Lembrar-se do Buda: Nembutsu, Mantra, Dharani e Arte da Memória

1. Considerações Iniciais – Lembrar-se do Buda: Nembutsu, Mantra, Dharani e Arte da Memória :

Segue-se, no Dobo Hôsanshiki, a primeira das duas estrofes introdutórias do Jôdo Wasan, que sintetiza a concepção que Shinran tem do Nembutsu e nos suscita a refletir sobre o problema do Nembutsu e da memória.

 

2. Tradução:

Recitando continuamente o Sagrado Nome de Amida,

Aqueles que receberam a Verdadeira Fé,

Com o pensamento constante de profunda consideração pelo Buda

Intentam retribuir a Benevolência Búdica.

 

3.Questões de Vocabulário:

3.1.Sagrado Nome de Amida (Jap. Mida no Myôgô) = O NAMUAMIDABUTSU que pode ser traduzido como Eu tomo refúgio no Buda da Luz e da Vida Imensuráveis.

3.2.Recitando continuamente (Jap. tonaetsutsu) = entoando continuamente o Nome de Amida.

3.3.Verdadeira Fé (Jap. Makoto no Shinjin) = A Fé que, em conformidade com o que é prometido no Voto Original, recebemos do Buda Amida como dádiva incondicional e gratuita.

3.4.Com o pensamento constante de profunda consideração pelo Buda (Jap. Okunen no Shin tsune ni shite) = O termo-chave é okunen para cuja tradução nos baseamos noVocabulário da Língua do Japão dos Padres Jesuítas Portugueses (Nagasaki, 1603) que traduz: profundo pensamento ou profunda consideração. O Dicionário de Japonês Clássico da Editora Ôbunsha explica: pensar profundamente numa coisa e não se esquecer dela.

 

4.Comentário:

A presente estrofe relaciona o Nembutsu com a Fé e mostra que a prática do mesmo é um ato de gratidão para com o Buda Amida, cujo Voto Original nos proporciona a Fé e a Salvação. Também nos adverte de que a recitação contínua do Nembutsu é uma constante rememoração do Buda. O Nembutsu está profundamente relacionado com a problemática da memória e do esquecimento. Nembutsu significa, literalmente, pensar no Buda ou lembrar-se do Buda. Recitar o Nembutsu é rememorar o Buda.

Uma tendência profundamente enraizada no ser humano é a de esquecer as coisas fundamentais. Mergulhados profundamente no torvelinho das preocupações cotidianas que pertencem ao domínio das paixões fortes e resistentes que nos escravizam, não nos lembramos de nossa verdadeira identidade, nunca paramos para meditar sobre as três questões verdadeiramente fundamentais: Quem sou eu? De onde venho? Para onde vou? Em termos religiosos, nunca nos lembramos do Buda, ou de Deus, no caso das religiões monoteístas. Recitar o Nome Divino é uma prática fácil que nos permite lembrar de Buda ou de Deus, como no caso da prática do zikr entre os muçulmanos.Zikr significa lembrar-se de Deus ou pensar em Deus.

Como prática de rememoração, o Nembutsu está bastante próximo da recitação demantras e dharanis que encontramos no Budismo Esotérico. O falecido Prof. Bando
Shojun
nos lembra que ambas as práticas remontam a uma raiz comum e que muitas vezes o Nembutsu é entendido e praticado de uma maneira mágica, como os mantrase dharanis.

Lembro que mantra significa, etimologicamente, ferramenta do pensamento (man = pensamento, tra = ferramenta),.e que dharani, cuja raiz dh é a mesma de dharma, significa guardar, memorizar, ter em mente, Arte da Memória. Mantras e Dharanisseriam basicamente palavras ou fórmulas para pensar em alguma coisa ou memoriza-la. No

Budismo Esotérico os mantras e dharanis são considerados possuidores de um sentido extremamente profundo, além das possibilidades de expressão através do discurso racional. Quanto ao Nembutsu, diz Shinran no Tannishô:

 

O significado do Nembutsu está no não-significado, isso por ser ele inominável, inexprimível e impensável.

(Seiten, pág. 630)

Tanto o Mantra como o Nembutsu visam rememorar algo que é impensável e facilmente esquecido. A principal diferença entre ambos é percebida quando se atenta para a constante preocupação de Hônen e Shinran de desvincular o Nembutsu do campo da magia, no qual o Mantra e o Dharani estão profundamente enraizados. Lembra o Prof. Bando Shojun que, consciente da proximidade existente entre oNembutsu e o Mantra, Hônen cita, no Senjakushû, uma passagem do Mestre Kûkai (Kobo Daishi), introdutor da Escola Shingon de Budismo Esotérico no Japão, com o objetivo de mostrar as semelhanças e diferenças entre ambas as práticas. Trata-se de um trecho do Ben-kenmitsu-ron (Tratado das Duas Doutrinas) em que Kûkai transcreve a seguinte passagem do Sutra das Seis Perfeições (Rokuharamitsu –kyô):

A Terceira Jóia do Dharma é o Dharma Correto exposto pelos inumeráveis Budas do passado e agora por eu próprio, ou seja, a coleção dos oitenta e quatro mil elementos maravilhosos do Dharma. Até os seres dotados de afinidade serem disciplinados e atingirem a plena maturidade, farei com que os grandes discípulos como Ananda e os demais a guardem inteiramente na memória desde a primeira audição. Essa coleção se divide em cinco partes: 1) Sutras (exposições doutrinárias), 2) Vinaya (disciplina), 3)Abhidharma (exegese), 4) Prajnaparamita (Perfeição da Sabedoria) e 5) Portal dosDharanis (Fórmulas Tântricas). Através dessas cinco coleções instruo e edifico os seres viventes, expondo-as de acordo com a conveniência destes últimos.

Se os seres viventes preferem permanecer nas montanhas e nas florestas para viverem solitários cultivando a meditação, exponho-lhes a coleção dos Sutras. Se os seres viventes preferem aprender a boa conduta para guardar o Dharma Correto e conservar por um longo tempo a harmonia da Comunidade, exponho-lhes a coleção do Vinaya. Se os seres viventes preferem expor o Dharma Correto discernindo sua natureza e suas características e prolongando seu estudo até os níveis mais profundos, exponho-lhes a coleção do Abhidharma. Se os seres viventes preferem aprender a Sabedoria Verdadeira do Grande Veículo e se libertarem do apego e da discriminação inerente ao eu e aos dharma, eu lhes exponho a coleção da Perfeição da Sabedoria, oPrajnaparamita. Caso os seres viventes não possam absorver nem os Sutras, nem oVinaya, nem o Abhidharma, nem a Perfeição da Sabedoria, ou se cometerem más ações como os quatro ou os oito crimes, as ações punidas de maneira ininterrupta, a calúnia dos Sutras desenvolvidos e as diferentes faltas próprias dos seres desprovidos das raízes da Iluminação, eu lhes exporei então a coleção dos Dharanis para que suas faltas sejam apagadas e eles possam atingir rapidamente o Despertar e alcançar o Nirvana de maneira súbita.

Essas cinco coleções são comparáveis, respectivamente, ao leite, o creme, à coalhada, à manteiga e ao elixir. Os Sutras são como o leite, o Vinaya como o creme, oAbhidharma como a coalhada, o Prajnaparamita como a manteiga e o Portal dosDharanis como o elixir. O sabor do elixir é o mais maravilhoso, comparado com o do leite, do creme, da coalhada e da manteiga, pois o elixir elimina as moléstias e proporciona a paz do coração e do corpo a todos os seres viventes. Da mesma forma, o portal dos Dharani é o primeiro em comparação com os Sutras, etc. Ele apaga as faltas graves e liberta os seres viventes dos nascimentos e mortes, proporcionando-lhes a imediata realização do Corpo de Dharma da felicidade serena do Nirvana.

Hônen acrescenta o seguinte comentário:

Nesta citação, as cinco faltas punidas de maneira ininterrupta correspondem às cinco perversidades. Seria extremamente difícil curar a doença das cinco faltas punidas de maneira ininterrupta sem o remédio maravilhoso do elixir. O mesmo ocorre com oNembutsu. Dentre os diferentes ensinamentos a respeito do ir-nascer na Terra Pura, oSamadhi do Nembutsu se destaca, à semelhança dos Dharanis e do elixir. Sem esse remédio que é o Samadhi do Nembutsu, seria extremamente difícil sanar a gravíssima moléstia das cinco perversidades. Isto deve ser sabido!

Vemos aqui que, tal como o Nembutsu, os Dharanis são considerados capazes de salvar os maus. A principal diferença, insistimos, está nos Mantras e Dharanisconservarem toda uma dimensão mágica de que os mestres da Terra Pura trataram cuidadosamente de desvencilhar do Nembutsu. Por outro lado, ambas as práticas dizem respeito ao pensamento e à memória, como já vimos.

No mundo ocidental também existe uma Arte da Memória, uma disciplina arcana de origem greco-romana que foi bastante cultivada na época do Renascimento. Diferente da Arte da Memória indiana que consistia na memorização de palavras, a Arte da Memória Ocidental compreendia a visualização mental de lugares e coisas ou pessoas.

Quanto a Shinran, ele também tinha consciência das semelhanças entre o Nembutsu e o Budismo Esotérico e procura mostrar veementemente as diferenças, no Cap. XV doTannishô:

Há os que ensinam que podemos alcançar a iluminação com este mesmo corpo carregado de paixões. Essa opinião pé totalmente absurda. A Realização Búdica Aqui e Agora com nosso corpo de carne é a tese central da Escola Esotérica Shingon, é o resultado da prática do Yoga dos Três Segredos.

(Seiten, pag. 636)

É interessante lembrar que Shinran demonstra conhecer as Escrituras Esotéricas e chega a citar uma delas, o Sutra Fukûkenjaku Jimpen Shingon-kyô (Amoghapasa-sutra) no Shinbutsudo:

Deves saber que o local de teu nascimento nesta vida é a Terra da Pura da Retribuição do Buda Amida. Tendo nascido maravilhosamente de uma flor de lótus, constantemente contemplas os Budas. Haverás de alcançar a compreensão dos diferentes dharmas. A duração de tua vida será de incontáveis milhões de ciclos cósmicos. Alcanças de forma imediata a Perfeita e Insuperável Iluminação e não está sujeito a retroceder. Dispenso-te constante proteção.

(Seiten, pág. 303)

 

Terminando, quero chamar a atenção para o termo sânscrito amrta (imortalidade) usado pelo Prof. Ichijô Ogawa como título da coluna do Instituto de Pesquisas Doutrinárias do Budismo Shin, que tem como slogan uma das frases iniciais do Shin no Maki:

A Grande Fé é o maravilhoso e supremo método para se alcançar a vida longa e a imortalidade.

(Seiten, pág. 211)

Amrta, que designa também o néctar da imortalidade (Jap. Kanro), alimento dos deuses indianos, é um vocábulo intimamente ligado a Amida, sendo a palavra-chave doAmida Nyorai Kompon Darani (Dharani-Raíz do Tathagata Amida), um Dharanirecitado diariamente na liturgia do Budismo Esotérico Shingon.

por Rev. Shaku Riman (Ricardo Mário Gonçalves)