Não temer os deuses – É o Budismo um ateísmo?

1. Considerações Iniciais:

Prossegue o Dobo Hôsanshiki com mais seis estrofes dos Hinos da Terra Pura, extraídas agora dos Genze Riyaku Wasan (Hinos dos Benefícios da Vida Presente). Nas três primeiras estrofes é garantida ao praticante do Nembutsu a proteção dispensada pelos deuses e demônios do panteão hindu absorvidos pelo Budismo como protetores do Dharma e assimilados pelo Budismo Japonês, juntamente com os deuses nipônicos através da teoria do sincretismo – Honji Suijaku. Nas demais estrofes, é garantida a proteção dispensada pelos Budas e Bodhisattvas do panteão do Budismo Mahayana, vistos como emanações do Buda Amida segundo uma formulação inspirada pelo Sutra do Ornamento de Flores (Kegongyô) que considera todos os Budas como emanações do Buda Cósmico

Vairocana. As presentes estrofes nos convidam a refletir sobre a questão do culto dos deuses no Budismo, ou, em outras palavras, sobre o a-teísmo budista. Há que fazer uma distinção entre a-teísmo (uma religião sem deus ou deuses) e ateísmo (postura filosófica anti-religiosa que critica e combate o conceito de deus).

 

2. Tradução:

Quando recitamos o NAMUAMIDABUTSU

Somos protegidos pelo Grande Rei dos Demônios

Do Céu Paranirmita,

Pois assim jurou ele ante o Buda Sakyamuni.

 

Todos os deuses do céu e da terra

Devem ser chamados de divindades benfazejas,

Pois todas essas deidades benévolas

Unanimemente protegem os praticantes do Nembutsu.

 

A Fé do Poder Inefável do Voto

É o próprio Grande Coração que almeja o Despertar,

Por tanto a temem com unanimidade

Os demônios maléficos que enxameiam nos céus e na terra.

 

Quando recitamos o NAMUAMIDABUTSU,

Avalokitesvara e Mahastamaprapta, em companhia dos Bodhisattvas

Numerosos como as areias do Ganges ou como partículas de pó,

Seguem-nos como a sombra de nosso corpo.

 

No brilho do Buda da Luz sem Impedimento

Manifestam-se incontáveis corpos de Amida;

Cada uma dessas emanações búdicas

Protege a Fé Autêntica e Real.

 

Quando recitamos o NAMUAMIDABUTSU

Os Budas incontáveis das dez direções

Formam centenas, milhares de círculos ao nosso redor,

Protegendo-nos com júbilo.

 

3. Questões de Vocabulário:

3.1.Grande Rei dos Demônios do Céu Paranirmita (Jap. Taketen no Daimaô) = Segundo a cosmologia mitológica hinduísta assimilada pelo Budismo, trata-se de uma entidade maléfica residente no Sexto Céu do Mundo dos Desejos. Para Shinran, até mesmo as entidades demoníacas, tidas geralmente como tentadoras e perturbadoras dos que buscam o Despertar, atuam como defensoras dos praticantes do Nembutsu.

3.2.Deuses do céu (Jap. Tenjin) = Divindades hindus como Brahma, Indra, Sakra e os Quatro Guardiões dos Pontos Cardeais.

3.3.Deuses da Terra (Jap. Chigi) = Divindades telúricas hindus como a Deusa Driha-Prithivi-Devata (Deusa da Terra Sólida).

3.4.Fé do Poder Inefável do Voto (Jap. Ganriki Fushigi no Shinjin) = A Fé que nos é proporcionada pelo Poder Inefável do Voto Salvífico do Buda Amida ou Voto Original.

3.5. Grande Coração que almeja o Despertar (Jap. Daibodaishin) = Por Coração que almeja o despertar (Sanscr. Bodhicitta, Jap. Bodaishin) entende-se o desejo de atingir o Despertar. Aqui é chamado de Grande (Jap. Daí) por não ser oriundo da iniciativa dos seres viventes, mas sim proporcionado aos mesmos pelo Voto Original do Buda Amida.

3.6.Avalokitesvara (Jap. Kannon) = Bodhisattva que, na Tradição da Terra Pura, corporifica a Grande Compaixão de Amida. Na qualidade de acólito de Amida, posta-se à direita do mesmo.

3.7.Mahastamaprapta (Jap. Seishi) = Bodhisattva que representa a Sabedoria de Amida. Na qualidade de acólito de Amida, posta-se à esquerda do mesmo.

3.8.Emanações búdicas (Jap. Kebutsu) = os corpos emanados do Buda Original ou Essencial (O Sakyamuni Eterno segundo o Sutra do Lótus, Vairocana, segundo o Sutra do Ornato de Flores (Kegon), Mahavairocana, segundo o Budismo Esotérico Shingon ou Amida, segundo a Doutrina da Terra Pura).

 

4. Comentário:

Os homens fizeram três grandes tentativas religiosas para se libertarem da perseguição dos mortos, da maleficência do Além e das angústias da magia. Separados pelo intervalo de aproximadamente meio milênio, conceberam sucessivamente o budismo, o cristianismo e o islamismo; e é impressionante que cada etapa, longe de marcar um progresso em relação à precedente, antes testemunha um retrocesso. Não há vida futura para o budismo; ele tudo se reduz a uma crítica radical de que a humanidade nunca mais deveria mostrar-se capaz, à qual o sábio acede, numa recusa do sentido das coisas e dos seres: disciplina que anula o universo e anula a si própria como religião. Cedendo novamente ao medo, o cristianismo restabelece o outro mundo, as suas esperanças, ameaças e seu juízo final. Ao islamismo só resta encadeá-lo a este mundo: o mundo temporal e o mundo espiritual acham-se reunidos.

Claude Lévi-Strauss – Tristes Trópicos

 

O primeiro impacto que o Budismo provocou em mim está ligado à questão dos deuses. Tendo meu professor de Teatro Nô, o Dr. Takeshi Suzuki, me feito ler um livro de cosmologia mítica hindu-budista para que eu melhor entendesse o conteúdo das peças teatrais, fiquei fascinado com o cenário barroco daquela mitologia, um universo complexo formado por céus superpostos habitados por incontáveis divindades sob o qual se aprofundava um mundo subterrâneo igualmente complicado, formado por uma sucessão de planos infernais habitados por demônios pavorosos a atormentar os danados. Impressionado por esse universo fantástico, fiz uma pergunta ingênua a um missionário do Nishi Honganji:

–          Todos esses deuses e demônios existem mesmo?

A resposta foi um choque para mim:

–          Se você acredita neles, eles existem, se não acredita, não existem.

No momento, não entendi o sentido profundo dessa resposta, mas consegui perceber que por detrás dela havia uma coisa muito importante, para a qual valeria a pena dedicar minha vida. Tal foi meu primeiro passo no Caminho Búdico.

Cedo me dei conta de que o Budismo não era uma religião como as outras. Ao invés de propor o culto de um ou vários deuses, ele me convidava a buscar o Despertar através de uma via introspectiva. Em suma, o Budismo é um a-teísmo, uma religião sem deus, mas não um ateísmo, isto é, uma ideologia preocupada em negar o conceito de deus numa postura agressivamente anti-religiosa. Nas páginas finais de seu importante estudo O Budismo, uma religião sem Deus, o orientalista alemão Helmut Von Glasenapp sintetiza as principais características do a-teísmo budista:

O budista não crê em um deus que o conheça ou a ele se entregue por amor e que seja capaz de liberta-lo dos laços da finitude. O representante ortodoxo do Hinayana vê no Buda apenas um indicador do Caminho da Salvação. No Mahayana, a crença em Amitabha e outros seres compassivos formou a idéia de que um dispensador da salvação é capaz de, por meio de sua graça, salvar do torvelinho dos renascimentos os homens que a ele se submetem em confiada veneração. Entretanto, a veneração de seres superiores não surge unicamente do desejo egoísta de redimir-se da infelicidade, também tem como motivo, muitas vezes, a necessidade profundamente arraigada no homem de fixar seu olhar em um ideal personificado, pois como disse acertadamente Goethe: “O homem tem uma veia reverenciadora”. Nas religiões teístas essa veneração se dirige a deus, pois “ninguém é bom, a não ser o único deus” (Marcos, 10, 18) e respectivamente sua encarnação no mundo terreno. No Budismo, o Buda é a imagem ideal da perfeição, na qual o crente encontra unificada a bondade, a verdade e a beleza à qual oferece seu temor reverencial… O Budismo tem em comum com todas as religiões a idéia da sacralidade de determinadas representações, ritos, lugares e pessoas, na aplicação desta pedra de toque se mostra na forma mais clara que o Budismo não é apenas uma determinada concepção metafísica do mundo e um ordenamento da vida, mas também uma autêntica religião. O sagrado, que está acima e por detrás do perecível como o “absolutamente outro” é, no Hinayana, o Nirvana, no Mahayana o Sunyata ou a Vijnaptimatrata sobre cuja semelhança com a idéia de deus já discorremos mais acima.

Em suma, o Budismo liberta o homem do terror dos deuses não necessariamente negando sua existência, mas principalmente reinterpretando-os como meros protetores da Doutrina e dos devotos, ou como emanações benfazejas dos Budas e Bodhisattvas que visam orientar e salvar os seres viventes. No Budismo Shin, o Patriarca Fundador Shinran e os Mestres Zonkaku e Rennyo ensinaram que o praticante do Nembutsunão tem necessidade alguma de cultuar os deuses, os Budas – com a exceção de Amida – e os Bodhisattvas, pois não passando os mesmos de emanações ou acólitos de Amida, seu culto já se encontra implícito na recitação do NAMUAMIDABUTSU. Tal é a postura doutrinária que inspira estas estrofes de Shinran, absolutamente fiéis à postura a-teísta do Budismo.