O Príncipe das Santas Virtudes

1. Considerações Gerais:

Os Wasan do Dobo Hosanshiki chegam a seu término com seis estrofes de louvor ao Príncipe Regente Shotoku extraídos dos Kôtaishi Shôtoku Hôsan (Hinos de Louvor ao Príncipe Shôtoku) que integram os Shôzômatsu Wasan (Hinos das Três Épocas), que nos permitem refletir sobre a vida e a obra do Príncipe Shôtoku, o processo de sua divinização e sua importância na vida e no pensamento de Shinran.

 

2. Tradução:

O Grande Compassivo Salvador do Mundo, Príncipe Shõtoku,

É para mim como que um pai;

A Grande Compassiva Salvadora do Mundo, Kanzeon,

É para mim semelhante a uma mãe.

 

Como uma prova de sua Grande Compaixão,

Desde incontáveis eons passados, até a presente geração,

Nos tem feito adentrar a inefável Sabedoria Búdica,

Além do bem e do mal, do puro e do impuro.

 

Profundas e vastas, difíceis de serem retribuídas,

São as graças recebidas do Preceptor do Japão, Príncipe Shôtoku.

Há que tomar nele refúgio, com o coração uno,

Sem jamais deixar de louvá-lo.

 

O Augusto Príncipe, com hábeis meios salvíficos,

Compadecido do povo do Japão,

Difundiu o Voto Compassivo!

Louvemo-lo com alegria!

 

Através de incontáveis vidas e inumeráveis eons,

Cada um de nós tem recebido sua compaixão,

Há que nele tomar refúgio, com o coração uno,

Há que louvá-lo com alegria, sem descanso!

 

O Príncipe Shôtoku, com sua Compaixão,

Incessantemente nos protege e sustenta;

É ele que nos exorta a receber

A Dupla Graça do Tathagata.

 

3. Questões de vocabulário:

3.1. Salvador do Mundo = (Jap. Kuse, Guse ou Guze) = Epíteto do Bodhisattva Avalokitesvara que, segundo a crença corrente no Japão Medieval e compartilhada por Shinran, seria a Divindade Essencial (Honji), da qual o Príncipe Regente Shôtoku seria uma emanação ou manifestação (Suijaku).

3.2. Príncipe Shôtoku (Jap. Shôtoku-ô) = Estadista e erudito, o Príncipe Regente Shôtoku (574-622) era sobrinho da Imperatriz Suiko, em nome da qual governou o Japão como Regente. Dotado de profunda inteligência espiritual e política, foi discípulo do monge budista coreano Hui-tz’u (Eji) com quem se aprofundou no estudo dos Sutras, em particular do Sutra do Lótus, do Sutra do Resplendor Dourado, e do Sutra do Rei Benfazejo. Estudou também a Filosofia e o Direito Chinês, a Astronomia, a Geografia e a Ciência dos Calendários. Procurou manter relações diplomáticas com a China dos Sui em pé de igualdade e enviou estudantes ao continente para se familiarizarem com as instituições políticas chinesas. Tomando por modelo a burocracia. chinesa, criou no Japão um sistema de funcionários estatais composto de 12 classes ou graus hierárquicos. Promulgou a primeira lei escrita do Japão, a Ordenação dos Dezessete Artigos (604), de inspiração budista, confuciana e legista. Construiu os primeiros templos budistas do Japão, como o Hôryûji em Ikaruga e o Shitennôji em Naniwa (Osaka). Atuou na Corte como um pregador budista leigo, ministrando cursos sobre oSutra do Lótus (Hokkekyô) o Sutra do Ensinamento de Vimalakirti (Yuimagyô) e o Sutra da Senhora Srimala Devi (Shômangyô).

3.3. Preceptor do Japão (Jap. Wakoku no kyôshû) = Expressão inspirada em Grande Preceptor (Daionkyôshû), epíteto do Buda Sakyamuni.

3.4. O Augusto Príncipe difundiu o Voto Compassivo = O Mestre Shinran não deixa de ter razão em atribuir ao Príncipe a difusão do Voto Original do Buda Amida, uma vez que no Comentário ao Sutra do Ensinamento de Vimalakirti o Príncipe discorre sobre a noção de Terra Pura e cita o texto do 18º Voto do Grande Sutra. Trata-se da primeira citação feita no Japão do texto eleito por Shinran como a pura expressão da Verdade.

3.5. Dupla Graça do Tathagata (Jap. Nyorai no Nishu Ekô) = A Graça de Ir Nascer na Terra Pura (Ôsô Ekô) e a Graça do retorno ao mundo dos seres viventes (Gensô Ekô). Ambas são proporcionadas pelo Voto Original de Amida.

 

4. Comentário:

A biografia do Príncipe Shôtoku foi paulatinamente se convertendo numa hagiografia. Na Idade Média Japonesa o Príncipe era visto como uma emanação (Nirmanakaya, Keshin) do Bodhisattva  Avalokitesvara (Kannon), sendo objeto de um culto. Shinran compartilhava essa crença, como já foi visto, quando tratamos do episódio da revelação onírica ocorrida no Pavilhão Hexagonal quando ele tinha 29 anos.

Os Hinos de Louvor ao Príncipe Shôtoku foram compostos na fase final de sua vida, entre 83 e 86 anos, depois do trágico episódio da apostasia do filho Zenran. Além disso, aos 85 anos, compilou Shinran a Crônica do Augusto Príncipe (Jôgû Taishi Goki), uma hagiografia composta de trechos de obras hagiográficas de vários autores. Não podemos fazer aqui uma análise pormenorizada da biografia do Príncipe Shôtoku, queremos lembrar apenas que a mesma parece ter sofrido influências cristãs, explicáveis pela difusão do Cristianismo Nestoriano no Extremo Oriente. Assim, um dos epítetos atribuídos ao Príncipe é Umayado no Miko (Príncipe da Mangedoura), pois, à semelhança de Jesus, teria ele nascido numa mangedoura.

 

5. Conclusões:

5.1. Já mencionamos a importância da idéia de honji-suijaku (essência e manifestações) no pensamento de Shinran. Vimos anteriormente como Shinran via em seu Mestre Hônen uma manifestação do Bodhisattva Mahasthamaprapta (Seishi). Hoje vimos como Shinran via no Príncipe Shôtoku uma manifestação de Kannon. Amida, Seishi e Kannon formam a chamada Tríade Amidista, presente na Arte Budista Japonesa desde seus primórdios, como nos atesta a célebre Tríade Amidista do Templo Hôryûji em Ikaruga, imagens que a tradição diz que teriam sido objetos de devoção pessoal da Senhora Tachibana, mãe da Imperatriz Komyo (séc. VIII). Outra Tríade famosa é a do Templo Zenkôji em Nagano, que a tradição considera oriunda da Índia, trazida ao Japão através da China e da Coréia e entronizada primeiramente em Naniwa. Shinran dedica-lhe os Wasan finais do Shozomatsu Wasan, em que narra uma lenda sobre a origem da palavra Hotoke (Buda), intimamente ligada a essa imagem e à pessoa do Príncipe Shôtoku (Seiten pág.510). Nos altares dos Templos do Budismo Shin a estátua do Buda Amida está sozinha, ladeada apenas pelas representações pictóricas de Shinran, Hônen, Rennyo dos Patriarcas Indianos, Chineses e Japoneses e do Príncipe Shôtoku. A presença dos retratos de Hônen e do Príncipe nos permite concluir que nos altares Shin a Tríade amidista está presente, ainda que de uma forma dissimulada, já que a idéia de honji-suijaku, que integrava o universo das crenças pessoais de Shinran, nos permite decodificar os retratos de Hônen e do Príncipe como manifestações de Seishi e Kannon.

5.2. A figura do Príncipe Shôtoku no pensamento de Shinran é muito complexa. Ao mesmo tempo estadista e erudito leigo pregador do Budismo, o Príncipe parece ter inspirado o ideal de “nem clérigo nem leigo” (hisôhizoku) proclamado por Shinran. Por outro lado, nota-se a presença de uma estranha justaposição de imagens femininas e masculinas –  a) Kannon; b) a futura esposa de Shinran; c) o Príncipe Shôtoku – nas experiências de revelações oníricas de Shinran no Templo Hexagonal, vividas em 1201 e 1203. Há que lembrar que, ainda que geralmente representado em forma feminina, o Bodhisattva Avalokitesvara na sua essência é andrógino, reunindo características de ambos os sexos. Falamos anteriormente da primeira experiência onírica, a de 1201. Cumpre agora lembrar a segunda, ocorrida em 1203, em que Shinran teria visto Kannon que, se apresentando com um manto (Kesa) branco sobre as vestes monásticas – o branco é a cor das vestes dos leigos – lhe teria transmitido o seguinte poema:

Praticante! Se tua herança kármica te levar a possuir uma mulher,

Eu me tornarei uma Mulher de Jade e serei por ti possuída;

Durante toda a tua vida eu bem te ornamentarei;

E no teu momento final, te guiarei à Terra da Suprema Alegria.

 

Essa revelação teria decidido Shinran a dar o passo decisivo de abandonar os votos monásticos e assumir publicamente o matrimônio. Estamos diante de uma típica experiência de hierogamia (Matrimônio Sagrado) em que a voz de Kannon, na ótica da psicologia junguiana, soa como a da Anima, porção feminina do inconsciente masculino que guia o homem para experiências de conscientização mais profundas, rumo ao encontro com o Self (Eu Profundo). Podemos comparar essa revelação de Kannon com a figura de Beatriz que guia Dante Alighieri em sua ascensão ao Paraíso na Divina Comédia, e também com os versos finais do Fausto II de Goethe:

Tudo o que passa

Nada mais é do que símbolo:

O imperfeito

Aqui encontra sua completude;

O Inefável

 

Aqui se torna em ato;

O Eterno Feminino

Nos impulsiona para o alto.