O Triunfo da Luz sobre as Trevas

1.Considerações Iniciais – O Triunfo da Luz sobre as Trevas:

O Dobo Hôsanshiki (Rito de Louvor ao Dharma pelos Irmãos) começa com as seis estrofes iniciais dos San Amidabutsu Ge Wasan (Hinos dos Gathas de Louvor a Amida) que constituem a primeira seção dos Jôdo Wasan (Hinos da Terra Pura). Os San Amidabutsu Ge Wasan compreendem 48 estrofes, traduções livres para o japonês corrente de alguns dos 195 versos dos Gathas de Louvor ao Buda Amida (San Amidabutsu Ge) compostos pelo Patriarca T’an-luan  (476-542) a partir de passagens do Grande Sutra.

 

2.Tradução:

I

Desde que Amida se tornou Buda,

Dez ciclos cósmicos já se passaram.

Ilimitada é a auréola de seu Corpo de Dharma

Que ilumina as trevas do mundo.

II

 Imensurável é a Luz da Sabedoria!

Nenhuma das formas mensuráveis

Deixa de receber seu brilho matutino.

Tomai refúgio na Luz Real e Verdadeira!

III

Ilimitada é a auréola da Libertação!

Foi dito que todos os que são tocados por Sua Luz

Libertam-se do ser e do não-ser.

Tomai refúgio no Equânime Despertar!

IV

As nuvens de Luz são livres como o espaço!

Não são afetadas por nenhum impedimento,

Nada deixa de receber o brilho dessa Luz.

Tomai refúgio no Inefável!

V

Incomparável é a Pura Luz!

Ao ser encontrada essa Luz,

Todos os laços kármicos são desfeitos.

Tomai refúgio no Último Abrigo!

VI

A Luz Búdica refulge com supremo brilho!

Seu nome é Buda Soberano das Chamas Fulgurantes!

Rompe as trevas dos Três Caminhos do Mal.

Tomai refúgio no Grande Arhat!

 

3.Questões de Vocabulário:

3.1.Dez ciclos cósmicos (Jap. jûkô) = Segundo a pregação do Buda Sakyamuni no

Grande Sutra e no Sutra de Amida, o Bodhisattva Dharmakara se tornou num Buda chamado Amida há dez kalpas atrás. O kalpa (Jap. ) é um ciclo cósmico extremamente longo.

3.2.Corpo de Dharma (Jap. Hosshin) = Temos aqui uma referência ao Corpo de Dharma como Hábil Meio salvífico (Hôben Hôsshin), um dos dois aspectos do Corpo de Dharma segundo T’an-luan. O outro aspecto é o Corpo de Dharma como Natureza Essencial (Hosshô Hosshin). O Hôben Hosshin é o corpo emanado da Natureza Essencial com o objetivo de conduzir todos os seres sensíveis à Iluminação. O Buda Amida, pólo de nossa devoção e nosso culto, é o Corpo de Dharma como Hábil Meio Salvífico.

3.3.Brilho Matutino (Jap. Kôkyo) = Amida é o Buda da Luz Imensurável, a Luz representando a Sabedoria. Quando o Sol da Sabedoria desponta dissipando as trevas de nossa ignorância, a alvorada surge em nosso horizonte espiritual. Amida emite doze luzes, correspondentes a doze diferentes operações de sua Sabedoria. São elas glorificadas em vários versos do Shoshinge e dos Gathas de T’an-luan, bem como nas versões japonesas dos mesmos por Shinran.

3.4.Luz Real e Verdadeira (Jap. Shinjitsumyô) = A Luz de Amida é o conhecimento do Real e do Verdadeiro que nos faz tomar consciência de nossa ignorância e de nossas mazelas. Por isso Amida recebe o nome de Luz Real e Verdadeira.

3.5.Libertação (Jap. Gedatsu, Sanscr. Moksa) = Na Tradição Indiana, a libertação do cárcere dos nascimentos e mortes (samsara) em que somos mantidos por nossa ignorância (avidya) é uma das quatro finalidades da existência. As três finalidades restantes são: Artha (o poder e o lucro), Kama (o desejo e o prazer) e Dharma (o cumprimento das normas jurídicas e rituais). No Budismo Shin, a Libertação é proporcionada pelo Poder de Amida ou Outro Poder (Tariki).

3.6.Ser e não-ser (Jap. U-mu) = Segundo o Budismo Mahayana, a Libertação consiste em desvencilhar-se tanto da perspectiva substancialista, que encara os fenômenos como  existentes, como da ótica niilista, que os vê como não existentes. Tal é o Vazio (Sunya) pregado pelo Bodhisattva Nagarjuna, o Primeiro Patriarca do Budismo Shin:

Dizer “é” consiste em tomar as coisas por eternas;

Dizer “não é” consiste em ver apenas seu aniquilamento.

Por isso, o homem esclarecido não se apega

Nem à idéia de ser, nem à de não-ser.

(Nagarjuna – Tratado do Vazio por Excelência 15,11)

Há que lembrar a declaração de Shinran segundo a qual o Budismo Shin é a Essência Última do Mahayana (Mattosho I, Seiten pág. 601). Portanto, a Doutrina Shin se encontra em absoluta concordância com a Doutrina do Vazio, exposta por Nagarjuna, como prova o presente verso dos Wasan.

3.7.Equânime Despertar (Jap. Byôdôkaku) = Um dos aspectos da Iluminação Búdica é a Equanimidade, resultante do conhecimento da igualdade última de todos os fenômenos. Tendo alcançado essa Verdade, o Buda Amida a coloca a nosso alcance. A expressão “Equânime Despertar” aqui é, na realidade, usada como epíteto do Buda Amida.

3.8.Impedimento (Jap. Ge) = A expressão se refere aos impedimentos ou obstáculos à Libertação, de natureza kármica, cuja raiz primordial é a ignorância.

3.9.O brilho de sua Luz (Jap. Kôtaku) = A Luz de Amida beneficia todos os seres, amadurecendo-os para o Despertar e protegendo-os dos males, obstáculos e impedimentos.

3.10.Inefável (Jap. Nanshigi) = A Verdade Suprema, segundo o Budismo Mahayana, está além do pensamento conceitual e da linguagem. Aqui a expressão é usada como epíteto do Buda Amida, personificação dessa Verdade Suprema.

3.11.Ao ser encontrada essa Luz (Jap. Gushikô) = Encontrar a Luz significa, na perspectiva de Shinran, ser agraciado com a Fé no Voto Original do Buda Amida.

3.12.Laços kármicos (Jap. Gôke) = Os laços das ações, palavras e pensamentos culposos que nos encadeiam aos nascimentos e mortes.

3.13.Último Abrigo (Jap. Hikkyôe) = Epíteto de Amida visto como o Abrigo último e fundamental do devoto. Lembro aqui a definição de Religião como interesse último ou fundamental (ultimate concern) proposta pelo teólogo protestante Paul Tillich.

3.14.Três Caminhos do Mal (Jap. Sanzu) = Referência ao inferno (caminho do fogo), ao mundo dos entes famintos (caminho da espada) e ao mundo dos animais (caminho do sangue), vistos como três caminhos de trevas.

3.15.Grande Arhat (Jap. Daiôgu) = Epíteto do Buda Amida. Arhat é o Sábio digno de ser homenageado com oferendas.

 

4.Comentário:

Os presentes versos são hinos a celebrar o triunfo da Luz sobre as Trevas. A História Comparada das Religiões nos mostra que a Luz é uma hierofania (manifestação do Sagrado) experimentada nas mais diversas tradições religiosas. As Trevas, colocadas em oposição à Luz, são identificadas com a ignorância, a escravidão das paixões e a morte. O tema do triunfo da Luz sobre as Trevas é próprio de uma perspectiva gnóstica presente na religiosidade indiana desde a época dos Upanisads:

Do irreal, conduze-me ao Real.

Das trevas, conduze-me à Luz.

Da morte, conduze-me à Imortalidade.

(Brihadaranyaka – Upanisad, I, iii, 28.)

 

Na Tradição Hindu, o Eu Supremo (Atman) é descrito como uma luz presente no coração. No Budismo, o despertar súbito para o conhecimento da Verdade é descrito como sendo a percepção de uma Luz. Na biografia do Buda Histórico Sakyamuni é dito como, após uma longa noite de meditação, ele ergueu os olhos para o céu no momento da aurora e percebeu, de maneira brusca, o brilho da Estrela da Manhã. Nos textos filosóficos do Grande Veículo, a luz do céu no momento da aurora, sem o brilho da lua, é considerada símbolo da ”Clara Luz denominada o Vazio Universal”. Em outras palavras, o estado de Buda, a situação daquele que se liberta de todo o condicionamento, é simbolizada pela Luz percebida por Gotama no momento de sua iluminação. É descrita como sendo “Clara” e “Pura”, isto é, não apenas sem manchas ou sombras, mas também sem nenhuma cor ou determinação. Por isso ela é denominada “o Vazio Universal”, pois o termo sunya (Vazio) designa aquilo que é desprovido de qualquer atributo ou especificação: trata-se do Urgrund, a Realidade Última. Segundo a Tradição Indiana, pois, a manifestação mais adequada do Sagrado se efetua através da Luz, e aqueles que adquiriram um alto grau de espiritualidade se mostram capazes de emitir luz. Em Amaravati, encontramos o Buda representado por uma coluna de fogo. Após um discurso doutrinário, declara o Buda Gotama:

 

 Tornei-me numa chama e me elevei nos ares até uma altura de sete palmeiras. Digha Nikaya, III, 27.

O brilho do Buda se torna um verdadeiro clichê onipresente nos textos. As estátuas da Escola de Gandhara representam as chamas saindo do corpo do Buda, particularmente de seus ombros. Nos afrescos murais da Ásia Central, os Arhats, assim como os Budas, são representados com chamas de diferentes cores emanando de seus ombros. Certos Budas são figurados voando pelos ares, provocando a confusão das chamas com asas. Essa luz é considerada de essência ióguica, isto é, resultante da realização experimental de um estado transcendente. O Buda Amida é o Buda da Luz Infinita(Amitabha). No Grande Sutra, é descrito como o Buda das Doze Luzes, correspondentes a doze atributos ou operações salvíficas.

Na espiritualidade iraniana, temos a oposição entre os Dois Princípios, Ormuzd (Ahura Mazda), o Deus Luminoso do Bem, e Ahriman, o Deus das Trevas e do Mal. O Universo é descrito como o campo de uma batalha cósmica entre a Luz e as Trevas, que findará com o triunfo definitivo da Luz. Esse tema deixa suas marcas no Judaísmo e pode ser visto no texto denominando A Batalha dos Filhos da Luz contra os Filhos das Trevasque integra a coleção dos manuscritos descobertos em Qumran (Manuscritos do Mar Morto). Esse tema também é fundamental na religião de Mani (216-277) ou Maniqueísmo, visto no Ocidente como uma heresia cristã e na China, onde é conhecido desde 695 como a “Religião da Luz”, como uma forma algo herética de Budismo. Encontramos no Tripitaka sino-japonês (Edição Taishô) alguns textos maniqueístas.

No Cristianismo, destaca-se o Evangelho de São João, notável por suas ressonâncias gnósticas e esotéricas, cujo prólogo descreve Jesus como a Luz do Mundo:

No princípio era o Verbo e o Verbo estava com Deus e o Verbo era Deus.

No princípio, ele estava com Deus.

Tudo foi feito por meio dele e sem ele nada foi feito.

O que foi feito nele era a vida, e a vida era a luz dos homens e a luz brilha nas trevas, mas as trevas não a apreenderam.

(João 1, 1-5.)

 

Vemos aqui que, como Amida (Amitabha, Luz Imensurável e Amitayus, Vida Imensurável), Jesus também é descrito como Luz e Vida. O tema da Luz é fundamental na mística cristã, particularmente no pensamento do Pseudo-Dionísio, o Areopagita, que inspirou, na Idade Média, o Abade Suger (1081-1151), o pai da arquitetura gótica, notável pela luminosidade que, através de vitrais coloridos, banha o interior de suas catedrais:

No momento, cabe-nos celebrar o Bem sob o título de Luz inteligível e dizer que o Bem é chamado Luz inteligível porque ele cumula todas as inteligências supracelestes com luz inteligível, porque ele dissipa toda ignorância e todo erro de todas as almas onde penetra e a todas concede o dom de sua santa luz, porque ele purifica os olhos de sua inteligência da bruma com a qual lhes encobre sua ignorância, porque ele desperta e faz abrir as pálpebras àquelas que o fardo das trevas adormece, pois ele de início lhes dá uma luminosidade moderada, depois, quando, por assim dizer, experimentam a luz e dela desejam mais, ele aumenta sua parte e as ilumina excelentemente, porque elas “muito amaram” (Lucas 7, 47): porque, enfim, ele não cessa de as estimular no caminho do progresso à medida de seu esforço pessoal para elevar seu olhar para o alto.

Chama-se, portanto, Luz inteligível este Bem que está além de toda luz, porque ele é fonte de toda iluminação e difunde o mais pleno de sua luz sobre toda inteligência; quer se trate daquelas que ultrapassam este mundo, daquelas que o envolvem ou daquelas que aí permanecem, é ele que as ilumina com toda sua plenitude, que renova seus poderes de intelecção, que as contém todas em sua extensão e as supera todas por sua transcendência, que sintetiza enfim de maneira simples, que contém antecipadamente e conserva em si o inteiro domínio do poder que ilumina. Ele é, com razão, princípio da luz e, portanto, é demasiado pouco chamá-lo luz, reunindo em si e concentrando a totalidade dos seres dotados de inteligências e de razão. Como a ignorância divide aqueles que se desviaram, também a presença da luz inteligível agrupa e reúne aqueles que ela ilumina, aperfeiçoa, converte-os ao Ser absoluto e, desviando-os da pluralidade das conjecturas, restabelecendo a variedade de suas visões – ou melhor, de suas imaginações – a um só conhecimento, verídico, purificado, unificado, e enchendo-os de uma luz única e unificadora.

(Pseudo-Dionísio, o Areopagita – Os Nomes Divinos)

Encerro estas considerações com a apresentação de um relato de um sonho de um comerciante norte-americano do século XIX, extraído do artigo Experiências da Luz Mística de Mircea Eliade (1907-1986), o maior historiador das religiões do século XX:

Eu me encontrava atrás do balcão de minha loja, numa tarde luminosa e ensolarada; num piscar de olhos tudo ficou mais sombrio do que a noite mais escura, como se eu estivesse nas profundezas de uma mina. O cavalheiro com quem eu começava a conversar saiu correndo pela rua. Eu o segui, e embora estivesse tudo escuro, eu percebia centenas e milhares de pessoas se deslocando pela rua, se interrogando sobre o que estava ocorrendo. Nesse momento vi no céu, ao longe, na direção sudoeste, uma luz resplandecente como uma estrela, mais ou menos do tamanho da palma de minha mão. Num instante tive a impressão de que a luz crescia e se aproximava, começando a iluminar as trevas. Quando ela atingiu o tamanho de um chapéu de homem, dividiu-se em doze luzes (o grifo é meu – RMG) menores, com uma luz maior ao centro. Aumentou então com muita rapidez e eu soube então que se tratava do advento do Cristo. Quando tive esse pensamento, todo o sudoeste do céu foi ocupado por uma multidão luminosa, em cujo centro se encontrava o Cristo com os doze apóstolos. Agora tudo estava mais claro do que o mais luminoso dos dias e, enquanto a multidão brilhante se dirigia para o zênite, o amigo com quem eu falava exclamou: – “É o meu Salvador!”. Nesse mesmo momento ele abandonou seu corpo e subiu ao céu. Pensei então que eu não era tão bom a ponto de ser digno de acompanhá-lo. Nesse instante, eu acordei.

Eliade esclarece que tempos depois esse homem, estando num barco, cercado por muita gente, teve uma nova experiência espiritual e psicológica: parecia-lhe que sua alma e seu corpo estavam inundados de luz. No relato do sonho vemos que o mundo profano, até então claro, escurece de repente, quando está próximo o advento da Luz Divina, o que lembra os versos iniciais do Tanbutsuge, em louvor ao semblante radioso do Buda Lokesvara-raja:

Teu semblante luminoso: Sublime! Sublime!

Tua divina majestade: Ilimitada!

Da mesma forma, tua brilhante claridade

Por nada pode ser igualada.

A luz e o brilho do sol, da lua,

Da jóia Mani e da pérola

São totalmente eclipsadas,

Como se fossem borrões de tinta negra.

 

Como no Grande Sutra, aqui também temos doze luzes que o sonhador, sendo cristão, interpreta como sendo os doze apóstolos do Cristo. Lembro que na Simbologia Universal o número doze simboliza o Universo em seu desenvolvimento cíclico espaço-temporal e também em sua complexidade interna. Indica algo levado a seu termo, um ciclo completado. São doze as constelações zodiacais, os filhos do patriarca Jacó, as tribos de Israel, os apóstolos do Cristo e as portas da Jerusalém Celeste descrita no Apocalipse, equivalente cristão da Terra Pura do Buda Amida.

Comentando as experiências do comerciante americano, Eliade conclui que o encontro com a luz indica um novo nascimento espiritual. É o que percebemos em Shinran e nos demais Mestres da Tradição da Terra Pura, quando se referem à Luz Inefável de Amida gloriosamente triunfante sobre as trevas da ignorância.

por Shaku Riman (Ricardo Mário Gonçalves)