NOTAS SOBRE O SHOSHINGE – 17

Rev. Prof. Dr. Ricardo Mário Gonçalves

 

Disse que, ao penetrarmos com fé no Oceano Precioso de Méritos,

Certamente seremos integrados à Grande Assembléia,

E que, ao atingirmos o Mundo da Matriz do Lótus,

Instantaneamente alcançaremos a Iluminação Verdadeira e o Corpo de Dharma,

E também que, passeando livremente pelo bosque das paixões mundanas, manifestaremos poderes sobrenaturais,

E penetrando no jardim dos nascimentos e mortes, apareceremos em formas adequadas.

 

1. Considerações gerais: Aqui Shinran explica, baseado em Vasubandhu, as três graças proporcionadas pela Luz Sem Impedimento, a saber: 1- a graça da vida presente, que nos permite integrar a Grande Assembléia dos que ouvem o Dharma sendo pregado pelo Buda Amida; 2 – a graça de nascermos na Terra Pura e alcançarmos o Supremo Nirvana; 3 – a graça de regressarmos ao mundo dos nascimentos e mortes para livremente operarmos em benefício dos seres viventes.

 

2. Questões de Vocabulário:

2.1. Oceano Precioso de Méritos = o Nome Sagrado do Buda Amida, comparado a um precioso oceano pleno de incontáveis méritos. Aparece aqui, mais uma vez, a metáfora do oceano, tão cara a Shinran.

2.2. Certamente = de maneira espontânea, isto é, através do Outro Poder.

2.3. A Grande Assembléia = a Assembléia dos Santos e Bodhisattvas da Terra Pura que ouvem a pregação do Dharma feita pelo Buda Amida.

2.4. Mundo da Matriz do Lótus = A Terra Pura de Amida que, por sua pureza, mostra-se semelhante ao lótus que não se deixa contaminar pela impureza do lodo de onde brota.

2.5. Instantaneamente = expressão que indica que o nascimento na Terra Pura já é a imediata obtenção do Nirvana.

2.6. Iluminação Verdadeira e Corpo de Dharma = duas expressões diferentes para designar o Nirvana.

2.7. Passeando livremente = operando segundo nossa vontade, sem nenhuma restrição.

2.8. Bosque das paixões mundanas = o mundo impuro dos seres viventes escravos das paixões mundanas.

2.9. Poderes sobrenaturais = os poderes imensuráveis através dos quais os Bodhisattvas desenvolvem sua atividade salvífica.

2.10. Jardim dos nascimentos e mortes = o samsara ou mundo por onde perambulam, perdidos, os seres viventes escravos das paixões mundanas.

2.11. Formas adequadas = referência aos nirmanakaya ou corpos de manifestação, formas sob as quais se manifestam os Budas e Bodhisattvas para melhor orientarem os seres viventes mergulhados na ignorância, no egoísmo e nas paixões mundanas.

 

3. O Percurso dos Bodhisattvas: Os versos do presente segmento apresentam um resumo do parágrafo final do “Tratado da Terra Pura” de Vasubandhu, que diz o seguinte:

Ainda, há que saber que há Cinco Portas que permitem a realização progressiva de Cinco Méritos. Que Portas são essas?

A Primeira é a Porta da Aproximação, a Segunda a Porta da Grande Assembléia, a Terceira a Porta da Morada, a Quarta a Porta da Câmara Interna e a Quinta a Porta do Passeio pelo Jardim Murado. Dessas Cinco, as quatro primeiras portas dizem respeito aos Méritos da Entrada e a quinta ao Mérito da Saída.

Primeira Porta de Entrada: ao adorarmos o Buda Amida para nascer em seu País, alcançamos o nascimento no Mundo da Paz e da Alegria; tal é a Primeira Porta de Entrada.

Segunda Porta de Entrada: ao louvarmos o Buda Amida, em conformidade com o significado de seu Nome, ao recitarmos o Nome do Tathagata e ao nos exercitarmos de acordo com sua Sabedoria Luminosa, alcançamos ao ingresso na Grande Assembléia; tal é a Segunda Porta de Entrada.

Terceira Porta de Entrada: quando, com o coração uno e de uma maneira exclusiva, formulamos o Voto de nascer naquele País, e quando praticamos a Concentração e o Recolhimento na Tranqüilidade (Shamata), logramos o ingresso no Mundo da Matriz do Lótus; tal é a Terceira Porta de Entrada.

Quarta Porta de Entrada: ao contemplarmos, de maneira exclusiva, aqueles ornamentos maravilhosos, e ao praticarmos a Visão Interior (Vipasyana), conseguimos chegar àquele lugar e receber a felicidade proporcionada pelos diferentes sabores do Dharma; tal é a Quarta Porta de Entrada.

Quinta Porta ou Porta de Saída: quando, com grande compaixão, contemplamos todas as penas dos seres viventes, então, através de Corpos de Manifestação (Nirmanakaya) ingressamos no Jardim dos Nascimentos e Mortes, no Bosque das Paixões Mundanas; ali, exercitando livremente os poderes sobrenaturais, logramos instruir e converter a terra; tudo isso é conseguido graças à Transferência de Méritos do Voto Original; tal é a Quinta Porta ou Porta de Saída.

Há que saber que os Bodhisattvas entram pelas Quatro Portas para alcançar sua própria salvação; há que saber também que os Bodhisattvas saem pela Quinta Porta e, graças à Transferência de Méritos, concretizam a salvação dos demais seres viventes.

Os Bodhisattvas exercitando dessa maneira as práticas dos Cinco Portais do Pensamento, conseguem sua própria salvação e também a dos demais seres viventes, alcançando rapidamente a Perfeita e Insuperável Iluminação. E agora, dou por encerrada esta breve explicação do sentido dos Cantares da Aspiração e da Instrução sobre o Sutra da Vida Imensurável.

O texto acima descreve a marcha dos Bodhisattvas da Terra Pura por um percurso em cinco etapas (Cinco Portas), cada uma delas resultante da prática de cada um dos Cinco Portais do Pensamento de que falamos anteriormente:

PRÁTICA

MÉRITO RESULTANTE

(Cinco Portões do Pensamento)                                       (Cinco Portas)

 

Adoração……………………………………………………………………Aproximação

Louvor……………………………………………………………………..Grande Assembléia

Formulação do Voto…………………………………………………..Morada

Contemplação……………………………………………………………Câmara Interior

Transferência de Méritos…………………………………………….Passeio pelo Jardim Murado

 

4. O Mundo da Matriz do Lótus (Sanscr. Padmagarbha lokadhatu, Jap. Rengezô Sekai): O termo “Mundo da Matriz do Lótus” não é encontrado nos Sutras da Terra Pura, foi retirado do Avatamsakasutra (Kegongyô) onde designa o Universo do Buda Cósmico Vairocana. Esse Universo se manifesta a partir de um imenso lótus que desabrocha em meio a um Oceano de Perfume e compreende vinte camadas, cada uma cercada por inumeráveis mundos. O termo aparece ainda em outro Sutra que pertence ao mesmo ciclo literário, o “Sutra da Rede de Brahma” (Sanscr.Brahmajalasutra, jap. Bonmôkyô), em que são explicados os Preceitos dos Adeptos do Mahayana. Nele encontramos uma descrição pormenorizada desse Universo: o Buda Vairocana permanece sentado no centro do mesmo, sobre um lótus de mil pétalas, em cada uma das quais temos dez bilhões de Montes Sumeru. Do corpo de Vairocana emanam mil corpos de transformação (nirmanakaya) do Buda Shakyamuni, cada um dos quais ocupa uma pétala do lótus, cerca por dez bilhões de emanações de Sakyamuni em forma de Bodhisattva, a pregar o Dharma. Vasubandhu e Shinran empregam a expressão “Mundo da Matriz do Lótus” para designar a Terra Pura de Amida, cuja pureza é semelhante à da flor de lótus que se abre imaculada acima do lodo de onde brota.

Lembro que no Egito Antigo existe uma representação semelhante: segundo um mito cosmogônico egípcio, do Oceano Primordial nasce uma flor de lótus, dentro da qual surge o jovem deus solar, criador do Universo. Num dos mitos cosmogônicos hindus, o deus Visnu flutua, adormecido, nas águas do Oceano Primordial; de seu umbigo nasce uma flor de lótus dentro da qual surge Brahma, o deus criador do Universo. As semelhanças entre tais representações egípcias, budistas e hindus estão na origem de curiosas gravuras européias do séc. XVII onde o Buda Amida é assimilado ao deus greco-egípcio Harpócrates, ambos representados sentados sobre flores de lótus (Cf. Jurgis Baltrusaitis – La Quête D’Isis, Paris, Flammarion, 1997).