NOTAS SOBRE O SHOSHINGE – 4

Rev. Prof. Dr. Ricardo Mário Gonçalves

 

 Por toda a parte emite ele a Luz Imensurável (1) e Ilimitada (2),

A Desimpedida (3), Incomparável (4) e Majestosa Chama de Luz (5),

A Luz da Pureza (6), da Alegria (7) e da Sabedoria (8),

A Incessante (9), Inconcebível (10) e Inominável (11) Luz,

A Luz que, sobrepujando o sol e a lua (12), ilumina a poeira dos mundos.

Todos os seres sensíveis são beneficiados pelo esplendor dessa Luz.

 

1 – Aqui são louvados os doze aspectos da Luz de Amida, ou melhor, os doze nomes ou epítetos luminosos do mesmo, segundo o Grande Sutra. Convém lembrar que, embora na tradução chinesa atribuída a Samghavarman usada por Shinran tenhamos doze nomes, no original sânscrito temos vinte e um e na tradução tibetana vinte nomes.

Segundo a exegese tradicional, os nomes Imensurável, Ilimitada e Desimpedida dizem respeito à essência da Luz, os nomes Incomparável e Majestosa Chama de Luz se referem à aparência da Luz, os nomes Pureza, Alegria e Sabedoria indicam a ação da mesma extinguindo, respectivamente, o desejo, a cólera e a ignorância dos seres viventes, o nome Incessante diz respeito à perenidade da Luz no tempo (Lux Aeterna), os nomes Inconcebível e Inominável descrevem o caráter inefável da Luz e a expressão Luz que sobrepuja o sol e a lua é uma metáfora a expressar a excelência dessa Luz.

 

2 – Shinran e a Mística da Luz:

Em 12 de maio de 1973 foi realizado na sede do Nishi Hongwanji de Kyoto a mesa redonda Shinran no Mundo (Sekai no Naka no Shinran), da qual tomei parte ao lado de vários especialistas japoneses, dentre os quais o Prof. Dr. Koshiro Tamaki, da Universidade de Tokyo, que disse as seguintes palavras:

Temos depois o texto Mida Nyorai Myôgô Toku (Das Virtudes dos Nomes do Tathagata Amida), escrito por Shinran aos 88 anos. Ali não temos mais a dogmática da Doutrina da Terra Pura. Há apenas um redemoinho de luz. Em meio a um redemoinho de luz cessa o pensamento e silenciam as palavras.Ele está imerso na Luz Inefável que não pode ser nomeada ou descrita.

O texto a que se refere o Prof. Tamaki não existe no Seiten oficial da Ordem, mas pode ser visto no Seiten organizado pelo Prof. Daiei Kaneko (págs. 684-688).

Existe uma Carta do Mestre Shinran que parece fazer referência ao mesmo (Seiten, pág. 581):

Escrevi e vos enviei uma explicação sobre o Buda dos Doze Nomes Luminosos, a respeito dos quais andam a falar. Não pude escrever uma exposição detalhada, apenas redigi um texto bem resumido e incompleto. Em suma, devereis explicar que a denominação fundamental é a de Buda da Luz Desimpedida. Deveis entender que esse nome de Buda da Luz Desimpedida se deve ao fato do Buda a todos salvar, sem ser obstaculizado pelas inúmeras baixezas e maldades dos seres viventes. Salve! Salve!

Resposta a Yuishin no Bô.

21º dia do 10º mês (ano não registrado).

  

Existe um único manuscrito do Mida Nyorai Myôgô Toku, conservado no Templo Shôgyôji da Ordem Otani, na cidade de Matsumoto, Província de Nagano. O manuscrito se encontra danificado e o texto apresenta várias lacunas. Entretanto, trata-se de um documento muito importante, admirável síntese de tudo o que Shinran diz sobre a Luz de Amida no Livro da Verdadeira Terra Búdica (Shinbutsudo no Maki), é como que um testamento espiritual de Shinran. Por isso, transcrevemo-lo aqui:

DAS VIRTUDES DOS NOMES DO TATHAGATA AMIDA

A respeito da “Luz Imensurável”, assim é dito no “Sutra (da Contemplação”): – O Buda da Luz Imensurável possui 84.000 formas. Cada uma das formas possui 84.000 marcas. Cada uma das marcas emite 84.000 luzes. Cada uma das luzes ilumina amplamente os mundos das dez direções, acolhendo e jamais abandonando os seres viventes do Nembutsu.

O Mestre de Eshin-in, refletindo sobre essa Luz, afirma: – Cada uma das formas emite 705 “kotis” (milhões ou cem milhões) e 6 milhões de luzes a resplandecerem como sóis.

Assim é a Luz emitida por cada forma. Considerai, agora, quão imensas hão de ser as Luzes emitidas pelas 84.000 formas! É por causa do número imenso dessas Luzes que falamos em “Luz Imensurável”.

Temos depois a “Luz Ilimitada”: a “Luz Imensurável”, assim descrita, que ilumina as dez direções, é chamada de “Luz Ilimitada”, por não ter limites ou fronteiras.

Temos depois a “Luz Desimpedida”: a luz do sol e da lua não nos atinge quando algo se interpõe entre nós e ela; já a Luz de Amida não é obstaculizada pelas coisas, ela ilumina todos os seres sensíveis e por isso é chamada de “Luz Desimpedida”. Não sendo impedida pelas paixões e pelo mau karma dos seres sensíveis, é chamada de “Luz Desimpedida”. Como não será a virtude da “Luz Desimpedida”, como não será ela para nós? É dito que uma centena de milhares de milhões de tríplices milhares de mundos se interpõe entre a Terra da Suprema Alegria e este mundo “Saha” (em que suportamos nossas penas). Cada um dos grandes tríplices milhares de mundos é cercado por uma quádrupla cadeia de montanhas de ferro, tão alta como o Monte Sumeru. Temos depois as cadeias de montanhas de ferro que circundam cada um dos pequenos milhares de mundos, sua altura chega ao Sexto Céu. Em seguida, temos as cadeias de montanhas de ferro que circundam os milhares de mundos de média magnitude, sua altura chega ao nível do Primeiro Estágio de Meditação do Mundo das Formas. Temos depois as cadeias de montanhas de ferro a circundar os grandes milhares de mundos, sua altura atinge o Segundo Estágio de Meditação. Assim sendo, se o Buda não fosse dotado de “Luz Desimpedida”, sua Luz não passaria nem mesmo através de um único mundo, quanto mais através de uma centena de milhares de milhões de mundos! A Luz daquele Buda da “Luz Desimpedida” ilumina perfeitamente essas inconcebíveis montanhas e acolhe os seres viventes do Nembutsu sem ser detida por obstáculos; assim, é ela chamada de “Luz Desimpedida”.

Temos, depois, a chamada “Luz da Pureza”, obtida pelo Bodhisattva Dharmakara. Temos duas espécies de desejos: em primeiro lugar, a concupiscência, em segundo lugar a ambição por riquezas. Temos aqui a Luz que elimina os pensamentos dessas duas espécies de desejos. É a Luz a extirpar as imundícies e as impurezas dos seres sensíveis. Ela tem por objetivo extirpar as máculas da concupiscência e da ambição por riquezas. Por isso, é chamada a “Luz da Pureza”.

Temos depois a “Luz da Alegria”, a Luz que proporciona as boas raízes da ausência de cólera. A ausência de cólera consiste em não ostentar traços de ira e zanga no semblante e não abrigar pensamentos de inveja e despeito no interior do coração. É a Luz que nos proporciona a ausência de tais sentimentos. Como ela extirpa as máculas da cólera e do ódio dos seres sensíveis, essa Luz que assim nos atinge é denominada “Luz da Alegria”.

Temos depois a “Luz da Sabedoria”. É a Luz que nos proporciona as boas raízes da ausência de ignorância. Por boas raízes da ausência de ignorância se entende o aprendizado e o exercício da Sabedoria pelos seres sensíveis. Elas proporcionam o despertar da intenção de atingir o Supremo Despertar. Proporcionam também o pensamento da Fé no Nembutsu. Crer no Nembutsu significa já ter recebido a Sabedoria e se transformado em alguém destinado a se tornar Buda. Deveis saber que isso significa o afastamento da ignorância. Por isso é ela chamada de “Luz da Sabedoria”.

Temos depois a “Luz Incomparável”, assim chamada porque não existe luz comparável à Luz de Amida.

Temos depois a “Majestosa Chama de Luz”: a intensidade do brilho dessa Luz é comparável à do fogo a arder. É semelhante à intensidade das chamas a arderem sem fumaça.

Temos depois a “Luz Incessante”, Luz que brilha sem solução de continuidade…(lacuna).

… é uma Luz que… (lacuna). A expressão “Sobrepuja” se deve ao fato desta Luz de Amida ser superior às luzes do sol e da lua. A expressão “Luz que sobrepuja o sol e a lua” é usada para indicar que essa Luz excede e suplanta as demais luzes.

Escrevi sobre os Doze Nomes Luminosos de uma forma bastante geral e incompleta, difícil seria escrever uma explanação minuciosa desse assunto.

O Buda Amida é a “Luz da Sabedoria”. A essa Luz se dá o nome de “Buda da Luz Desimpedida”. O nome “Buda da Luz Desimpedida” se deve ao fato dessa Luz não medir distâncias e não ser obstaculizada pelas mentes maculadas pelos karmas maléficos e pelas paixões cegas de todos os seres viventes das dez direções. A expressão “Eu tomo refúgio no Tathagata da Luz Desimpedida que irradia nas Dez Direções” é usada para que tomemos consciência do caráter inefável dessa Luz de Amida. Quando guardamos constantemente o “Buda da Luz Desimpedida” em nosso coração e recitamos o seu Nome, as virtudes de todos os Budas das dez direções se encontram concentradas no mesmo. Assim, quando recitamos o Nome de Amida, todas as virtudes e boas raízes alcançam a perfeição em nossa pessoa. É por isso que o Bodhisattva Nagarjuna declarou: -Expliquei as virtudes daquele Venerável: ilimitados são os bens por ele dispensados, comparáveis às ondas do oceano. É por essa razão, parece, que a expressão “Buda da Luz Inconcebível” é usada. Sendo ele o “Buda da Luz Inconcebível”, é também chamado o “Buda da Luz Desimpedida que irradia nas Dez Direções”, tal como foi exposto pelo Bodhisattva Vasubandhu no Tratado sobre o Ir-Nascer. O Buda Amida tem doze epítetos luminosos…(lacuna).

Quanto à denominação “Buda da Luz Inconcebível”, deriva ela do fato de nem mesmo o Buda Sakyamuni ter conseguido compreender a virtude da Luz do Tathagata Amida. Sendo assim, inatingível pelo pensamento, recebe o nome de “Buda da Luz Inconcebível”.

Temos depois a “Luz Inominável”: o Buda Sakyamuni declarou ser difícil expor plenamente as virtudes do “Buda da Luz Inconcebível”. É algo que está além das palavras. Por isso, é usada a expressão “Buda da Luz Inominável”. Assim, o Patriarca T’an-luan, em seus Versos de Louvor ao Buda Amida sintetizou as expressões “Buda da Luz Inconcebível” e “Buda da Luz Inominável” na invocação: – “Eu tomo como refúgio o Tathagata da Luz Inconcebível”. Agora, quanto ao que se poderia dizer a respeito do “Buda da Luz Inconcebível”, o Bodhisattva Vasubandhu já expôs…(lacuna).

O que se segue é uma reconstituição hipotética de parte da lacuna:

…é dito no Tratado sobre o Ir-Nascer: – No Voto glorificado pelos Budas temos a Grande Prática. A Grande Prática consiste na recitação do Nome do “Buda da Luz Desimpedida”. Nessa Prática estão completamente condensadas todas as demais práticas. É perfeita e é a mais rápida em proporcionar a perfeição. Por isso é chamada de Grande Prática. Por essa razão destrói ela totalmente a ignorância de todos os seres viventes. Por isso, nós, que somos carregados de paixões mundanas, caso tivermos fé, sem pensamentos dúbios, no Voto do “Buda da Luz Desimpedida”, chegaremos à Terra da Luz Imensurável. Atingindo a Terra da Luz, obteremos as virtudes de maneira espontânea e seremos agraciados com a vasta e ampla Luz. Sendo dotados da vasta e ampla Luz, obteremos os diferentes gêneros de Iluminação.

…é afirmado. Não se deve dizer que o praticante fundamentado no poder próprio seja idêntico ao Tathagata. Com os pensamentos do poder próprio de cada um é impossível atingir a Terra do “Buda da Luz Inconcebível”. É dito que só através da Fé do Outro Poder se pode chegar à Terra do “Buda da Luz Inconcebível”. O devoto que almeja nascer na naquela Terra é dotado de virtudes inumeráveis, indizíveis e inconcebíveis, além do pensamento e da palavra. Por essa razão, temos a expressão “Buda da Luz Inconcebível”.

 

EU TOMO REFÚGIO NO BUDA DA LUZ INCONCEBÍVEL.

Copiado no 2º dia do 12º mês do Primeiro Ano da Era Bun-ô (1262).

Composto por Shinran, o Néscio Tonsurado, aos 88 anos.

 

 3 – A Luz de Amida segundo Kakuban:

Antes de Shinran, encontramos uma explanação sobre os doze epítetos luminosos de Amida no Amida Hishaku (Explicação Esotérica de Amida) do Mestre Kakuban (Kogyo Daishi) (1095-1143) Patriarca do Budismo Shingon Reformado, expositor de uma forma esotérica de Amidismo que vê o Buda Amida como um aspecto do Buda Cósmico Mahavairocana, personificando uma das Cinco Sapiências do mesmo, a Sapiência do Maravilhoso Discernimento (sanscr. Pratyaveksana-jnana; jap.Myôkanzatchi) que discerne o aspecto diferenciado de todos os fenômenos, sem perder de vista a igualdade fundamental dos mesmos. Assim define Kakuban a “Luz Desimpedida”, tão valorizada por Shinran:

A Sapiência do Maravilhoso Discernimento do Tathagata do Dharmakaya da “Luz Desimpedida” conhece, simultaneamente, a ausência de obstáculos entre os dharmas condicionados e incondicionados, entre a Verdade Absoluta e a Verdade Relativa, entre os aspectos e a essência do Real, entre os distintos aspectos da mente de todos os seres viventes e até mesmo entre as ervas, as árvores, as montanhas e os rios; assim, o Tathagata Mahavairocana é também chamado o”Buda da Luz Desimpedida”.

Vemos que, enquanto que o enfoque de Shinran é soteriológico, o de Kakuban é ontológico.

 

4 – A Mística da Luz na História das Religiões (Luminologia):

A oposição entre a Luz (Realidade, Sabedoria, Vida) e as Trevas (Ilusão, Ignorância e Morte) é um tema recorrente na religiosidade gnóstica que, na Antiguidade, está presente desde a Índia até a Bacia do Mediterrâneo. Uma de suas formulações mais antigas é a do Brhadaranyaka Upanisad (I, 3, 28) que, anos atrás, usávamos na cerimônia de acendimento das velas do movimento de jovens do Higashi Honganji:

Do irreal conduze-me ao Real, das trevas à Luz, da morte à Imortalidade.

No texto gnóstico-hermético Asclepius, a luz do intelecto, como a de Amida, sobrepuja a do sol:

O intelecto, com efeito, é a luz da alma humana como o sol a é do mundo, e a clarifica mais; pois tudo o que o sol clarifica é temporariamente privado dessa luz pela interposição da terra e da lua, quando a noite chega.

 Na Bíblia, Luz é a primeira criação de Deus, que às vezes é descrito como sendo Luz. Místicos judaicos (cabalistas) e cristãos desenvolveram toda uma mística da Luz. O Pseudo-Dionísio Areopagita diz que a Luz Absoluta da Divindade é escuridão aos olhos do homem, uma escuridão além da distinção luz/trevas. No séc. XII S. Bernardo de Clairvaux, o mentor espiritual dos Cavaleiros Templários, escreve que na Eternidade as almas serão mergulhadas num oceano imenso de Luz Eterna e de eternidade luminosa.

No Islão, o fundamento da tradição mística é o seguinte versículo corânico que identifica Deus com a Luz:

Deus é a luz dos céus e da terra. Sua luz é como um nicho numa parede, onde há uma lâmpada; e a lâmpada está num vidro e o vidro é como uma estrela brilhante. Ela é acesa com azeite de uma árvore abençoada, uma oliveira que não é nem do Oriente nem do Ocidente, e esse óleo é aceso e brilha sem que se lhe deite fogo. É luz sobre luz. Deus guia para sua Luz que ele quer. E Deus propõe parábolas aos homens, pois Deus conhece todas as coisas. (24, 35)

Dentre os místicos islâmicos que se ocupam da Luz e da Iluminação temos Shihaboddin Sohrawardi (1155-1191), em cujo Livro da Sabedoria Oriental é desenvolvido o conceito de Ishraq, Luz do Oriente ou Iluminação Espiritual, e é exposta a teoria doalam al-mithal (Mundus Imaginalis) , mundo luminoso intermediário entre o sensível e o inteligível, conceito que pode nos ser útil para a exegese da Terra Pura budista.