NOTAS SOBRE O SHOSHINGUE – 10

Rev. Prof. Dr. Ricardo Mário Gonçalves

 

O Nembutsu, que é o próprio Voto Original do Buda Amida,

Para os seres maus dotados de opiniões errôneas e de soberba,

É extremamente difícil de ser recebido e retido com Fé Jubilosa;

Dentre todas as dificuldades, nenhuma é superior a essa.

 

1. Considerações Gerais: Aqui se discorre sobre a Fé no Nembutsu enunciado no Voto Original do Buda amida, considerado o Dharma Supremo.

 

2. Questões de Vocabulário:

Opiniões errôneas = Traduzimos por “opiniões” o termo japonês Ken (literalmente “visão”, do sânscrito dristi e, em alguns casos, darsana). Dristi é usado geralmente para designar visões ou opiniões errôneas (jaken em japonês):

  1. Afirmar a existência perene das coisas (Eternalismo).
  2. Afirmar a inexistência das coisas (Niilismo).
  3. Negar o Princípio de Causalidade (Originação Dependente).
  4. Afirmar a existência de um Eu permanente e independente.
  5. Adotar perspectivas não-budistas.

Soberba = (Jap. Kyôman, do sanscr. Adhi-mana) Ter sentimentos de orgulho e de desprezo pelos demais. A soberba corresponde ao conceito de hybris dos antigos gregos, um dos mais graves defeitos do homem, segundo eles.

 

3. Sobre o Nembutsu: Lembro que em todas as grandes tradições espirituais está presente o método da invocação do Nome Divino.

No Hinduísmo, temos o japa-yoga.

No Islamismo, temos o dhikr Allah (Lembrança de Deus).

No Cristianismo Oriental, temos a Prece de Jesus ou Prece do Coração, fundamentada em Romanos 10, 13: Todo aquele que invocar o Nome do Senhor será salvo.

No Budismo, temos uma infinidade de passagens escriturísticas fundamentando a prática do Nembutsu. Assim, em sua Coletânea de Passagens sobre a Paz e a Felicidade (Anrakushû), o Patriarca Tao-ch’o (562 – 645) cita a seguinte passagem doSutra da Grande Coletânea da Matriz Lunar:

Os Budas, manifestando-se no mundo, salvam os seres viventes através de quatro maneiras: 1 – através da dádiva do Dharma, pregando as doze categorias de Escrituras Budistas; 2 – através do karma da ação: os Budas, os Tathagatas, possuem inumeráveis marcas luminosas e aprazíveis; concentrando-se na contemplação das mesmas todos os seres viventes certamente alcançarão virtudes; 3 – através dos poderes maravilhosos: são dotados de incontáveis poderes maravilhosos com numerosas propriedades e transformações; 4 – através de seus Nomes: os Budas, os Tathagatas, possuem incontáveis Nomes; se os seres viventes os invocarem, de forma geral e particular, neles se concentrando, removidos os obstáculos e alcançadas as virtudes, todos certamente renascerão na presença dos Budas.

 

4. Provando a Excelência do Nembutsu: No Livro da Prática (Gyô no Maki) doKyôgyôshinshô, Shinran apresenta uma série de provas escriturísticas da excelência e da eficácia salvífica do Nembutsu. Apresentamos aqui a citação de uma passagem doAnrakushû:

Palavras do Anrakushû:

O Sutra do Samadhi da Contemplação do Buda diz: – [Sakyamuni] exortou seu pai, o Rei, à prática do Samadhi do Nembutsu. Seu pai, o Rei, disse ao Buda: – Por que não me fazeis praticar, sendo eu vosso discípulo, o exercício das virtudes que são o fruto da Terra Búdica – o real aspecto da Verdade idêntica a si mesma e a Suprema Perfeição do Vazio? O Buda respondeu ao Rei, seu pai: – As virtudes que são o fruto da Terra Búdica constituem um domínio imensurável, profundo e maravilhoso, no qual são alcançados os poderes sobrenaturais e a Libertação. Não sendo, pois, um domínio praticável pelos entes profanos, eu vos exorto, meu pai e meu Rei, a praticar o Samadhi do Nembutsu.

Seiten, pág. 171.

O Buda reforça sua argumentação narrando uma parábola sobre um bosque de árvoreseranda, notáveis pelo mau cheiro que exalam. No meio do mesmo cresce uma perfumada árvore de sândalo, cuja fragrância acaba por se sobrepor ao mau cheiro, fazendo o bosque todo ficar perfumado. As árvores eranda simbolizam as paixões profanas e a árvore de sândalo o Nembutsu que se sobrepõe às mesmas e as transmuta em Despertar.

Quando iniciamos nossa caminhada pela Senda Búdica, sentimos um forte impulso idealista de buscar a Libertação através de nosso próprio esforço. Entretanto, os percalços da vida vão pouco a pouco destruindo nossas ilusões, mostrando quão persistentes e fortes são nossas paixões mundanas. Somos, assim, levados a concluir que a Via do Nembutsu é a única adequada à nossa condição. Tal foi a minha trajetória pessoal. A primeira escola budista com que tomei contacto, na juventude, foi o Budismo Shin que, na época, não exerceu nenhuma atração sobre mim. Deixei-me empolgar pelas vias ascéticas e, durante muito tempo, perambulei por elas: Theravada, Zen, Budismo Esotérico Shingon… Entretanto, a vida foi paulatinamente me mostrando que esses elevados ideais não estavam ao alcance de minhas fraquezas e limitações. Comecei a me sentir na desconfortável situação de um hipócrita a apregoar caminhos de cuja prática se mostra totalmente incapaz. Assim, cá estou de volta ao Caminho do Nembutsu do Voto Original pregado pelo Mestre Shinran a única saída que a Infinita Misericórdia do Buda deixou a meu alcance.

 

6. As Dificuldades de se Obter a Fé: Dentre os intelectuais ocidentais contemporâneos a demonstrar uma atitude de simpatia para com o Budismo, há que destacar Claude Lévi-Strauss, o maior antropólogo do século XX. Em vários de seus escritos e entrevistas elogiou o Budismo como sendo a única religião a fugir ao antropocentrismo, considerando todas as formas de vida como dignas do mesmo respeito e consideração dispensados ao ser humano. Esteve no Brasil em 1935, integrando a missão francesa que ajudou o governo paulista a implantar a Universidade de São Paulo. Publicou em 1955 o livro Tristes Trópicos em que faz uma série de observações importantes sobre o Brasil, o Budismo, o Islamismo e… os gatos… Sobre o Budismo, entre outras coisas, diz o seguinte:

Os homens fizeram três grandes tentativas religiosas para se libertarem da perseguição dos mortos, da maleficência do Além e das angústias da magia. Separados pelo intervalo de aproximadamente meio milênio, conceberam sucessivamente o budismo, o cristianismo e o islamismo, e é impressionante que cada etapa, longe de marcar um progresso em relação à precedente, antes testemunha o retrocesso.

Em suma, o Buda Sakyamuni libertou os homens do temor dos malefícios atribuídos aos mortos e aos deuses indevidamente cultuados e de outras superstições do mesmo naipe. Shinran, no século XIII, ao revelar a Verdadeira Doutrina da Terra Pura, mostrou-se absolutamente fiel ao espírito do Budismo Original. E hoje, o que vemos? As superstições subsistem, mesmo nos templos budistas em geral e nos do Budismo Shin, em particular. Vejamos alguns exemplos, colhidos aqui em nossa própria comunidade.

Grande parte dos automóveis dos devotos que acorrem ao Betsuin nos fins de semana para seus cultos fúnebres familiares ostenta amuletos e patuás (omamori), em sua maioria provenientes das chamadas “novas religiões” japonesas… Quase todos esses devotos parecem mais empenhados em manter a tradição do culto aos mortos do que em ouvir o Dharma e vivenciar o Nembutsu… Uma senhora que participa do grupo de Dança Típica Japonesa (odori) dizia, um dia desses, que há doenças provocadas por trabalhos de macumba… Realmente, parece extremamente difícil alguém obter a Fé genuína e pura ensinada por Sakyamuni e Shinran!

Mais um último detalhe: uma tradução japonesa de Tristes Trópicos, publicada pela Editora Chûô Kôron, omite as passagens em que o ilustre pai da Antropologia Estrutural se pronuncia a respeito do Budismo…Realmente, parece que tudo conspira para dificultar o acesso à Fé Correta e Verdadeira!