminho” do Samsara ao Nirvana, mas apenas como uma verdade provisória. A verdade definitiva é que o Nirvana não é infinitamente distante, mas infinitamente próximo, alcançando-nos graciosamente, como se fosse – e é na verdade – o chão sobre o qual estamos de pé, se ao menos soubéssemos disso. Apenas as vendas do egoísmo escondem essa verdade de nós.

Dessa posição vantajosa, outros pensadores do Mahayana podiam agora ver seu caminho para a Terra Pura desimpedido, pois se a grande cegueira é o egoísmo, então qualquer meio que cure essa cegueira é um meio hábil (upaya) para se alcançar a iluminação. E uma vez que a maioria das pessoas acha a verdade personificada mais eficiente, a veneração do Buda Amitabha pelo devoto do Budismo da Terra Pura por meio do Nembutsu é a melhor maneira para que ele internalize a visão intuitiva de Nagarjuna.

SMITH, Huston e NOVAK, Philip – Budismo – Uma Introdução Concisa, S. Paulo, Cultris, 2004, págs. 175-176.) (Corrigi em alguns pontos o texto da tradução brasileira, que é péssima!)

 

4. A Posição de Dogen: A não-dicotomia entre Samsara e Nirvan também é encontrada em Dogen (1200-1253), Mestre Zen, Patriarca Fundador da Escola Soto, não obstante seu forte apego à mais estrita tradição monástica budista, que contrasta fortemente com o budismo laico de Shiran. Ele expõe sua posição no texto denominado Shôji (Samsara) que integra sua vasta obra Shobogenzo (O Tesouro do Olho do Verdadeiro Dharma).

“Porque um Buda está no nascimento-e-morte (Samsara), não há nenhum nascimento-e-morte”.

Também se diz: “Porque um Buda não está nem no nascimento e nem na morte, um Buda não é iludido pelo nascimento-e-morte”.

Estas afirmações são a essência das palavras de dois mestres Zen, Jiachan e Dingshan. Não deveis negligenciá-las, certamente, porque são palavras daqueles que alcançaram o caminho.

Aqueles que querem ser livres do nascimento e da morte devem entender o significado destas palavras. Procurar por um Buda fora do nascimento-e-morte será o mesmo que tentar ir para o país meridional de Yueh com vosso carro voltado para o Norte, ou como tentar ver a Ursa Maior enquanto vos voltais para o Sul; vós vos obrigareis a permanecer ainda mais no nascimento-e-morte e a perder o caminho da emancipação.

Entendei apenas que nascimento-e-morte em si é Nirvana. Nada há, como nascimento-e-morte para ser evitado; nada há como Nirvana para ser buscado. Somente quando perceberdes isto, estareis livres do nascimento-e-morte.

É um equívoco supor que o nascimento se transforma em morte. O nascimento é uma fase que é um período inteiro de si mesmo, com seu próprio passado e futuro. Por esta razão, no Dharma do Buda o nascimento é entendido como nenhum-nascimento. A morte é uma fase que é um período inteiro de si mesmo, com seu próprio passado e futuro. Por esta razão, a morte é entendida como nenhuma-morte.

No nascimento, nada mais há do que nascimento e na morte nada mais há do que morte. Conseqüentemente, quando chegar o nascimento, encarai e realizai o nascimento, e quando chegar a morte, encarai e realizai a morte. Não os eviteis nem os desejeis.

Este nascimento-e morte é a vida do Buda. Se tentardes excluí-los, perdereis a vida do Buda. Se a eles vos apegardes, tentando neles permanecer, também perdereis a vida do Buda, e o que restar será a mera forma do Buda. Somente quando não desgostardes do nascimento-e-morte nem por eles ansiardes, entrareis na mente do Buda.

No entanto, nem analiseis nem faleis sobre isto. Apenas pode de lado vosso corpo e mente, esquecei-os e jogai-os na casa do Buda; então tudo será feito pelo Buda. Quando seguirdes isto, estareis livres do nascimento-e-morte e tornar-vos-eis Budas sem esforço ou cálculo. Quem então continua a pensar?

Há um modo simples de se tornar um Buda. Quando refreardes vossas ações perniciosas, não fordes apegados a nascimento-e-morte, fordes compassivos para com todos os seres sensíveis, respeitosos para com os decanos e bondosos para com os noviços, sem excluir ou desejar qualquer coisa, sem nenhum pensamento ou preocupação planejados, sereis chamados de Budas. Não busqueis mais nada.

Ambos, Dogen e Shinran tomam a doutrina de Nagarjuna como fundamento para superar a dicotomia entre Samsara e Nirvana. E não estaremos errados se sentirmos no texto de Dogen, considerado um mestre do Budismo do esforço próprio (Jiriki), algo como um discreto perfume do Tariki (Outro Poder)… Vemos que aqui também se dá a reconciliação e a coincidência dos opostos.

Finalizo lembrando a figura do Prof. Shuichi Maida, estudioso de Shinran e de Dogen.