Um Monoteísmo Seletivo

1. Considerações Iniciais –  Um Monoteísmo Seletivo? :

O Dobo Hôsanshiki (Rito de Louvor ao Dharma pelos Irmãos) prossegue com as cinco estrofes do Jôdo Wasan, baseadas no Sutra de Amida ou Pequeno Sutra (Amidakyô).

 

2. Tradução:

I

Observando os seres viventes devotados ao Nembutsu,

Nos mundos das dez direções, numerosos como grãos de poeira,

Ele os abraça e jamais os abandona.

Por isso é ele chamado de Amida.

II

Os Budas, incontáveis como os grãos de areia do Ganges,

Rejeitam o bem menor das numerosas práticas

E, de modo unânime e exclusivo,

Propõem a Fé do Nome Inefável.

III

Os Budas das Dez Direções, inumeráveis como os grãos de areia do Ganges,

Pregam o Dharma dificílimo de ser acreditado;

Em benefício do mundo mau das cinco Corrupções

Dão testemunho veraz e proporcionam proteção.

IV

A proteção e o testemunho veraz dos Budas

Derivam da realização do Voto Compassivo.

Assim, os que alcançaram o Coração Adamantino

Deverão retribuir o Grande Benefício de Amida.

V

A todos os seres maculados e com a visão corrompida

Do tempo perverso e do mundo mau das Cinco Corrupções

Os Budas, numerosos como os grãos de areia do Ganges,

Oferecem o Nome de Amida, exortando-os a nele crerem.

 

3. Questões de Vocabulário:

3.1.Dez Direções (Jap. Jippô) = Os quatro pontos cardeais, os quatro pontos colaterais, o zênite e o nadir.

3.2.Incontáveis como os grãos de areia do Ganges (Jap. Goga jinju) = Metáfora freqüentemente utilizada nos textos budistas para expressar um número incrivelmente grande.

3.3.O bem menor das numerosas práticas (Jap. Mangyô no shôzen) = Referência às variadas práticas budistas cujos méritos são considerados insignificantes diante das imensas virtudes proporcionadas pela recitação do Nembutsu.

3.4.O Dharma dificílimo de ser acreditado (Jap. Goku nanshin no Nori) = O Nembutsu

3.5.Cinco corrupções (Jap. Gojoku) = As corrupções da época, da visão, das paixões, dos seres viventes e da vida.

3.6.Dão testemunho veraz e proporcionam proteção (Jap. Shôjô gonen seshimetari) = Os Budas atestam a eficácia salvífica do Nembutsu com palavras autênticas e dispensam proteção a seus praticantes, removendo os obstáculos de seus caminhos e mantendo-os firmes na Fé.

3.7.Voto Compassivo (Jap. Higan) = O Voto Original do Buda Amida. O texto se refere especificamente ao Décimo Sétimo Voto, que promete que o Nome de Amida será louvado e glorificado por todos os Budas, de forma que todos os seres viventes o ouvirão e serão libertos dos nascimentos e mortes.

3.8.Coração Adamantino (Jap. Kongôshin) = O coração transmutado pela Fé Verdadeira proporcionada pelo Outro Poder.

3.9.Nome de Amida (Jap. Mida no Myôgô) = A recitação do Nome de Amida é, na Tradição da Terra Pura, o único meio de salvação acessível aos seres nascidos nos tempos finais degradados e corruptos (era do Mappô).

 

4.Comentários

Segundo Shinran, o Sutra de Amida apresenta dois sentidos, um manifesto e um oculto. Em seu sentido manifesto, ele expõe a realização através da prática do Nembutsufundamentado no poder próprio – Jiriki – do praticante, em conformidade com o que é prometido no Vigésimo Voto do Buda Amida, que diz: Se eu, tornado Buda, os seres viventes das dez direções, ao ouvirem meu Nome, dirigirem seu pensamento para meu País, cultivarem os fundamentos das diferentes virtudes e, com o coração sincero, transferirem seus méritos em vista de seu nascimento em meu País sem que consigam obter esse fruto, renunciarei ao Perfeito Despertar (Seiten pág. 18). Em seu sentido oculto, entretanto, tal como o Grande Sutra e o Sutra da Contemplação, o Pequeno Sutra também expressa o Nembutsu do Voto Original fundamentado no Outro Poder. OSutra de Amida se divide em duas partes: a primeira descreve os ornamentos gloriosos da Terra Pura do Buda Amida e a segunda exorta os fiéis a praticarem o Nembutsu, invocando o testemunho unânime e veraz proclamado pelos incontáveis Budas das diferentes direções do espaço.

A primeira estrofe dos presentes Hinos, que louva o significado do Nome de Amida, se baseia na passagem da primeira parte do Sutra que diz: Por que aquele Buda é chamado Amida? Sariputra, a Luz daquele Buda é imensurável: ela brilha sobre os países das dez direções e nada há que lhe faça obstáculo. Por esse motivo é ele chamado Amida (Seiten pág. 128). A estrofe se fundamenta também numa passagem do Ôjô Raisan de Shan-tao que diz: Pergunta: Por que Amida é assim chamado? Resposta: Conforme é dito no “Sutra de Amida” e no “Sutra da Contemplação”, a Luz do Buda é imensurável e sem impedimentos, brilhando nos mundos das dez direções. Observando o devoto do Nembutsu, ele o abraça e jamais o abandona. Por isso ele é chamado Amida.

As três estrofes seguintes se fundamentam na extensa passagem da segunda parte do Sutra em que o testemunho dos Budas das seis direções é invocado para exortar os fiéis a crerem no Nembutsu: Sariputra, nos mundos da Direção… temos o Buda… e outros Budas semelhantes, tão numerosos como as areias do Ganges que, em suas terras, manifestando a Marca da língua larga e comprida, cobrem completamente três mil grandes milhares de mundos, proferindo estas autênticas palavras de verdade: “Vós, seres viventes, deveis crer neste Sutra, protegido e guardado por todos os Budas, que louva as virtudes inefáveis” (Seiten págs. 130-132).

A última estrofe se fundamenta na passagem do Sutra em que o Nome do Buda Amida é oferecido a todos os seres: Sariputra, se existirem filhos e filhas de boa família que escutarem esse Nome pregado pelos Budas, e também o Nome do Sutra, esses filhos e filhas de boa família serão todos protegidos e guardados por todos os Budas e jamais poderão retroceder da Perfeita e Insuperável Iluminação (Seiten pág. 132).

 

II

As estrofes em que o testemunho de inumeráveis Budas é invocado como garante da eficácia salvífica do Nembutsu do Voto Original de Amida nos convidam a refletir sobre o pretenso “monoteísmo” do Budismo Shin. Vários autores têm dito que, de todas as correntes budistas, a mais próxima do Cristianismo seria o Shin, uma vez que a devoção exclusiva a Amida seria o equivalente ao monoteísmo da tradição bíblica. Há que ser cauteloso com essa aproximação. Do lado da tradição monoteísta semítica de origem bíblica, temos de observar que o monoteísmo estrito e absoluto só se encontra no Judaísmo e no Islã, uma vez que no Cristianismo encontramos a complexa doutrina da Trindade (um Deus em Três Pessoas) que, por sua vez, poderia ser comparada com a doutrina do Trikaya ou Três Corpos do Buda: Dharmakaya, Sambhogakaya eNirmanakaya. Do lado do Budismo Shin, há várias ressalvas a serem feitas. Em primeiro lugar, segundo Shan-tao, o ensinamento da Terra Pura é definido como oensinamento de Dois Veneráveis (Nison), a saber, Sakyamuni e Amida, como se vê, por exemplo, na Parábola do Caminho Branco entre os Rios de Água e de Fogo (Niga Byakudô). Por outro lado, prestar culto exclusivo a Amida não implica em negar a existência dos demais Budas e Bodhisattva do complexo Panteão do Mahayana: as escolas da Terra Pura elegem Amida como pólo único de seu culto, mas o respeito devido aos demais Budas e Bodhisattvas não é descartado: vemos o Mestre Rennyo, por exemplo, aconselhar os devotos a não desrespeitarem os Budas e Bodhisattvas cultuados pelas outras escolas budistas. No dizer do Prof. Daiei Kaneko, o Budismo Shin seria um monoteísmo seletivo: O Buda Amida é selecionado como pólo único do culto, sem que a existência das demais divindades budistas seja posta em questão. Há que lembrar que o mesmo fenômeno ocorria no período inicial do processo de formação do monoteísmo dos antigos israelitas: o culto exclusivo devido a Iahweh não implicava necessariamente na negação da existência dos deuses cultuados pelos demais povos, princípio que só passou a predominar numa fase tardia da História da religião de Israel. O Prof. Hiroyuki Honda também se insurge contra a qualificação do Budismo Shin como “monoteísmo”, lembrando exatamente a passagem do Sutra de Amida em que o testemunho dos Budas é invocado como garante da veracidade da mensagem salvífica de Amida. Cita ele as seguintes palavras de seu Mestre, o falecido Prof. Rijin Yasuda: É muito persistente essa interpretação errônea da Doutrina da Terra Pura como monoteísmo. A Terra Pura é um local em que todos os Budas são iguais. O Buda Amida é aquele cujo Nome proclama o anseio de ser digno do louvor e da aprovação de todos os Budas. Assim, vemos que o Buda Amida não se eleva sozinho. Confiando unicamente em Amida, tornamo-nos iguais a todos os Budas. O Tathagata Amida é o Nome da Compaixão Ilimitada, o Nome através do qual é pregada a salvação de todos os seres. Longe de ser um monoteísmo, isto está o mais longe possível do mesmo.

 

III

A última estrofe, que nos fala do Nome de Amida como o único meio de salvação acessível ao seres da época final de decadência e corrupção nos convida a refletir sobre a seguinte passagem do padre ortodoxo francês Jean-Yves Leloup, profundamente envolvido no diálogo inter-religioso entre o Budismo e o Cristianismo:

Todas as tradições que concordam em ver na época atual o fim de um ciclo da humanidade concordam igualmente em afirmar que numa tal fase a melhor esperança de salvação está na meditação do Nome; é o método melhor adaptado ao homem dos últimos tempos, o caminho mais seguro…

Segundo Joel, o profeta: “Quando o sol se transformar em trevas e a lua em sangue… aquele que invocar o Nome do Senhor será salvo”. (Joel 3, 4-5)

Segundo a tradição sufi, no fim dos tempos o homem só conseguirá cumprir “um décimo da Lei” e esse décimo consiste na invocação do Nome.

Na tradição hindu, o Vishnu-Dharma-Uttaraé formal: “O que é obtido na primeira era (Idade de Ouro) através da meditação silenciosa e é alcançado nas eras seguintes pelo sacrifício e pela devoção, na última era (Kali Yuga) é alcançado pela celebração de Keshava (Vishnu) e ainda, no Kali Yuga (Idade Sombria), a repetição do Nome de Hari é suficiente para destruir todos os erros”.

Sri Ramakrishna chegava a dizer que a lembrança permanente de Deus é o Dharma, a Lei própria para esta época.

Certas formas de Budismo consideram igualmente que na era presente o que temos de fazer é nos arrependermos de nossas transgressões, cultivarmos as virtudes e repetirmos o Nome do Buda Amida. Em um mundo repleto de obstáculos, pleno de tentações sutis, o Buda aconselha a concentração na recitação de seu Nome.

(Jean-Yves Leloup – La montagne dans l’océan – Méditation et Compassion dans le Bouddhisme et le Christianisme, Paris, Albin Michel, 2000, p. 41-42.)

por Rev. Shaku Riman (Ricardo Mário Gonçalves)