RENNYO SHONIN HOJE

Este trabalho tem como objetivo apresentar  ao público de língua portuguesa, Rennyo Shonin (1415-1499), uma das mais notáveis figuras na História do Budismo nipônico. A bibliografia sobre Cultura Japonesa disponível em nosso idioma é ainda escassa e Rennyo Shonin permanece quase desconhecido aos leitores do idioma de Camões. Possa esta breve apresentação servir de intróito à vida e obra de Rennyo Shonin, ajudando a compreender seu legado e importância para o mundo contemporâneo.

O ser humano nunca é um fenômeno extemporâneo, desvinculado de seu tempo e contexto. Nem por isso será pelo meio ambiente apenas explicado. Homem e mundo interdependem. Somos seres situados, interagindo com o contexto em que surgimos e no qual se desdobra nossa existência. De nossas circunstâncias recebemos influência tanto quanto também as transformamos. Isto sempre sucede mesmo quando somos personagens obscuros e anônimos, o que não foi o caso de Rennyo Shonin. Quinhentos anos depois dele, uma obra é editada reunindo artigos redigidos em idiomas de povos que vivem em distintos continentes, discutindo a importância de sua influência. Em algum momento de sua vida teria ele imaginado tais conseqüências para sua luta? Nem sequer eram conhecidos no Japão de seu tempo, alguns dos locais e povos que hoje o reverenciam.

Rennyo Shonin teve um  papel decisivo para o futuro da tradição Budista fundada por Shinran Shonin (1171-1262), a Escola da Terra Pura, Jodo Shinshu, que reúne hoje o maior número de adeptos no Japão. Esta denominação abrange duas vertentes principais, Honganji-Ha e Ohtani-ha, popularmente conhecidas como Nishi e Higashi Honganji. Juntas reúnem não só o maioria da população Budista nipônica, como também o maior número de Templos e monges dentre todas as escolas Japonesas. Estas gigantescas instituições nasceram do espírito de devoção e empreendimento de Rennyo Shonin, numa compreensão original da relação entre o sagrado e o profano. Como veremos em mais detalhe adiante, a obra de Rennyo consolida a manifestação do sagrado no tempo e expande seu alcance no espaço através de um veículo, um “corpo” institucional. Numa analogia livre, o Honganji seria qual o “Nirmanakaya” da doutrina da libertação através do Nembutsu do Outro Poder.

Mas a importância da obra de Rennyo não se restringe ao contexto do Budismo nipônico. A pertinência e eficiência de sua visão da relação entre sagrado e profano o insere num âmbito de questões que pertencem a história das religiões. Sua proposta ultrapassa as vicissitudes da cultura e sociedade Japonesa e discute um problema que diz respeito a toda e qualquer tradição religiosa. O desafio de criar condições para a continuidade e atualização de uma mensagem espiritual no curso da história não se coloca apenas ao Budismo nem somente no Japão. É na verdade questão que se põe à todas as religiões. E não se põe apenas uma vez mas retorna como desafio constante, a cada e todo momento no curso do tempo. Neste desafio, se revelam sempre em risco tanto a instituição como a mensagem que ela veicula.

Na seção de Egito do Metropolitan Museum, em New York,  há uma pequena estatueta que só a legenda elucida ao visitante: “Bes, Divindade cultuada no Egito Antigo”. Ruiu um dia a instituição que congregava aqueles que cultuavam esta Divindade, ruiu também a sociedade em que esta tradição se inseria. Desapareceu para sempre a mensagem que um dia deve ter animado um fervor análogo ao que hoje inspira a chama que para nós ainda brilha. O “Nirmanakaya” institucional possibilita que o “Dharmakaya” da mensagem perdure e amplie seu alcance no mundo das formas e dos nomes.

Antes de Rennyo, o que conhecemos como Jodo Shinshu era uma doutrina e vivência sem instituição expressiva que as sustentasse. Como não se pode conhecer alternativa para a História já sucedida, é impossível saber se e como esta mensagem poderia sobreviver caso não tivesse ocorrido a consolidação, realizada por Rennyo, de um veículo institucional como o Honganji. O que o sucedido nos assegura é que no caso de Jodo Shinshu, a sobrevivência e expansão da mensagem, até mesmo para além do Japão, se deu de fato através das atividades desta instituição. O presente ensaio discute o significado da contribuição de Rennyo Shonin no contexto da relação entre a ampliação de alcance, no espaço e no tempo, da mensagem da Escola da Terra Pura (Jodo Shinshu) e o suporte o veículo institucional a cuja consolidação ele dedicou toda sua existência.

Este artigo está sendo redigido no Brasil, por autor nascido na cidade do Rio de Janeiro, descendente de imigrantes portugueses há várias gerações aqui radicados. Seu primeiro contato com Jodo Shinshu foi através de um livro. O trecho de maior impacto na obra, era a narrativa de episódios ocorridos no Japão, séculos atrás, com pessoas iletradas  que expressaram de maneira ímpar a experiência e vivência Budista. Myokonin, (pessoa rara e maravilhosa) fora o termo cunhado no passado para designá-las, à medida em que o fenômeno proliferava e atraia a atenção de seus contemporâneos. Com base em depoimentos transmitidos oralmente, episódios de suas vidas foram sendo compilados e posteriormente editados.

O que chegou às mãos do jovem brasileiro eram fragmentos de um cotidiano simples, vivido há muito, em vilas interioranas de um arquipélago antípoda. A persistência destas memórias no tempo e sua propagação no espaço não pareciam fatos irrelevantes. Ao contrário, intrigavam cada vez mais, quanto mais contrastavam com tudo o mais que se perdeu, desde aquela data remota até os nossos dias, de um dia a dia humilde vivido nas aldeias simples daquele país distante.

Nas muitas madrugadas de leitura prolongada, entre tantas emoções vividas nas descobertas que se abriam, aquele jovem brasileiro agradecia a oportunidade inestimável de conhecer pessoas raras e maravilhosas que se incorporavam à sua vida como amigos e estrelas guias. Pessoas que viveram tão longe no espaço e no tempo, tornaram-se íntimos companheiros.

Vezes e mais vezes o surpreendia a constatação da existência de uma misteriosa ponte que ligou uma vila no interior do Japão medieval a um adolescente na cidade do Rio de Janeiro na segunda metade do século XX. Por esta ponte passaram as memórias que viriam a integrar e transformar decisivamente toda uma vida. Como teria sido construída esta ponte? E por quem? A maioria dos indivíduos que participaram desta construção permanece anônima. Foram todos aqueles de quem os textos não falaram mas que estiveram lá como participantes ativos no caminho de u’a mensagem libertadora que se ia propagando. Imorredoura porém, ficou a figura que os reuniu e organizou, que catalizou em torno de si todos os que desconhecemos, desencadeando a história da instituição que hoje nos abriga.

Ao início eram amigos que se reuniam para compartilhar a Fé que lhes fora transmitida. Os encontros ocorriam em suas casas. Só mais tarde viriam os pioneiros, construindo os primeiros Templos. O número de amigos era grande, somavam já vários grupos. As opiniões eram numerosas, variadas e em muitos casos díspares. Tentando conservar viva e íntegra a mensagem da libertação através do Nembutsu do Outro Poder e desejando transmiti-la a outras pessoas, eles tinham de se organizar. Começava a se desenvolver uma instituição, o Honganji.

Não podemos também esquecer o caráter conturbado e com freqüência ameaçador do contexto em que tudo isto sucedeu . Estamos falando de um dos períodos mais sangrentos da história do Japão. Desde a morte de Shinran em 1262 até a morte de Rennyo 1499, a luta pelo poder incendiava o mundo nipônico em guerras constantes. As instituições Budistas foram várias vezes atacadas, Templos foram incendiados, monges eram assassinados. Veremos adiante como estes conflitos ameaçaram e perseguiram Rennyo durante quase toda sua vida.

Apesar de todas as adversidades, ia se consolidando a organização dos adeptos e seus Templos. Na vizinhança deles, vez ou outra borbulhava, num episódio do cotidiano, uma expressão eloqüente da experiência Budista em personagens humildes, iletrados. A memória destes episódios ia sendo recolhida por contemporâneos, sensibilizados pela expressão de compaixão e sabedoria que emanava daquelas pessoas simples. Nestes Templos vinham orar muitos Myokonins. Entre os adeptos, alguns narraram histórias do que ouviram ou presenciaram dos episódios de vida daqueles homens humildes e sábios. A comunidade vinculada a esta instituição, foi preservando as memórias destes seres anônimos em seu tempo. Até que um dia, para que não fossem esquecidas, alguém as redigiu. Mais tarde outrem as editou e por fim alguém as traduziu. Estes livros levariam mensagens de vida mais longe que a voz. Inclusive até ao Brasil.

O estudo de episódios de vida dos Myokonins levou aquele estudante brasileiro, no começo da década de setenta, a buscar o arcabouço doutrinário em que estavam inseridas aquelas vivências e ao qual davam expressão. Uma experiência espiritualmente complexa e rica como a dos Myokonins nascia no contexto de um corpo de idéias que o jovem brasileiro sabia ignorar. O diálogo com estas pessoas simples ia incitando indagações. O que é o Budismo da Terra Pura, território em que se enraíza a experiência destas pessoas raras e maravilhosas?

Outra vez o caminho das respostas encontrava-se em livros, únicos companheiros no Dharma para alguém que descobria o Budismo da Terra Pura na cidade do Rio de Janeiro naquela época. À medida em que esta bibliografia ia sendo percorrida, esclarecimentos surgiriam. Desde as obras fundamentais até os muitos textos de comentários, a doutrina em que se situavam os Myokonins ia sendo descortinada. A proposta revolucionária de Jodo Shinshu, exposta por Shinran Shonin, sobrevivera mais de setecentos anos. Nas obras em que o legado estava preservado, o jovem brasileiro entrevia bem mais que as palavras de Shinran. Sòzinhas, elas não podiam explicar a sua própria sobrevivência. O fato de sua sobrevivência e a travessia do mundo até chegar ao Rio de Janeiro implicava em que muito mais sucedera, além do que os textos de Shinran diziam e sua biografia narrava.

Desde aqueles que ouviram as palavras ditas por Shinran e presenciaram suas atitudes e iniciativas, gerações sucessivas discutiram o significado e as implicações de suas idéias e sua vida. O fórum onde convergiam estes debates eram os Templos onde adeptos se reuniam e onde monges pregavam. Fatos da biografia desses adeptos, interpretações e novas concepções foram se somando à memória da vida e obra de Shinran, na construção de uma herança de vivências e idéias que exprimem uma peculiar compreensão da existência e do ser humano.

Após a morte de Shinran, nem a doutrina da Terra Pura nem a sua contraparte de vivência permaneceram estáticas. Para uma tradição herdeira da noção de Annica (Impermanência) como modo próprio de ser do real, a recriação contínua era a tendência mais natural. No curso da História, ao mesmo tempo em que a doutrina formulada por Shinran passava por interpretações e ampliações, também permanecia exposta ao risco de desvios e distorções. Fruto de uma enorme diversidade de opiniões, foi-se construindo um consenso sobre o sentido da proposta de Shinran Shonin e o caminho da Terra Pura. Agregando todos estes elementos, a vida da instituição acabou por formar uma tradição.

A experiência espiritual de Shinran e o conteúdo de suas obras desencadearam um processo complexo e poderoso. A comunidade que se formou, unida pela experiência que ele exemplificara e pelas idéias que transmitira, acabará por se transformar numa Escola. E é justamente neste processo de institucionalização que surgirá como figura fundamental o Oitavo Patriarca, Rennyo Shonin. Seu papel, como veremos, foi decisivo seja na formulação de uma unidade doutrinária, seja desenvolvendo instrumentos de divulgação, regras de organização, rituais, enfim transformando um incipiente agrupamento de pessoas numa sólida e bem estruturada instituição. Estes fatores contribuíram de maneira decisiva para que as palavras de Shinran chegassem até o adolescente brasileiro.

A experiência que aquele jovem no Brasil espreitava através dos episódios relatados e a doutrina que ele estudava, haviam percorrido toda uma longa trajetória na qual o suporte material de sua sobrevivência foi sempre uma instituição, o Honganji. A mesma ponte que ligara as vivências de pessoas simples em vilas no interior do Japão a tantos lugares distantes no mundo, transmitia também as idéias de alguns dos mais importantes pensadores nipônicos. Uma ponte sustenta quem por ela passa. Este foi o papel da institucionalização: possibilitou que o espiritual se desdobrasse no tempo, perdurando, e ampliasse seu alcance no espaço. Quando se procura entender como se deu a consolidação deste “veículo institucional”, diante do papel decisivo de Rennyo neste processo, fica então clara a razão pela qual tantos autores o consideram o “segundo fundador” da Escola da Terra Pura.

Tradicionalmente, Shinran Shonin é reverenciado como fundador de Jodo Shinshu. O título de Shonin foi-lhe atribuído muito depois de sua morte quando o movimento organizado por seus sucessores ganhou vulto. O próprio Shinran não deixou indícios de que pretendesse estabelecer uma nova instituição religiosa. Durante toda  a sua vida, não fundou Templos, não criou ritos, nem estabeleceu qualquer hierarquia eclesiástica. Shinran foi um pensador com uma visão doutrinária do Budismo de indubitável originalidade e profundidade. Seu carisma pessoal e drama biográfico tiveram impacto na sociedade da época, o que pode ser medido pelos numerosos grupos de seguidores que se formaram em diferentes localidades do país, ainda durante sua vida. Com sua obra escrita, Shinran abriu uma nova compreensão do Budismo. Com sua vida legou um exemplo de espiritualidade. Ele só não fundou uma instituição religiosa.

Isto seria esboçado por seus descendentes estabelecendo uma linhagem patriarcal e pelos adeptos construindo Templos, criando regras de organização, constituindo a instituição que veio a ser conhecida como Honganji. Este processo, que principia após a morte de Shinran, quase dois séculos depois ainda claudicava. Tal como outras instituições renovadoras que floresciam na época, assim como tantas anteriores e posteriores, o Honganji nos meados do século XV permanecia a um passo do desaparecimento. Apesar de abrigar a linhagem de descendência de Shinran, permanecia pouco expressiva mesmo entre os grupos que se pretendiam representantes do movimento da Terra Pura. Descrições da época retratam um pequeno Templo de poucos adeptos, contrastando com a pujança de outros Templos que também pregavam o caminho do Nembutsu e mais ainda quando se considera o poder e influência que tinham   as grandes  instituições tradicionais da época como a Escola Tendai ou a Escola Shingon, entre outras.

Será este frágil e inexpressivo Templo, Ohtani Honganji, no distrito de Higashiyama em Kyoto, que em 1415 acolherá um menino chamado Hoteimaru. Ele era descendente direto de Shinran na oitava geração. Nós hoje o conhecemos por um nome posteriormente adotado, Rennyo. Zonnyo, era o nome de seu pai. Em 1440 quando o avô de Rennyo falece, Zonnyo, assume o cargo de guardião  do Salão do Fundador e se torna o líder do Honganji. A penúria da família sugere a incipiente expressão que esta precária instituição possuía na época. Minor e Ann Rogers ( “Rennyo”, Asian Humanities Press, Berkeley, 1991, pag. 49) recorrem ao Jitsugo kyuki na descrição das dificuldades por que passava Rennyo tanto durante sua juventude como já na maturidade: “Por não poder dispor de uma lamparina de óleo, Rennyo lia os textos tradicionais a luz de uma lareira cuidadosamente racionada ou muitas vezes a luz da lua…algumas vezes passava dois ou três dias sem refeições.” Segundo os Rogers, no período anterior a Rennyo “…não há evidência de que o Honganji tenha experimentado qualquer fase de crescimento significativo em comparação com outros ramos de Shinshu.” Ainda na mesma página, citando o Jitsugo kyuki, os Rogers dizem: “Referência específica menciona a ausência de visitantes e a solidão em que se encontrava o recinto do Templo antes do nascimento de Rennyo, em contraste com as “nuvens” de peregrinos que acorriam ao Bukkoji situado nas vizinhanças.”  Estes dados indicam a precariedade da instituição que Rennyo encontrou. Ohtani Honganji era apenas um pequeno Templo desolado à sombra dos gigantes circundantes como Shoren-in e Chion-in.

Este é o contexto em que se insere o pedido que Rennyo, ainda adolescente, ouvirá de sua mãe: que ele recuperasse a mensagem de Shinran e a divulgasse por todo o Japão. E isto, nós veremos, ele de fato realizou. E como?

A obstinação inabalável de Rennyo na tarefa de expandir e fortalecer o Honganji parece indicar que para ele a consolidação institucional era o caminho para salvar a mensagem de Shinran e ampliar seu alcance. Dois fatos em sua biografia servem como símbolo desta visão.

Sua luta, durante anos, procurando salvar a imagem do fundador nas muitas fugas durante os ataques que o Honganji sofreu, para ao final da vida entronizá-la no Templo em Yamashina.  A imagem representava a mensagem e o exemplo de vida de Shinran Shonin. O Templo que um dia a abrigaria em segurança, era expressão da solidez que a instituição deveria ter, para que não se perdessem, mensagem e exemplo.

Outro fato significativo é a ênfase que durante toda a sua vida ele dará às obras que mais marcaram suas leituras de juventude, Kyogyoshinsho, o Rokuyosho e o Anjin ketsujosho. Segundo Renjun (M. e A. Rogers, obra citada, pag. 52) na releitura  desta última, Rennyo consumiu três exemplares.  (Dizia-se que Confúcio três vezes trocara a capa de couro de seu exemplar do I Ching, obra a cuja leitura se dedicou ao longo da maior parte de  sua existência.) O oitavo Patriarca nunca perdeu de vista a importância vital da doutrina e legou sua contribuição à compreensão da mesma nas Cartas. O Templo que abrigaria a imagem do fundador, seria também o guardião da doutrina. Assim, para Rennyo, uma instituição sólida e poderosa asseguraria a sobrevivência e expansão da mensagem de que era herdeiro, o legado do Nembutsu do Outro Poder.

Esta tarefa era ainda mais crucial naquela segunda metade do século XV dada a convulsão social em que estava mergulhado o Japão. Quando, no século XII, com a ruína econômica do Império o governo passa às mãos dos Samurai, o poder detido pelo primeiro mandatário torna-se disponível à disputa. Antes ele era transmitido hereditariamente e por isso permanecia inquestionável. Quando alguém que não era descendente de Amaterasu torna-se governante, abre-se a todos a questão: “Por que ele e não eu?” A espada empunharia a indagação e só ela daria a resposta. Até a ascensão dos Tokugawa (1615) a paz sobrevive apenas por breves hiatos para em seguida desaparecer ante a eclosão de um novo conflito. Mas a violência não apenas rondava os Templos Budistas. Já desde a época dos primeiros Sohei, as milícias de monges guerreiros, que alguns Templos da escola Tendai recorriam às armas. Ao início para se defender, depois para impor uma ordem, uma vontade ou por fim seus próprios interesses.

Aqueles eram tempos terríveis, em que morrer vitimado pela violência era um fato corriqueiro. E se isto valia para qualquer indivíduo, não muito diferente era a condição de uma pequena e precária instituição como o Honganji. Com a morte de Zonnyo em 1457, Rennyo assume como sucessor. Oito anos depois, em 1465, quando seus esforços missionários começam a frutificar, ocorrerá o primeiro ataque das milícias do Enryakuji destruindo parte do Ohtani Honganji. Ainda no mesmo ano haverá um segundo ataque, que arrasará todo o Templo. Em seguida haverá o ataque aos seguidores do Honganji em Akanoi, Omi. A imagem do fundador será transferida para Annyo-ji, depois para o Honpukuji, em seguida para Otsu até finalmente ser entronizada em 1480 no Salão do Fundador construído em Yamashina. Estes poucos dados já evidenciam o grau de riscos a que estava exposto o Honganji na época. Só uma liderança de rara habilidade e cautela possibilitaria a sobrevivência  e a expansão do Honganji num período de tão forte turbulência. Aqueles críticos que pretendem reduzir Rennyo a uma figura de importância mais política que espiritual parecem esquecer que o espiritual que enaltecem talvez tivesse perecido não fora a habilidade por eles menosprezada. Por outro lado, a crítica se funda numa dissociação entre o espiritual e o temporal da qual Rennyo escapou. E por fim, quando se estuda a contribuição doutrinária de Rennyo através de seus escritos, fica evidente que a crítica está longe de lhe fazer justiça.

A principal fonte para um estudo sobre Rennyo são as suas “Cartas” ( Gobunsho). Sua leitura ritualística é parte integrante do cotidiano nos Templos, além de fonte de estudo e referência para os adeptos da Escola da Terra Pura. Foram compiladas pelo neto de Rennyo, Ennyo (1491-1521). Nelas se pode ver tanto a complexidade da obra a que  Rennyo se devotou, como a personalidade inusitada que a possibilitaria.  Nestas cartas, o sagrado e o profano dialogam sem cessar. Um tecido vai montando sua trama com fios variados. Questões organizacionais, dúvidas doutrinárias, problemas pessoais, dos adeptos ou do próprio autor, as pressões políticas do momento, etc., em todos os assuntos Rennyo vai aclarando a compreensão da mensagem da Terra Pura ao mesmo tempo em que extrai, da mesma seqüência de raciocínio, a necessidade e importância do fortalecimento da instituição, guardiã do legado.

Tomemos um exemplo dentre tantos disponíveis. Um mal-estar físico do próprio autor, num cansaço que se prolongava:

I-6

“Não sei porque, mas ultimamente (ao longo deste verão) tenho sentido muita sonolência. Quando me pergunto por que estou tão letárgico, sinto que, sem dúvida,  o momento da morte que nos conduz ao nascimento (na Terra Pura) pode estar próximo. Este pensamento me entristece e sinto em especial a dor de partir. E no entanto, até este dia de hoje tenho me preparado sem descuido, pensando sempre que o momento da morte pode ser iminente. Tudo o que mais desejo, dia e noite,  em relação a isto, é que após a minha morte não haja retrocesso naqueles dentre os visitantes deste Templo cuja Mente Confiante esteja decisivamente consolidada. Tal como as coisas estão agora, não deveria haver dificuldades caso eu morresse. Mas cada um de vocês tem se descuidado na reflexão sobre o nascimento. Enquanto vocês viverem, devem procurar ser tal como lhes descrevi. Sinto-me insatisfeito com o que cada um de vocês compreendeu. Nesta vida, até o amanhã é incerto e, independente do que dissermos, nada é de qualquer valia quando a vida finda. Caso nossas dúvidas não forem com clareza dissipadas durante esta vida, sem dúvida lamentaremos. Espero que vocês mantenham isto em mente.

Respeitosamente,

Isto é confiado aos que se reúnem do outro lado das portas de correr. Nos anos vindouros, por favor levem para fora e leiam.”

Minor e Ann Rogers,  “Rennyo”, Asian Humanities Press, Berkeley, 1991, pag. 154

Como dissemos, o tema inicial escolhido por Rennyo é um mal-estar físico, o cansaço que o vem acometendo, neste verão de 1473. Qualquer leitor de então ou de agora, poderá sem dúvida identificar-se no que o autor descreve. A todos nós também isto nos sucede vez ou outra.

Porém, ao invés de recorrer apenas a um remédio, Rennyo aproveita esta circunstância para relembrar a doutrina. A morte nunca se sabe quando virá, mas sem dúvida pode ser agora. Mas ao mencioná-la, Rennyo de imediato acrescenta “que nos conduz ao nascimento (na Terra Pura)”. O nascimento na Terra Pura só é possível na morte pois aqui estamos presos a limitações e paixões, não nos podemos tornar Budas, permanecemos inexoravelmente humanos e imperfeitos. Se assim é, então ante a possível iminência da morte deveríamos estar tranqüilos e confiantes.

Mas Rennyo afirma que se entristece e sofre em especial a dor de partir. Ressalta ainda que no entanto, até aquele momento ele sempre se preparou, sem descuidos, pensando que o instante do nascimento pode ser iminente. Ou seja, de nós nunca se aparta o apego. Qual a sombra que acompanha o corpo iluminado, também esta fundamental ilusão e erro permanece conosco, ainda que nos esforcemos. É então em vão nossa luta? Não. Logo em seguida Rennyo irá admoestar seus companheiros por se descuidarem do esforço a que ele se dedicava.

Relembremos o mito grego em que os Deuses condenam Sísifo a rolar uma pedra para o alto de uma montanha. A pedra sempre outra vez cairia, o homem sempre outra vez haveria de recomeçar sua labuta sem fim.

Não se pode ser humano sem lutar, mas não é aqui que se vence. Aqui apenas se pode lutar. A acomodação ao apego arrasta-nos a um sofrimento ainda maior. Lutando contra esta acomodação, nem por isto seremos só e sempre felizes. O fato de nos entristecermos pelo apego que persiste, também não nos impede de sermos felizes. É só para Aristóteles e seus seguidores que “uma coisa não pode ser e não-ser ao mesmo tempo e do mesmo modo”. O Budismo, já desde de Nagarjuna que formulou uma lógica das contradições. Graças a ela, o Myokonin Asahara Saiichi (1850-1932) pode dizer:

 “O miserável coração da tristeza…

O grato coração da alegria…

O Namu Amida Butsu da tristeza e da alegria!”

Em seguida Rennyo então dirá que “ Tudo o que mais desejo, dia e noite,  em relação a isto, é que após a minha morte não haja retrocesso naqueles dentre os visitantes deste Templo cuja Mente Confiante esteja decisivamente consolidada.” Sua maior preocupação começa se revelar. É com aqueles que visitarão o Templo depois que ele se for. Que não sofram nenhum retrocesso espiritual. Para isto é necessário que a Mente Confiante esteja irreversivelmente consolidada. Ele olha em torno de si e vê que isto não está sucedendo. “Mas cada um de vocês se tem descuidado na reflexão sobre o nascimento. Enquanto vocês viverem, devem procurar ser tal como lhes descrevi. Sinto-me insatisfeito com o que cada um de vocês compreendeu.” A angustia de Rennyo é por cada um, como indivíduo. É a percepção do Boddhisattva de que o outro é alguém como nós. Sua errância é nosso vagar. Sua dor é também um nosso sofrer. Mas este outro não é apenas aquele que ali estava e a quem Rennyo conhecia. Eram tantos que viriam depois. Eram aqueles que viveriam no futuro e viriam ao Templo, lugar em que se compartilha a dádiva e a gratidão. Caso não esteja irreversivelmente consolidada neles a Mente Confiante, o Templo ruirá e a mensagem poderá se perder. Um Templo depende da mente de seus adeptos. A instituição vive da chama de devoção dos adeptos. Sem isso, ela morre. E sem a instituição como poderão saber, os que virão depois, o que um dia se revelou? De um seu mal-estar, da sonolência excessiva, Rennyo nos vai conduzindo a um mergulho no Dharma, a um encontro com a Sangha no compromisso com uma instituição que possa ser abrigo aos que viverão depois, permanecendo guardiã da mensagem que o Buda da Luz e Vida Infinitas destinou a todos os seres. Também para o mal-estar passageiro, ao final o tríplice refúgio, o Buda, o Dharma e a Sangha.

Ao mesmo tempo em que luta por consolidar a identidade e estrutura institucional da Escola da Terra Pura, Rennyo evita o sectarismo e apresenta uma visão abrangente das várias correntes Budistas:

III-2

“Os ensinamentos das várias Escolas diferem mas como foram todos expostos durante o período de vida de Sakyamuni, eles são de fato a Doutrina incomparável. Por essa razão não há dúvida alguma de que as pessoas que praticam estes ensinamentos tal como é prescrito, atingirão a Iluminação e se tornarão Budas. (…)”

Minor e Ann Rogers,  “Rennyo”, Asian Humanities Press, Berkeley, 1991, pag. 196

O respeito e reconhecimento que Rennyo demonstra para com as demais Escolas Budistas ganha ainda maior relevância quando atentamos ao fato de que este trecho data de 1474. Desde 1465, quando atacaram e destruíram Ohtani Honganji, que Rennyo e a Escola da Terra Pura vinham sofrendo perseguições violentas por parte principalmente das milícias do Enryakuji, Templo da Escola Tendai.

Numa de suas últimas cartas, IV-15, Rennyo reflete sobre a construção de um Templo em Osaka:

“Após ver Osaka pela primeira vez, construí logo um Templo simples, em estilo tradicional, em virtude, com certeza, de alguma ligação com aquele lugar no passado. A construção começou ao final do outono no quinto ano de Meio. Três anos já se passaram. Sinto que tudo isto resulta de condições profundas emanadas do passado.

A minha fundamental razão para estar neste local então, nunca foi para usufruir da minha vida em tranqüilidade, nem para buscar riqueza ou fama ou regozijar-me com a beleza das flores e dos pássaros, o vento e a lua. Meu único anseio é que os praticantes em quem a Mente Confiante esteja decisivamente consolidada floresçam e que os companheiros praticantes que recitam o Nembutsu venham em busca da Suprema Iluminação. Além disso, se existirem pessoas que tenham preconceito (para conosco) ou se dificuldades surgirem, renunciarei a meu apego a este lugar e de imediato me retirarei. Assim sendo, se (todos) _ independentemente de serem nobres ou de origem humilde, monges ou leigos _ puderem ser encaminhados a um decisivo estabelecimento da Mente Confiante que seja firme e adamantino, isto estará em verdadeiro acordo com o Voto Original do Tathagata Amida e em particular, em conformidade com a fundamental intenção do Mestre Shinran.

É extraordinário que, com o presente ano, este velho homem tolo tenha já alcançado a idade de oitenta e quatro anos. E como esta vida talvez tenha de fato estado em acordo com o significado do Dharma em nossa tradição, eu não poderia ter maior satisfação. Mas tenho permanecido doente desde o verão deste ano e no momento não há sinais de recuperação. Sinto, enfim com certeza, que não falharei em alcançar meu tão longamente acalentado desejo de nascer na Terra Pura  durante o próximo inverno. Tudo que eu anseio, seja dia ou noite, é que a Mente Confiante se estabeleça decisivamente em todos ainda enquanto estou vivo. Ainda que isto dependa de boas (condições) do passado, não há um só momento em que (esta preocupação) não esteja em minha mente. Além do mais, isto talvez se deva ao fato de eu ter vivido aqui durante três anos. De todo modo então, deixem que  a Mente Confiante se estabeleça decisivamente neste período de sete dias durante os ofícios de agradecimento, para que todos possam realizar o sentido fundamental (do Dharma), o nascimento na terra da suprema alegria.

Respeitosamente,

Esta carta deve ser lida, inicialmente no vigésimo primeiro dia do décimo primeiro mês de Meio 7 (1498) para que todos alcancem a Mente Confiante.

Minor e Ann Rogers,  “Rennyo”, Asian Humanities Press, Berkeley, 1991, pag. 239

Ao final de sua vida, referindo-se a um pequenino Templo simples que há pouco construíra, Rennyo nos responde também porque construíra todos os demais Templos, porque dedicara sua vida a transformar grupos dispersos de pessoas que recitavam o Nembutsu, numa sólida unidade organizacional. O espírito empreendedor estava, como tudo nele, a serviço da realização espiritual de todos os seres.

Logo ao início Rennyo sugere que Templos não nascem da mera vontade dos homens. Estão em jogo ligações que vêm de um passado remoto e permanecem sempre na penumbra de um insondável mistério. Os Templos surgem em lugares nos quais ressoa uma correspondência antiga. E talvez se construam a si mesmos através de nós. Existem para que os adeptos tenham um abrigo que os acolha cada vez que se encontrarem para discutir o Dharma e exprimir sua gratidão ao Buda Amida.

Deste evento, descrito no primeiro parágrafo do texto, ele amplia o horizonte de sua reflexão para explicar-nos como via o sentido de sua existência neste mundo. Ele era alguém que não viera ao mundo para usufruir nem da tranqüilidade, nem do conforto ou da beleza. Sua palavras nos recordam a passagem em que o grande poeta português Fernando Pessoa diz:

 

“Não conto gozar a minha vida

Nem em gozá-la penso.

Só quero torná-la grande,

Ainda que para isso tenha de ser

O meu corpo e a minha alma

a lenha desse fogo.

Só quero torná-la de toda a humanidade

Ainda que para isso tenha de a perder como minha.”

 

Pessoa, Fernando, “Obra Poética”, Ed. Aguilar, Rio de Janeiro 1972, pag. 15

Em Rennyo, assim como para Pessoa, era preciso dedicar sua vida a todos os seres.

“Meu único anseio é que os praticantes em quem a Mente Confiante esteja decisivamente consolidada floresçam e que os companheiros praticantes que recitam o Nembutsu venham em busca da Suprema Iluminação.”

Se necessário fosse, ele abriria mão de seu apego ao lugar estimado, nos diz em seguida, num sentido que parafraseia as duas últimas estrofes da poesia lusitana citada. Seu anseio constante, vezes e mais vezes repetido ao longo de várias outras cartas e reiterado ainda ao final desta, é que todos “pudessem realizar o sentido fundamental (do Dharma), o nascimento na terra da suprema alegria.” Este é o centro para onde converge toda a sua existência. Tudo o que ele buscou realizar, só por isto se explicava e justificava. Para isto era preciso preservar a mensagem da Escola da Terra Pura, tal como fora transmitida por Shinran Shonin. Para preservá-la era preciso construir uma instituição-guardiã sólida e bem estruturada. Ela não poderia sê-lo sem a força da vivência espiritual da Mente Confiante consolidada em seus adeptos. Os Templos eram, para Rennyo, um lugar onde as pessoas se reuniriam na busca de compartilhar suas dúvidas e descobertas, para ouvindo o Dharma, deixarem a Mente Confiante se estabelecer decisiva e irreversivelmente. Os ofícios eram momentos de expressão da nossa gratidão ao Buda Amida, pela vida e pela morte. Na carta IV-13 “Reflexões ao início do verão” ele inclusive citara Honen que dissera:          “Os praticantes que aspiram a Terra Pura enchem-se de alegria quando adoecem” pois é sinal de possibilidade mais próxima do nascimento na Terra Pura. Na carta em que faz esta citação, no primeiro dia do meio do verão de 1498, Rennyo ainda lamenta que não sinta assim e considera deplorável seu sofrimento com a doença. Logo a seguir, na carta IV-15 a nuvem se dispersara e a luz de Amida brilha plena, quando ele já pode dizer em plena serenidade:

“Sinto, enfim com certeza, que não falharei em alcançar meu tão longamente acalentado desejo de nascer na Terra Pura  durante o próximo inverno.”

Séculos depois de Rennyo, o escritor português Félix Bermudes, ao seu referir a leucemia que o acometia, diz poucos dias antes de morrer: “Estou vivendo uma experiência maravilhosa, fruto das colheitas enceleiradas na minha jornada de otimismo, respigando ensinamentos espirituais, através de uma longa existência sem vazios, nem desfalecimentos, sem descrenças.

Bermudes, Félix, “A conquista do eterno”, Ed. Civilização Brasileira, 1974, pag. IX

A mensagem da Luz e Vida Infinitas transcende forma e nome. Por isso não se circunscreve a fronteiras culturais. Ao contrário, inscreve-se na natureza humana e se manifesta independente de informações exteriores, conceitos codificados ou vínculo institucional. O Sr. Félix Bermudes, até onde sabemos, não tivera contato com a literatura da Escola da Terra Pura e, no entanto, seu texto poderia ser assinado por algum Myokonin nipônico. A Mente Confiante é de fato a Mente da verdade. E como tal, certamente se manifesta fora do mundo Budista e de suas instituições. Mas quando o faz, o faz sob outra forma e linguagem, usa um outro veículo. A instituição preserva o veículo formal e conceitual. Rennyo sabia a importância da contribuição que Shinran trouxera com o modo peculiar e inovador com que reinterpretou o Budismo. Com ele se estabelecera um novo veículo que conduziria muitos, inclusive Rennyo à realização da Mente Confiante. O esforço de Rennyo para fortalecer o Honganji como instituição, visava salvar o modo pelo qual esta manifestação chegara a ele como a tantos outros. Assim como a correspondência com os locais, a que se referira no caso do Templo em Osaka, assim também há uma correspondência entre o praticante e uma forma que lhe veicula o sem-forma. Recorrendo outra vez à analogia dos Kayas, Rennyo queria salvar o “Nirmanakaya” que Shinran Shonin expressara e que fora o veículo através do qual o “Dharmakaya” do Poder libertador da Luz e Vida Infinitas se lhe revelara. Não nos é possível chegar ao “Dharmakaya” do conteúdo da mensagem senão através da mediação do “Nirmanakaya” de uma forma através da qual o conteúdo é indicado. É através de palavras que podemos nos abrir ao que transcende a palavra. Por isso, na Escola da Terra Pura se ressalta a importância de “Ouvir o Dharma”. Era esta também a razão pela qual Rennyo insistia em que os adeptos se reunissem para discutir o Dharma.

Carta I-12. “Os encontros são ocasiões em que, mesmo sendo só uma vez ao mês, aqueles que praticam o Nembutsu devem ao menos se reunir no local de encontro e discutir sua (experiência) da Mente Confiante, bem como a dos outros. … Concluindo, definitivamente é preciso que de hoje em diante se discuta a Mente Confiante nas reuniões. Pois é assim que atingiremos o nascimento na verdadeira e real terra da suprema bem-aventurança.

Para Rennyo, o caminho espiritual não era solitário e sim solidário. Já Shinran no capítulo VI do Tannisho definira a sua relação com os adeptos como de amizade e companheirismo. Este sentido de fraternidade e diálogo para compartilhar o caminho determina que, no caso da Escola da Terra Pura, a institucionalização se tornasse uma decorrência necessária. Em Shinshu, a vida espiritual é também social. Com o rompimento da exigência do celibato para aqueles que optavam pela vida monástica, Shinran insere o cotidiano religioso no mundo leigo. Monges e monjas casam, têm filhos. Agora os monastérios teriam de ser construídos nas cidades. O sagrado e o profano coexistem no espaço, compartilham um mesmo mundo e uma semelhante existência diária. A vida social supõe o estabelecimento de regras de convívio e toda comunidade acaba por ter de organizar-se. A via da Terra Pura difere fundamentalmente do caminho do asceta hindu, meditando no silêncio recluso de uma caverna. Para ele talvez a instituição seja apenas mais um véu de Maya. Mas ele é um só e seu apenas é o caminho que trilha. Sua meta é libertar-se. A de Shinran e Rennyo é que libertemo-nos todos e juntos.

O pedido de sua mãe, Rennyo sem dúvida realizou. É inegável que ele conseguiu recuperar a mensagem de Shinran e a divulgou por todo o Japão. A instituição que ele viu como meio de realizar a preservação e expansão desta mensagem, sobrevive já quinhentos anos após sua morte e ultrapassou o arquipélago do Sol Nascente, tendo levado o chamado do Buda da Luz e Vida Infinitas para o continente Asiático, as Américas, a Europa e alcançou já à última fronteira, a África. Há que comemorar, hoje mais que ontem a obra de nosso oitavo Patriarca.

Sempre quando se comemora, somos chamados ao passado, para reverenciá-lo e agradecer. Mas todo passado revisitado, indaga ao presente pelo futuro. Os desafios que hoje enfrentamos são muito diferentes daqueles que enfrentava em seu tempo o Oitavo Patriarca. Mas  lá, no Gobumsho, nas Cartas, e na vida de quem as escreveu, há indicações que nos ajudam a encontrar soluções para as nossas atuais dificuldades. Para que a mensagem que nos chegou sobreviva pelo futuro e não termine como u’a imagem numa sala de museu com texto indicativo de data e região ao lado, Rennyo nos pode ainda orientar. O Honganji, nos cinco séculos que nos separam de Rennyo, tornou-se uma instituição vasta e poderosa. Já não a ameaçam perigos externos como acontecia naquele tempo. Mas os perigos internos continuam muito semelhantes aos que o Oitavo Patriarca também enfrentou. Sua palavras e advertências guardam por isso a mesma pertinência.

Lembremos sempre de sua atitude em relação ao Templo em Yoshizaki, tal como nos relata na carta I-8:

“(Nestes três anos) monges e leigos, homens e mulheres têm vindo em grande número para cá. Mas como isto parece não ter nenhum objetivo, eu este ano proibí seu ir e vir. Para mim, a razão fundamental para se estar aqui é que, tendo recebido a vida na condição humana e tendo já encontrado o Budismo, o que é difícil, é de fato vergonhoso que se caia, em vão, no inferno. Por isso eu concluí que pessoas que não estão preocupadas com o estabelecimento decisivo da Mente Confiante do Nembutsu e com o nascimento na terra da suprema Bem-aventurança não deveriam se reunir neste lugar. Esta atitude se deve ao fato de que para nós o fundamental não é renome ou ganho pessoal mas apenas a iluminação na outra vida. (…)”

(Ob. cit., pag. 157)

Relendo hoje este trecho do Gobunsho, devemos nos perguntar o que sucederia se Rennyo visitasse cada um e todos os nossos Templos pelo mundo afora. Poderíamos mesmo recebê-lo sem temor de sua avaliação? Será que a nenhum de nossos Templos ele desejaria hoje fazer o mesmo que fez em Yoshizaki? Será que nestas construções que atendem pelo nome de Templo Honganji, nos reunimos, monges e leigos, homens e mulheres, para buscar intensamente a consolidação irreversível da Mente Confiante e o nascimento na Terra Pura? Falando apenas do que observo no Templo da cidade em que moro, São Paulo, devo admitir que com mais freqüência o que nos traz ao Templo, monges e leigos, homens e mulheres, é a obrigação de um ofício memorial. Aos monges pelo Ofuse ou por um “dever de ofício”, aos leigos por uma obrigação social ou um vago medo supersticioso. Ouvindo atentamente tudo o que se conversa entre monges ou leigos, homens e mulheres, nem sempre o mais freqüente assunto é o Dharma. Nos ofícios memoriais, bem como nos casamentos, ao fundo do salão do Hondo, os assuntos já nem se prendem à memória do morto ou as núpcias que se celebram. Nestes recantos, em voz baixa, não é tanto o Nembutsu o que ressoa. São comentários sobre a política nacional ou internacional, sobre os negócios ou a vida alheia. Ao final dos ofícios, quando nós monges nos reunimos, infelizmente devo admitir que aos mesmos assuntos que conversavam os leigos nos dedicamos. Pelo menos lá no nosso Templo eu não receberia uma visita de Rennyo Shonin sem temer o que ele concluiria de suas observações.

Outra vez tremo ao ler o trecho da carta IV-12 quando ele diz:

“Qual a razão de se realizarem reuniões duas vezes por mês? Estas reuniões visam a realização da Mente Confiante que conduz ao nascimento na terra da suprema Bem-aventurança e nada mais. Apesar de serem realizadas “reuniões” em toda parte a cada mês, desde o passado até agora, não tem havido nada que possa ser chamado de uma discussão sobre a Mente Confiante. Nos últimos anos especialmente, quando ocorrem reuniões (onde quer que se realizem) todos ao final vão embora sem levar nada mais que o que beberam ou comeram _ saquê, arroz e chá.”

(Ob. cit. pag. 236)

Talvez a principal diferença hoje é que o cardápio é bem mais diversificado. Estes problemas ocorrem de maneira idêntica na atualidade  tal como no passado porque a nossa ignorância espiritual persiste. Continuamos sujeitos aos mesmos egoísmos, atraídos pelas mesmas fantasias ilusórias e paixões cegas que ao longo da história mantiveram-nos prisioneiros de erros e sofrimento. Mas nossas atitudes comprometem não apenas nosso destino individual como também o futuro da instituição da qual somos membros. Um velho provérbio Hindu afirma que “Para que a floresta seja verde, basta que as árvores sejam verdes.” Na época de Rennyo, o futuro do Honganji estava em risco tanto pela ameaça de seus inimigos e detratores como de seus próprios adeptos. Livramo-nos dos primeiros, continuamos conosco mesmos.

Ouçamos o trecho, na carta I-2, em que Rennyo fala sobre a decisão de tornar-se monge:

“O princípio fundamental do Mestre Shinran em nossa tradição não é que nos tornemos monges aspirando nos tornar Budas, nem que renunciemos a família e nos separemos dos vínculos mundanos. É que, quando ocorre o despertar do momento-percepção do refúgio em Amida, a Mente Confiante do Outro Poder se estabelece decisivamente, sem distinção alguma entre homem e mulher, idoso ou jovem. O Sutra Maior descreve o estado do atingir desta Mente Confiante como “imediatamente alcançando o nascimento na Terra Pura e habitando o estado do não-retrogredir. Num comentário, T’an-luan diz: “Com o despertar do pensamento único do confiar, entramos na companhia daqueles cujo nascimento está verdadeiramente estabelecido.” Isto então é o que se quer dizer quando se fala em “sem esperar que Amida venha ao nosso encontro no momento da morte” e “completando a causa do nascimento na vida comum.”

(Ob. cit. pag. 145)

Este trecho demonstra que para Rennyo, a ordenação e a entrega à Mente Confiante são inseparáveis. Em outras palavras, alguém se ordena porque o chamado do Buda é percebido como o centro de sua existência. O processo espiritual do despertar para o Outro-Poder e a formalização do rito de ingresso na comunidade de religiosos são para ele como as duas faces de uma só e mesma moeda. Por isso ao falar de porque nos ordenamos, o Oitavo Patriarca discute apenas o despertar para a Mente Confiante. O que pensaria Rennyo de um fato muito freqüente no Japão, quando alguns de nós monges, nos ordenarmos porque somos o filho mais velho de um proprietário de Templo, sendo hábito e expectativa, tanto da família como da sociedade, que sejamos o sucessor e não ousamos contrariá-los? Ou, em algum outro caso, quando herdeiros de um Templo, nos ordenamos não porque tenhamos receio de contrariar família e sociedade, e sim porque sendo o dito Templo pródigo em adeptos, a renda do monge-responsável é atraente? Precisamos admitir que, dado o sistema de propriedade particular da maioria dos Templos no Japão, com a tradição do filho mais velho homem ser o herdeiro e sucessor na sua direção, estas duas hipóteses não podem ser descartadas como absurdas. Aliás, dificilmente algum membro do Honganji com alguma familiaridade com a nossa comunidade no Japão poderia dizer que isto nunca acontece ou mesmo que desconhecemos um caso semelhante. Além disso, a precedência do filho, em detrimento da filha, é já um absurdo e uma contradição doutrinária, considerando o que nos disse acima Rennyo “sem distinção entre homem e mulher”. Todos igualmente sabemos que, no caso em que a filha tenha de herdar o Templo, (seja porque não exista um filho ou porque exista um inusitada e improvavelmente rebelde a ponto de renunciar ao suposto “dever”) a solução freqüentemente preferida é que ela se case com um monge, para que ele, agora marido, assuma a direção do Templo. Ou que o marido se ordene para assumir o Templo. Tudo isto, como podemos ver nas afirmações de Rennyo sobre a mulher, nada tem a ver com o Budismo da Terra Pura. Reflete isto sim, o machismo que ainda domina a sociedade nipônica (que aliás nisto está acompanhada pela esmagadora maioria das sociedades contemporâneas, seja no Oriente, seja no Ocidente) e que foi absorvido pela nossa comunidade.  Especificamente no Honganji não seria necessário ir muito longe para se concluir que lamentavelmente o preconceito, além de ter sido absorvido, subsiste intocado. Basta nos perguntarmos por que não há nem houve ainda u’a mulher ocupando o cargo de Sotyo, em nenhum dos países onde o Honganji possui Missão com esta função, como é o caso do próprio Japão, dos Estados Unidos, do Canadá, do Havaí ou do Brasil? Por que, entre os Ministros que dirigem o Honganji (e que são eleitos por um mandato) não há nem houve ainda uma única presença feminina?

Precisaríamos ler e reler Rennyo, inspirando-nos nas suas palavras, não só na passagem acima citada,  mas  também quando ele diz, na carta V-3:

“As mulheres que renunciaram ao mundo enquanto permanecem na vida leiga, bem como todas as demais mulheres que seguem a vida comum, deveriam realizar, sem acalentar qualquer dúvida possível, que a libertação é para todas as pessoas que simplesmente confiarem em profundidade (de todo coração e com firmeza) no Buda Amida e entregarem-se ao Buda para que as salve, conduzindo-as à condição de Buda na outra vida.”

(Ob. cit. pag. 244)

 

Ou ainda na carta seguinte V-4:

“Aqueles que carregam um profundo mau karma, sejam homens ou mulheres, precisam perceber que mesmo confiando-se aos votos compassivos dos vários Budas, é extremamente difícil serem salvos pelo poder destes Budas, pois estamos no período do mundo maligno da última Era. Assim sendo, aquele que reverenciamos como Amida Tathagata, sobrepassando todos os outros Budas, fez o grande Voto de salvar mesmo os que cometem o mal nas dez transgressões e nas cinco graves ofensas. Realizando seu Voto, tornou-se o Buda Amida.”

(Ob. cit. pag. 244)

 

Em todos estes trechos citados, Rennyo enfatiza a igualdade entre homens e mulheres no mais crucial e supremo aspecto da realização humana, o nascimento na Terra Pura. Se não há “distinção alguma entre homem e mulher” no estabelecimento decisivo da Mente Confiante, quanto mais absurda não há de ser a discriminação que arroga ao homem privilégios e regalias em assuntos de menor monta, como cargos na nossa hierarquia administrativa do Honganji.

 

Imagino que você, leitor lusófono, que talvez esteja travando um primeiro contato com a tradição da Terra Pura através deste texto, possa estar surpreso ou perplexo ante o que, nos parágrafos precedentes, lhe pareçam críticas contundentes à instituição a que pertenço, o Honganji, e à nossa comunidade, tanto de leigos como de monges. Não se assuste. Nós, membros da Escola da Terra Pura, somos assim, estamos sempre buscando nos conscientizar de nossas falhas e desejosos de as discutirmos. Acreditamos que o ser humano erra muito e quando esconde de si as suas faltas, erra ainda mais. Nem pense que critico os meus amigos no Dharma por me imaginar mais correto que eles. Lendo com atenção o trecho em que me refiro especificamente à nós monges, no comentário à carta I-8 sobre o Templo em Yoshizaki, você poderá perceber que me sei parte do problema. Para a Escola da Terra Pura, somos todos muito errados, maus, e inútil é tentarmos distinguir o melhor do pior. Quando critico-nos, critico-me. E o faço na esperança de que, conscientizando-nos destes nossos erros que creio perceber, possamos superá-los. Isto nos libertará para podermos cuidar de outros erros que então descobriremos. Não creio que possa existir uma comunidade humana em que não se cometam falhas. Temo, isto sim, por aquelas que se recusam a perceber e discutir abertamente as suas culpas. Por fim, creio que nosso Oitavo Patriarca foi bem mais rigoroso nas críticas que fez à comunidade do seu tempo do que eu soube ser em meu texto.

 

 

Uma obra como a realizada por Rennyo Shonin só é possível através de uma personalidade que reúna qualidades díspares, raramente encontradas num só indivíduo. Rennyo manifestava a devoção profunda e a compaixão que a Mente Confiante inspira na verdadeira realização espiritual, como o demonstra a vida inteira dedicada ao chamado do Buda por todos os seres, bem como sua atitude ímpar frente à morte. Neste sentido, o Oitavo Patriarca se sobressai como líder espiritual de rara grandeza.

Possuía o intelecto crítico e a cultura apurada de um “scholar” como se evidencia de suas análises doutrinárias.

Reunia ainda a visão e habilidade política de um Estadista, como se pode perceber na sua liderança de uma comunidade cada dia mais numerosa, num ambiente politicamente adverso e violento.

Por fim, era sem dúvida dotado de um espírito empreendedor que hoje reconheceríamos como “um executivo realizador”, como comprova o crescimento vertiginoso que o Honganji teve sob sua direção, considerando o aumento do número de adeptos e os inúmeros Templos que foram construídos por sua iniciativa, bem como o desenvolvimento organizacional através, entre outras coisas, dos rituais que criou, das regras que estabeleceu, etc.

Ao fundar o Honganji que hoje conhecemos, ele se fez, de fato,  co-fundador de Jodo Shinshu. Não é sem razão que nos altares do Honganji, à esquerda da imagem do Buda Amida há uma pintura com Shinran e à direita uma pintura com Rennyo.

 

O jovem brasileiro que depois viria a se ordenar na Escola da Terra Pura, só pode conhecer a mensagem de que o Buda Amida o libertara, graças à Shinran Shonin. Ele só pode conhecer o que ensinou Shinran Shonin, graças à obra de Rennyo Shonin. Foi através do Honganji, a cujo fortalecimento o Oitavo Patriarca dedicou sua vida, que ele pode um dia conhecer seus amigos Myokonin e com eles conviver apesar da distância no espaço e no tempo; Saiichi, Genza e tantos outros que trouxeram confiança, alegria e a gratidão à esta existência confusa. Mais uma vez, foi através do Honganji que ele pode ter acesso à doutrina que o ajudaria a entender quanto se lhe esclareceu de um caminho extraordinário, no qual sua própria vida, assim como a de todos os seres, vai sendo sábia e infalivelmente conduzida à Plenitude, ao nascimento na Terra em que toda ignorância e sofrimento são superados e onde enfim despertamos como Budas.

 

Em “O caminho do campo” Martin Heidegger diz que o carvalho ensina que “crescer significa: abrir-se à amplidão dos céus, mas também deitar raízes na obscuridade da terra.”   (Heidegger, Martin, “O caminho do campo” Ed. Duas Cidades, 1969, São Paulo) A obra de Rennyo Shonin buscou deitar raízes na terra obscura e densa do tempo, da história, criando condições concretas para a expansão e continuidade da mensagem de Shinran Shonin. Sem estas raízes profundas e firmes talvez já nem mais soubéssemos que o Buda da Luz Infinita vem libertar-nos, tal como somos, através do Nembutsu do Outro Poder. Este modo peculiar de perceber e compreender o caminho para a libertação humana se origina em Shinran.  Sem esta base institucional firmada na terra, talvez nem mais soubéssemos que um dia viveu e pregou alguém como Shinran Shonin, nem tivéssemos notícias de que existiram “pessoas raras e maravilhosas” neste mesmo mundo confuso em que nos encontramos.

Mas, na trajetória biográfica de Rennyo, assim como ao longo de todo o Gobunsho, vemos que as raízes na terra visam acolher o chamado, amplo como o céu, do Nembutsu do Outro Poder, para o qual sua vida foi dedicada. A razão única e última de sua luta e esforço era que todas as pessoas pudessem ouvir o Nome do Buda da Luz Infinita para assim serem libertadas. Consolidar o Honganji, construir Templos, organizar uma comunidade, elaborar seus ritos, só era importante para que o Dharma encontrasse condições mais favoráveis para ser ouvido e a libertação pelo Nembutsu pudesse ser conscientizada por mais pessoas.

Quinhentos anos depois, vemos que a obra do Oitavo Patriarca frutificou, num alcance maior do que se poderia imaginar em seu tempo. Em cinco continentes o Nembutsu é entoado. Nestes distantes rincões todos do planeta, pessoas das mais diversas raças expressam sua gratidão nos ofícios em memória de Rennyo Shonin. Oxalá saibamos cumprir a parte que nos toca,  encaminhando rumo ao futuro o legado que ele nos deixou. Que estes primeiros quinhentos anos sejam relembrados daqui a quinhentos anos, no ofício comemorativo do primeiro milênio de Rennyo Shonin. Namo Amida Butsu.

 

 

Shogyo Gustavo Pinto

 

In “The Rennyo Shonin reader”, Hongwanji International Center, Kyoto, 1998