Impulsionado pelo Karma, ainda assim, livres!

Os homens são capazes de cometer quaisquer ações desde que impulsionados pelo Karma adequado.

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Sob as circunstâncias adequadas, tudo é possível. Aprisione um homem e uma mulher em um local isolado. Ninguém será capaz de dizer o que o homem fará com ela, mesmo que seja ele um homem santo. Quase no fim da Segunda Guerra Mundial na Nova Guiné, os soldados japoneses chegaram a se alimentar de carne humana. E quanto a nós? Nós chegamos a participar com entusiasmo na Segunda Guerra Mundial. Quando o Mestre Shinran pronunciou a frase acima, ele, provavelmente com o coração trêmulo, quis dizer que a existência é tão imprevisível que não há nada que possa prever o que somos capazes de fazer.

Nós estamos sempre condicionados a determinadas situações, momento após momento. Em outras palavras, nós estamos presentes neste mundo. Vivemos neste mundo envolvidos em relacionamentos mútuos com tudo ao nosso redor. Todas as coisas neste mundo estão continuamente se transformando e estamos envolvidos em relacionamentos mútuos com todas as coisas. No Budismo, tais relações recíprocas e dinâmicas com o mundo são chamadas do ponto de vista dos seres humanos, de afinidades.

O Karma não consiste apenas em qualquer ação; consiste em uma relação que envolve uma ilimitada dimensão espacial e temporal. Por exemplo, até mesmo um simples ato de vestir um casaco requer a existência de uma ovelha cuja espécie existe na face da Terra desde um tempo imemorial. O fato de a ovelha ter existido na Austrália a milhares de quilômetros deste lugar; o fato deste casaco ter sido feito de sua lã; o fato da ovelha ter se alimentado das plantas o que por sua vez originou a lã; o fato das gramíneas terem crescido recebendo energia do raio do sol. Todos estes eventos  inter-relacionados mutuamente foram necessários para meu simples ato de vestir um casaco!

Os cristãos falam do pecado original de nossos ancestrais. Dizem que o pecado foi repassado para nós, no tempo presente. Tal visão da vida tem algo em comum com o conceito budista de Karma, um termo que significa o mundo agindo sobre mim. O Karma se refere às ações do mundo. Ambos os atos, bons ou ruins são todos ações do mundo.

Assim, a expressão: abaixo impulsionado pelo karma adequado significa que o mundo age sobre nós. A ação ocorre durante todas as vinte e quatro horas ou durante cada momento de nossas vidas. Nós, tal como somos, estamos agindo. Estamos participando ativamente do drama da história mundial. Não somente líderes individuais como Eisenhower dos Estados Unidos ou Adenauer da Alemanha, mas as pessoas anônimas, comuns nas ruas também são atores coadjuvantes e participantes ativos do drama da humanidade. O drama da história mundial consiste no conjunto do drama de cada indivíduo e não somente no corpo de uma nação de cem milhões de japoneses no fim da Segunda Guerra Mundial.

Assim, cada decisão tomada através de nossa vontade é uma decisão tomada pela vontade do mundo. Nós achamos que tomamos decisões sem qualquer ajuda externa. Porém, na verdade estamos sempre pressionados a tomar decisões. Nossas decisões são nada mais do que a vontade do mundo que age sobre nós. Nesse sentido, não temos qualquer responsabilidade pelas nossas ações. Não é este Eu individual que decide praticar as ações. É o mundo que decide. Nós não temos que assumir nenhuma responsabilidade.

É desnecessário ou insignificante o fato de estarmos orgulhosos de nossas boas ações. Igualmente, é desnecessário ou insignificante arrepender-se das más ações praticadas. Ambas as atitudes são ridículas. Uma atitude séria é aquela que provém da ignorância que constitui a base da existência humana e de onde se originam todas as ações do homem. Devido a essa natureza da existência, não temos que sentir responsabilidade por qualquer das ações que praticamos.

Isso é o que chamo de Não-Eu. Esse termo se refere ao fato de que nós e o mundo somos uma unidade. O mundo é nós e nós somos o mundo. Portanto, somos seres absolutamente livres. Não-Eu significa liberdade absoluta. Essa é a liberdade que experimentamos no Budismo. A liberdade dualística que conceituamos pelo fato de pensar que “estamos” no mundo, através do controle e disciplina de nossas ações, não merece o nome de liberdade. No mundo da verdadeira liberdade não existe nenhum conflito entre o mundo e o homem. O homem e o mundo são unos.

A frase do Tannishô é uma confissão de Shinran. Eu sou absolutamente livre. É uma confissão de que ele não é capaz em absoluto de controlar ou disciplinar a si mesmo. É a confissão de que ele é um ser humano totalmente desorganizado, irresponsável, sem qualquer sistema consistente de pensamento, iludido, imprevisível, sem saber que ações é capaz de realizar. Nesse sentido, é uma confissão de sua não-liberdade.

A frase é o grito de Shinran de liberdade absoluta. O próprio mundo está agindo sobre ele; não há conflito entre Shinran e o mundo porque seu Eu Total foi abandonado. É o grito de que ele já não é mais o mesmo e que o mundo é ele, o seu eu é o Não-Eu. É o seu grito de que a vida, em sua perfeita harmonia, ordem e disciplina, está se manifestando no interior de seu ser.

Submissão absoluta é liberdade absoluta. Em suma, a expressão: Os homens são capazes de cometer quaisquer ações é uma declaração de Shinran de que ele fará qualquer coisa sem nenhum receio. Eu farei qualquer coisa; sou um ser absolutamente livre. Não existe nada obstruindo o meu caminho. Nada interfere na liberdade nem existe qualquer obstrução. Shinran se posiciona aqui como um homem nu, inteiramente como ele é, totalmente ignorante do que é bem e mal.

Shinran, que primeiramente receou pelo potencial que poderia levá-lo a praticar qualquer ação abusiva, é agora arrebatado pela sabedoria de que ele, tal como ele é, é um novo homem que renasceu num mundo de fantástica liberdade.

Shuichi Maida (extraído do livro “Quem é o Mau? – O mau e sua salvação na ótica budista” – Ed. Nambei Honganji)