Rev. Prof. Dr. Ricardo Mário Gonçalves
Docente aposentado do Depto. de História da USP
Missionário da Ordem Otani de Budismo Shin
Eu me defino como um estudioso da Religião a professar o Budismo. Assim, além de ter me dedicado à docência e à pesquisa no campo da História das Religiões (Budismo Japonês), minha existência tem sido marcada por uma trajetória de busca espiritual através de várias escolas budistas: Theravada, Soto Zen, Shingon e, finalmente, a Verdadeira Escola da Terra Pura ou Budismo Shin. Longos anos dedicados à docência e à pesquisa em História das Religiões e a freqüentes incursões em campos como a Fenomenologia da Religião, a Antropologia Cultural e a Psicologia Junguiana me levaram a concluir que, não obstante as diferenças evidentes e inegáveis existentes entre as inúmeras religiões da Humanidade, elas possuem suficientes elementos em comum para justificar o diálogo, o entendimento e a colaboração entre elas. Verifico que muitas vezes o entendimento mútuo, muito difícil ao nível dos discursos doutrinários, bastante discrepantes entre si, torna-se mais fácil a partir de abordagens como a Simbologia, a Liturgia, a Ética e a Ação Social. Acredito que os religiosos de boa vontade pertencentes às mais diversas tradições facilmente entrarão em acordo para trabalhar pela paz, pela igualdade, pela liberdade e pelo respeito para com a Natureza. Digo ainda: o entendimento e a cooperação entre as religiões são fatores imprescindíveis para a construção de uma sólida paz entre os povos. O desconhecimento mútuo, acredito, é um dos principais fatores a provocar e a alimentar o estranhamento e a hostilidade entre devotos de diferentes sistemas de crença.
Cumpre-me agora esclarecer qual é o Budismo em que deposito minha crença. Existem, com
efeito, tantas escolas, sub-escolas, movimentos e grupos a ostentarem o rótulo de Budismo que eu prefiro, a exemplo de estudiosos como Bernard Faure, utilizar a palavra no plural: “budismos”. Dentre os inúmeros “budismos” existentes, aquele em que eu creio é o que foi proclamado pelo Buda Histórico Sakyamuni no século VI AEC e posteriormente foi elucidado no Japão pelo Mestre Shinran (1173 – 1262) com o nome de Jôdo Shinshû (Verdadeira Escola da Terra Pura) ou Budismo Shin.
Como ocorre em todas as Escolas ou Ordens Budistas ortodoxas e regulares, deposito minha fé nas chamadas Três Jóias (Triratna) do Budismo: o Buda (Mestre), o Dharma (Doutrina) e o Sangha (Comunidade).
Por Buda ou Desperto, entendo não uma entidade sobrenatural, mas um ser humano que logrou alcançar um estado de plenitude de Paz e Serenidade alcançável através de um Caminho que compreende Ética, Contemplação e Sabedoria visando a superação do egoísmo, da ignorância, do ódio, do desejo e da ganância. O Buda expressou seu anseio pela construção de um mundo puro isento de guerras, violência, ganância, exploração, preconceito, discriminação e exclusão.
Por Dharma, Doutrina ou Princípio, compreendo fundamentalmente o Princípio da Originação Dependente (pratitya samutpada) segundo o qual todos os entes são agregados impermanentes formados e dissolvidos a partir do concurso de causas e condições auxiliares. A partir desse Princípio, o Budismo concebe o ser humano (bem como os demais entes existentes na Natureza) como um ente relacional que só pode ser entendido em relação com os outros seres humanos, com os demais entes e com o meio ambiente em que está inserido. Esclareço que o Budismo não vê o ser humano como um “eu” substancial a receber influências de causas e condições, mas o considera como uma mera constelação formada a cada instante pelo concurso de causas e condições. Tendo assim a insubstancialidade ou vacuidade por sua natureza, o ser humano é instruído através da vivência do Dharma a cultivar o desapego, o despojamento, a compaixão, a serenidade, a equanimidade, a tolerância, o respeito, a cooperação e a convivência com o outro.
Por Sangha eu compreendo a irmandade formada pelos discípulos do Buda, monges e leigos, concebida não como uma organização a serviço dos poderosos do mundo e obediente a seus caprichos, mas sim como uma comunidade que vive em permanente estado de tensão com a sociedade profana regida pelo egoísmo e dominada pelo espírito de competição desenfreada, pela violência, pela sede de lucro e de poder, pelo ódio, pelo preconceito e pela discriminação dos grupos minoritários e diferentes. Creio que cabe ao Sangha transcender o mundo profano, não através do mergulho ensimesmado em uma subjetividade que se compraz na contemplação do próprio umbigo, mas sim mantendo permanentemente uma atitude crítica em relação às injustiças e iniqüidades infelizmente onipresentes nas diferentes sociedades humanas ao longo da História, tendo sempre em mente o anseio búdico pela construção de um mundo puro sem guerras, ganância, discriminação, opressão e exclusão.