NOTAS SOBRE O SHOSHINGE – 7

Rev. Prof. Dr. Ricardo Mário Gonçalves

 

Se o Pensamento Único de Alegria e Apreço é despertado em nosso coração,

Sem extirpar as paixões, atingimos o Nirvana.

Quando os profanos, os sábios, os perversos e os detratores forem todos convertidos,

Serão como as águas unidas em um só sabor, ao se misturarem no Oceano.

 

1. Considerações Gerais: Aqui é exposta a idéia de salvação no Budismo Shin. O que devemos entender por salvação? Nas chamadas religiões de salvação (Religions de Salut) temos: a – um Salvador divino; b – os entes a serem salvos; c – a ação salvífica do Salvador, em resposta aos anseios de seus devotos.

No Budismo Shin, como, aliás, em todas as escolas ortodoxas de Budismo, não existem eleitos predestinados à salvação, esta deve ser compreendida: a – em função da Lei do Karma; b – como uma modalidade de conhecimento do Real, ou seja, como uma salvação de cunho gnóstico.

 

2. Questões de Vocabulário:

2.1.Pensamento Único = diz-se do instante em que é despertada em nós a Fé concedida por Amida.

2.2.Alegria e Apreço = o conteúdo da Fé, ou seja, alegria e apreço em relação ao Dharma. Muitos exegetas do Budismo Shin definem a Fé como um novo olhar ou uma nova ótica, o Olhar da Sabedoria Búdica que nos permite ver a realidade de nossa condição humana. Trata-se, pois, de uma fé/conhecimento (Pistis/Sophia) de cunho gnóstico.

2.3.É despertado = o verbo está na voz passiva porque , no Budismo Shin, a Fé não é uma iniciativa nossa, ela nos é doada por Amida.

2.4.Paixões = (jap. Bonnô, sanscr. klesa) os empecilhos que não nos permitem atingir a iluminação; os principais são: a ignorância, a cólera e o desejo.

2.5.Perversos = os culpados das cinco perversidades: 1- parricídio; 2 – matricídio; 3 – assassinato de um arhat (asceta); 4 – derramamento do sangue de um Buda; 5 – perturbação da harmonia do Samgha.

2.6.Detratores = os que caluniam o Dharma.

2.7.Nirvana = note-se, nesta passagem, o uso da imagem do Oceano e dos rios empregada para descrever o Nirvana.

 

3. Karma e Salvação no Budismo Shin: Karma é a ação acompanhada por seus frutos, na esfera moral. Boas ações produzem bons frutos, más ações acarretam más conseqüências para quem as pratica. Temos assim uma espécie de contabilidade espiritual em que são registrados méritos e deméritos. Na religiosidade popular indiana, ensina-se que quem acumula bom karma numa existência renasce numa condição feliz, e que   quem produz um mau karma está fadado a uma existência futura infeliz. A concepção de karma veiculada no Brasil entre os espíritas e os teosofistas não ultrapassa esse nível. Numa dimensão mais elevada, ensina-se que a libertação espiritual depende da cessação de todo e qualquer karma, positivo ou negativo. No Budismo Japonês, as antigas Escolas de Nara ensinavam que o processo de purificação do karma necessário para um ente se tornar Buda se estenderia por trêskalpas, ou sejam, ciclos cósmicos de imensa duração. Isso equivale a dizer que se trata de uma tarefa impossível, concluo eu. Já as Escolas Tendai, Shingon e Zen acenam com a possibilidade de alguém se tornar Buda nesta mesma vida. Para mim, que vivi experiências de treinamento Zen e Shingon, isso é tão impossível como atingir um planeta distante sem uma nave espacial apropriada… Em suma, se dependermos da contabilidade espiritual dos méritos e deméritos para nossa salvação, estaremos sempre no vermelho…

A Tradição da Terra Pura, e especialmente o Budismo Shin, por sua vez, nos ensinam que a Fé e o Nembutsu fundamentados no Voto Original de Amida possuem o imenso poder de neutralizar instantaneamente o mais pesado dos karmas. Isso sem nenhum esforço do devoto para eliminar as paixões mundanas, como ensinam as demais escolas budistas. Pela Fé e pelo Nembutsu atinge-se o Nirvana sem extirpar as paixões. Tal é a salvação na ótica do Budismo Shin.

É importante insistir que, na ótica de Shinran, o Nembutsu não é um passaporte para a salvação. É um cântico de gratidão que brota espontaneamente do coração transmutado pela recepção da Fé, no instante em que no mesmo opera o Voto Original de Amida.

 

4. Metáforas da Salvação: a água e o gelo. O processo maravilhoso em que, através da Fé proporcionada por Amida, atingimos o Nirvana sem extirpar as paixões, é descrito por Shinran através da metáfora da água e do gelo. Assim, no Gyô no Maki (Livro da Prática) do Kyôgyôshinshô, podemos ler:

Como diz um Sutra: – o gelo das paixões se derrete, convertendo-se na água das virtudes. (Shinshû Seiten, pág. 198.)

Shinran fala num Sutra, mas, na verdade, trata-se de uma passagem do Ôjô Yôshû(Coletânea de Passagens Essenciais sobre o Ir-Nascer) do Patriarca Genshin (942-1017) que diz:

Por isso, um Sutra diz – “As paixões e o despertar não possuem essências diferentes, o Samsara e o Nirvana não são locais diferentes…” Como ainda não possuo o Fogo da Sabedoria, não posso derreter o gelo das paixões para converte-lo na água das virtudes. (Ôjô Yôshû, vol. II.)

A mesma metáfora é retomada nos Kôso Wasan (Hinos aos Patriarcas) dedicados ao Patriarca T’an-luan:

Com os benefícios da Luz que desconhece impedimentos,

A Fé ampla e vasta, supremo pináculo da Virtude, é obtida.

Certamente derrete ela o gelo das paixões,

Que se converte, então, na Água do Despertar.

 

Os impedimentos das culpas se convertem na essência das Virtudes,

Tal como ocorre com o gelo e a água;

Havendo muito gelo, haverá muita água,

Havendo muitos impedimentos, teremos muitas Virtudes.

(Shinshû Seiten, pág. 493.)

 

Lembremos que também na Tradição Zen, vemos o Mestre Hakuin (1685-1768) recorrer à metáfora da água e do gelo em seu Hino ao Zazen (Zazen Wasan):

 

Os seres viventes são originalmente Budas,

São como a água e o gelo;

Assim como não existe gelo sem água,

Também não existe Buda fora dos seres viventes.

 

5. Metáforas da Salvação: o quarto escuro. O Mestre T’an-luan diz que a purificação do karma através do Poder do Nembutsu é semelhante a um quarto fechado durante mil anos que permanece imerso em trevas que instantaneamente se torna claro quando é aberto e a luz nele penetra.

 

6. Metáforas da Salvação: a Alquimia. Geralmente a Alquimia é considerada uma prática pré-científica de caráter supersticioso para transformar metais vis em ouro. Entretanto, os estudos de Carl Gustav Jung e de pensadores tradicionalistas como Julius Evola e Titus Burckhardt mostram que a Alquimia possui também um sentido psicológico e espiritual: a transmutação de nossas deficiências e mazelas psíquicas e espirituais em pureza e perfeição. A Alquimia se desenvolveu em várias civilizações como a helenística, a árabe, a indiana e a chinesa. Na tradição budista, o Bodhisattva Nagarjuna é às vezes visto como tendo sido também um alquimista. No Japão, a Alquimia chinesa era conhecida.

No Gyô no Maki do Kyôgyôshinshô encontramos uma passagem em que a metáfora alquímica é utilizada para descrever a transmutação do karma. O poder do Nembutsu em purificar o karma é comparado ao do kantan, droga alquímica considerada capaz de transmutar o ferro no mais precioso ouro:

Diz o Mestre Tsung-hsiao: – Um único grão de “kantan” converte o ferro em ouro. Uma única Palavra de Verdade converte o mau karma em bom.

(Shinshû Seiten, pág. 199.)

[Tsung-hsiao (1151 – 1214) = monge da Dinastia Song do Sul que se dedicou à tradição da Terra Pura depois de estudar a Doutrina Tendai; autor da Coleção de Passagens sobre a Terra da Felicidade (Rakuhô Bunrui).]

Tal é a maravilhosa Alquimia espiritual da Fé do Nembutsu que, ao invés de extirpar as paixões, transmuta-as no Nirvana!