NOTAS SOBRE O SHÔSHINGE – 2

Rev. Prof. Dr. Ricardo Mário Gonçalves


Eu confio no Tathagata da Vida Imensurável

 

E tomo refúgio na Luz Inefável.

Estes dois versos constituem a primeira parte do poema, em que Shinran expressa sua fé no Buda Amida.

Como dissemos, na tradição literária indiana e budista, é costume que os tratados e poemas de conteúdo religioso ou profano principiem com versos a expressar uma confissão de fé. Exemplos:

Honrado do Mundo! Eu, coração uno tomo refúgio no Tathagata da Luz sem Impedimentos nas Dez Direções, e anseio por ir-nascer no País da Paz e da Alegria.

 Vasubandhu – Tratado da Terra Pura (Jôdoron)

 

Eu tomo refúgio no Todo Compassivo, Salvador do Mundo, Todo Poderoso, Onipresente, Onisciente, Autor dos mais perfeitos nas Dez Direções;

E na manifestação de sua Essência, no Real, no Oceano do “Assim Mesmo”, no Tesouro Inesgotável das Virtudes;

E naqueles que se Devotam à Prática Verdadeira.

Oxalá todos os seres viventes possam eliminar suas dúvidas, livrarem-se do apego aos erros, e despertarem para a Fé Correta no Grande Veículo, para que a Linhagem dos Budas não seja interrompida.

 Tratado do Despertar da Fé no Grande Veículo (Daijô Kishinron) – Atribuído a Asvaghosa

 

Com a cabeça inclinada ante o Grande Pai Celestial (Brahma) e do Príncipe Celeste (Shiva), exporei o Ensinamento sobre o Teatro que foi enunciado por Brahma.

 Bharata – Tratado sobre o Teatro (Natya Sastra)

Sobre o Vimana:

Vimana é um termo sânscrito que significa “palácio” e aparece no original do Grande Sutra da Vida Imensurável a designar os palácios do Buda Amida e dos Bodhisattvas na Terra Pura do Ocidente. Entretanto, o termo é usado nos textos hinduístas para designar um engenho voador imaginário. Na literatura clássica indiana existem referências a carros voadores nas Epopéias (Ramayana e Mahabharata) e também na célebre peça teatral Sakuntala de Kalidasa. Existe um texto hindu bastante curioso sobre o Vimana, denominado Vimanika Sastra (Tratado sobre o Vimana), um manual de aeronáutica fantástica em que o místico e o tecnológico se entrelaçam de forma bastante peculiar, cuja autoria é atribuída a um certo Bharadvaja. Descoberto na Biblioteca Real de Baroda em 1908, o texto foi traduzido para o inglês pelo erudito sanscritista G. R. Josyer, fundador e diretor da International Academy of Sanscrit Research (Mysore, Índia). Esse estranho manual de tecnologia imaginária também se inicia por uma profissão de fé:

 

Presto homenagem ao Ser Divino que é visível na crista dos Vedas, que a fonte da eterna felicidade e cuja morada é alcançada pelo Vimanas ou engenhos voadores. Depois de ter estudado da melhor maneira que pude, em benefício da humanidade, os Sastras ou ciências propostas pelos homens de ciência do passado, devo tratar da ciência da Aeronáutica, que é a essência dos Vedas, que será uma fonte de alegria e venefícios para a humanidade, que vai proporcionar viagens confortáveis pelo céu de uma terra a outra, em oito capítulos consistindo de cem tópicos, em 500 Sutras ou pronunciamentos místicos.

 

VOCABULÁRIO:

 Confiar ou Tomar Refúgio

Lembremos que no Budismo Shin o ato de tomar refúgio ou confiar no Buda não é uma ação da iniciativa humana, pois o homem é incapaz dessa atitude, é uma dádiva do próprio Buda.

 

Tathagata

O Buda como Aquele que Vem da Verdade ao encontro do homem para salvá-lo. Deve ser entendido mais como uma atividade, um movimento, do que uma entidade. O conceito seria expresso de uma forma mais exata por um verbo do que por um substantivo.

 

Tathagata da Vida Imensurável

O Buda Amida como Amitayus ou Vida Infinita (Ayus corresponde ao gregoAion – tempo, duração da vida, eternidade, idade, geração, século – e ao latimAevum – idade longa ou perpétua, tempo dilatado, século).

 

Tomar Refúgio

Do japonês Namu, transliteração do sânscrito Namas.

 

COMENTÁRIOS 

A Luz e a Vida são os atributos do Buda Amida (do sânscrito Amita, imenso, imensurável) descritos na Tríplice Escritura da Terra Pura. Assim, lemos no Sutra de Amida (Amidakyô):

Por que aquele Buda é chamado Amida? Sariputra, a Luz daquele Buda é imensa, e ela brilha sobre as trevas das dez direções e nada há que lhe faça obstáculo. Por esse motivo, é ele chamado Amida. Além disso, Sariputra, a duração da Vida da quele Buda e de seu povo é de imensuráveis ciclos cósmicos, inumeráveis e infinitos. Por esse motivo ele é chamado Amida.

 

No Grande Sutra da Vida Imensurável (Daimuryôjukyô) temos os Votos nº 12 e 13, tema central das reflexões de Shinran no Livro da Verdadeira Terra Búdica(Shinbutsudo no Maki) do Kyogyô Shinshô:

Se, tornado eu Buda, minha Luz puder ser medida a ponto de não brilhar sobre pelo menos cem, mil, cem milhões de Países Búdicos, renunciarei ao Perfeito Despertar.

 

Se, tornado eu Buda, a duração de minha Vida puder ser medida a ponto de ser inferior a, pelo menos, cem mil, cem mil, cem milhões de ciclos cósmicos, renunciarei ao Perfeito Despertar.

 

A Luz Imensurável expressa a infinidade de Amida no espaço, e também a Infinita Sabedoria Búdica. A Vida Imensurável expressa a infinidade de Amida no tempo, e também a Infinita Compaixão Búdica.

 

 PARALELOS NA HISTÓRIA DAS RELIGIÕES

 

A descrição do Sagrado como Luz e Vida é um lugar comum na Literatura Gnóstica, cristã e pagã. O exemplo a seguir foi extraído do Poimandes (Pastor do Homem), tratado gnóstico-hermético pagão:

 

É de Luz e de Vida que é constituído o Pai de todas as coisas, do qual nasceu o homem. Luz e Vida, eis o que é o Deus e o Pai do qual nasceu o homem. Portanto, se aprenderes a te conhecer como feito de Vida e Luz e que tais são os elementos que te constituem, tu retornarás à Vida.

 

No prólogo do Evangelho de João, texto em que se notam influências da Gnose, Jesus Cristo é descrito como Luz e Vida (Lux et Vita):

 In ipso vita erat, et vita erat lux hominum: et lux in tenebris lucet et tenebrae eam non comprehenderunt.

 O que foi feito nele era a vida, a e vida era a luz dos homens, e a luz brilha nas trevas, mas as trevas não a compreenderam. (João, 1, 4-5)

 

Lembro aqui que o termo latino Lux, lucis (luz) deriva da raiz indo-européia ruc(brilhar), assim como nomes sânscritos como Vairocana (o Buda Todo Luminoso) eBodhiruci (Luz do Despertar) nome de um missionário indiano, tradutor do Tratado da Terra Pura de Vasubandhu para o chinês; o nome persa Roxane (nome da esposa de Alexandre o Grande) tem também essa origem.