NOTAS SOBRE O SHOSHINGE – 18

Rev. Prof. Dr. Ricardo Mário Gonçalves

 

Quanto a T’an-luan, Mestre de nossa Escola, o Soberano de Liao

Venerava-o como um Bodhisattva, sempre se voltando para sua direção.

Quando o Mestre das Três Coleções Bodhiruci lhe transmitiu as Escrituras da Terra Pura,

Ele queimou seus textos taoístas e tomou refúgio na Terra da Bem-aventurança.

 

1. Considerações gerais: Aqui é apresentado o Terceiro Patriarca T’an-luan, o primeiro Mestre Chinês a integrar o rol dos Sete Patriarcas da Terra Pura. Através da narrativa do confronto entre o Taoísmo e o Budismo, demonstra-se a superioridade do Dharma Búdico sobre a Tradição Chinesa.

 

2. Questões de Vocabulário:

2.1. T’an-luan ou “Fênix Enevoado” (476-542) = O Primeiro dos Mestres Chineses a integrar o rol dos Sete Patriarcas. Nasceu na China do Norte, na atual Província de Shan-hsih. Foi ordenado monge aos 15 anos. Tornou-se Mestre da Escola dos Quatro Tratados, especializada na Filosofia Madhyamika de Nagarjuna. Depois, interessou-se pelo Sutra da Grande Coleção (Jap. Daijikkyô) e planejou escrever um grande comentário sobre o mesmo. Adoecendo, voltou-se para o Taoísmo em busca de saúde e longevidade. Procurou T’ao Hung-ching (452-536), o principal mestre taoísta de seu tempo, de quem recebeu uma escritura sagrada em 10 volumes. Encontrou-se em seguida em Lo-yang com o missionário-tradutor Bodhiruci que lhe explicou que a imortalidade taoísta não o libertaria do samsara e que só o Dharma Budista lhe propiciaria a verdadeira imortalidade a transcender os nascimentos e mortes. Bodhiruci lhe deu as Escrituras da Terra Pura (o Sutra da Contemplação e o Tratado da Terra Pura de Vasubandhu). T’an-luan submeteu então ambas as escrituras a um ordálio, lançando-as ao fogo. Como a Escritura Budista não se queimou, concluiu que a mesma era a verdadeira e converteu-se à Doutrina da Terra Pura.

Na época de T’an-luan a China se encontrava fragmentada politicamente: no Norte reinava a Dinastia Wei (386-556) e no Sul a Dinastia Liao (502-557). T’an-luan foi muito respeitado pelos soberanos dos dois reinos. Wu-t’i, soberano de Liao, grande patrono do Budismo, venerava-o como Bodhisattva. Hsiao ching-t’i, soberano de Wei, convidou-o para residir no Templo do Grande Rochedo, em Shang-hsi, honrando-o com o título de “Divino Fênix”. Transferiu-se depois para o Templo Hsuan-chung de Fen-chou. O lugar onde viveu passou a ser conhecido como o “Rochedo do Mestre Fênix” (cf. Seitenpág. 492).

T’an-luan escreveu o Comentário ao Tratado da Terra Pura de Vasubandhu (Jap.Jôdoronchû) e os Hinos de Louvor ao Buda Amida (Jap. San-Amidabutsu-ge) em que Shinran se inspirou para compor os 48 hinos iniciais dos Hinos da Terra Pura (Jap.Jôdo Wasan) (Cf. Seiten pags. 478 – 482).

Devo lembrar aqui que Shinran divide os Sete Patriarcas em “Tratadistas” (Jap. Ronge) e “Comentaristas” (Jap. Shakke). São tratadistas honrados com o título de Bodhisattva os três primeiros Patriarcas: Nagarjuna, Vasubandhu e T’an-luan. Os quatro patriarcas restantes são considerados comentaristas.

2.2. Soberano (Jap. Tenshi – literalmente “Filho do Céu”) = Na China Tradicional, o Soberano é um “Rei-Pontífice” a exercer igualmente o poder espiritual e o poder temporal. Como pontífice, representa na Terra o Princípio Metafísico denominado “Céu” (Chinês Tien, Jap. Ten). É o Homem Perfeito, mediador entre o Céu e a Terra, tal como nos mostra o ideograma Wang (Jap. Ô) = Rei: um eixo central une três traços horizontais representando, de cima para baixo, o Céu, o Homem e a Terra. (Cf. René Guénon – La Grande Triade).

2.3. Liao (Jap. Ryô) = Dinastia que reinou na China do Sul entre 502 e 557, cujo primeiro soberano, Wu-t’i (reinou de 502 a 549) foi um entusiasta patrocinador do Budismo. A Tradição Zen fala de seu dramático encontro com o Patriarca Bodhidharmaque lhe teria dito que suas obras pias não lhe propiciariam mérito algum, antes de se retirar para uma montanha onde meditou solitário durante nove anos.

2.4. Bodhiruci = Existem, na História do Budismo Chinês, dois mestres tradutores com o nome de Bodhiruci: 1) Bodhiruci I, mencionado em nosso texto, chegou a Lo-yang em 508, procedente da Índia, traduziu para o chinês o Tratado da Terra Pura de Vasubandhu que deu a T’an-luan juntamente com o Sutra da Contemplação e faleceu em Lo-yang em 538; 2) Bodhiruci II, missionário-tradutor originário de família bramânica, chegou a Chang-an em 693, onde foi protegido pela Imperatriz Wu, e faleceu em 727.

2.5. Terra da Bem-aventurança = A Terra Pura do Buda Amida.

 

3. A Introdução do Budismo na China e no Brasil: Reflexões.

O estudo do processo de introdução e implantação do Budismo na China pode nos ajudar a entender melhor o próprio trabalho de difusão missionária do Dharma no Brasil em que estamos envolvidos. Nos dois casos temos a introdução do Budismo em uma cultura totalmente diferente de seu alicerce sócio-cultural nativo. Índia e China diferem enormemente quanto à língua, cultura, e mentalidade. Na Índia, temos línguas indo-européias flexivas, como o sânscrito, um parente remoto do grego e do latim, fundamentos lingüísticos das culturas ocidentais. A escrita indiana, como as ocidentais, é alfabética. A língua chinesa é monossilábica, as categorias gramaticais, dificilmente reconhecíveis, definem-se pelo contexto, uma mesma palavra poderá ser substantivo ou verbo, conforme o lugar e a função que ocupe na frase. Os indianos apreciam as especulações metafísicas, preocupam-se mais com o geral do que com o particular, são indiferentes ao tempo e à história. Os chineses, pelo contrário, se interessam mais pelo particular do que pelo geral, são pragmáticos, preocupam-se mais com o pensamento político e moral do que com o metafísico, fazem da História “a rainha das ciências” (Joseph Needham) e cultivam carinhosamente a Biografia e a Cronologia. No que diz respeito à implantação do Budismo no Brasil, não obstante a formidável barreira lingüística – japonês: língua ural-altaica aglutinante que emprega a escrita ideográfica chinesa combinada com silabários nativos; português: língua indo-européia derivada do latim que emprega o alfabeto latino – e das inegáveis diferenças culturais, há que lembrar que o Japão é, pelo menos até o presente momento, o país oriental mais bem sucedido no processo de adoção da cultura, da ciência e da tecnologia do Ocidente e que isso se reflete também no Budismo: já em fins do século XIX, o Prof. Kiyozawa Manshi (1863-1903) conseguiu com sucesso expor o conteúdo doutrinário do Budismo na linguagem filosófica do Ocidente. Há que lembrar ainda que os textos sagrados do Budismo Mahayana foram escritos originalmente em sânscrito, língua indo-européia que, conforme demonstrou o lingüista francês Georges Dumézil, veicula a mesma ideologia exposta nos textos latinos da antiga Roma.

 

4. Primórdios do Budismo na China: Balizas Cronológicas.

–          Séc. II a.C: início do controle chinês da Rota da Seda, principal caminho de penetração do Budismo na China.

–          2 a.C.: primeira transmissão do Budismo aos chineses por um emissário indo-cita.

–          64 d.C.: o Imperador Ming-t’i sonha com um “homem dourado” e manda emissários à Rota da Seda em busca da Doutrina Budista.

–          67 d.C.: construção do “Templo dos Cavalos Brancos” em Lo-yang.

–          148: o missionário An Shih-kao, o Parta, o primeiro a traduzir o “Sutra da Vida Imensurável”, chega a Lo-yang.

–          312: nascimento de Shih Tao-an, falecido em 385, organizador do Samgha chinês.

–          401: o missionário-tradutor Kumarajiva (344-413) chega a Ch’ang-an, onde dirige uma Oficina de Tradução com Seng-chao (374-414) e outros discípulos.

–          402: Hui-yuen (334-416) funda no Monte Lu a “Sociedade do Lótus Branco”, primeira comunidade chinesa de praticantes do Nembutsu.

–          474: nascimento de T’an-luan.

Observemos que na China, como no Brasil, o Budismo principia como uma religião exótica trazida por emissários, mercadores e imigrantes estrangeiros; só aos poucos vai ele penetrando na sociedade chinesa. O processo de absorção do Budismo pela sociedade chinesa leva aproximadamente uns 300 anos. No Brasil, ainda estamos do Budismo visto como uma religião exótica trazida por imigrantes orientais. Apenas estão começando a nascer as primeiras comunidades formadas por budistas brasileiros.

 

5. Budismo e Taoísmo.

Em todo o processo de propagação missionária de uma religião em uma cultura estranha à mesma ocorre um processo de tradução que não é apenas lingüístico. Transmissores e receptores tendem a “traduzir” a religião do outro nos termos dos quadros conceituais que lhes são familiares, como mostra a antropóloga Cristina Pompa em seu belo livro Religião como Tradução (S. Paulo, EDUSC/ANPOCS, 2003). Assim, no Brasil Colonial, os missionários europeus “traduziram” o universo religioso indígena nos termos do universo conceitual europeu e católico e os índios, por sua vez, “traduziram” a mensagem do Catolicismo nos termos de sua própria religiosidade. Nas primeiras fases do processo de implantação do Budismo na China, tanto os transmissores como os receptores recorreram ao Taoísmo para “traduzir” os conceitos da nova religião que adentrava o espaço cultural chinês.

O Taoísmo é uma realidade muito complexa que compreende, entre outras coisas: a) um alicerce filosófico místico e vagamente anarquista registrado nos textos atribuídos a Lao-tze e a Chuang-tze; 2) várias seitas populares de caráter xamânico e mágico, esposando às vezes ideais revolucionários; 3) um conjunto de práticas meditativas, respiratórias, dietéticas, alquímicas e sexuais visando a obtenção da imortalidade física.

Na China Pré-budista, o Taoísmo se contrapunha à ética pragmática confuciana, cujo principal objetivo era formar excelentes funcionários para servir o Estado Imperial. Os primeiros tempos da penetração do Budismo na China coincidem com o colapso do poder centralizado da Dinastia Han no século III e com o advento de um período caótico de fragmentação política e de invasão de nômades bárbaros que só termina no século VI com a reunificação do país sob as Dinastias Sui e Tang. Nessa época a ortodoxia confuciana sofre um declínio que favorece o pensamento místico e anárquico próprio do Taoísmo. Os primeiros missionários budistas vindos da Índia e da Ásia Central percebem certas analogias entre o Nada taoísta, anterior ao Ser, e o Vazio do Budismo Mahayana. Assim, adotam o vocabulário do Taoísmo para designar os conceitos budistas em seus primeiros ensaios de tradução dos textos sagrados budistas para o chinês. No caso específico da Tradição da Terra Pura, percebem-se vagas semelhanças entre a Vida Imensurável do Buda Amida e a Imortalidade taoísta, bem como entre a Terra Pura do Ocidente onde reina o Buda Amida e o Reino Ocidental da Rainha das Fadas Hsi Wang Mu, onde vivem os Imortais do Taoísmo. Tais semelhanças facilitam a penetração da Tradição da Terra Pura na China, mas também produzem várias confusões e mal-entendidos. Só na época da Oficina de Tradução de Kumarajiva é que começa a ser elaborado um vocabulário específico chinês para o Budismo e que os chineses começam a perceber nitidamente as diferenças entre as duas doutrinas. Começa a surgir então uma literatura polêmica em que os adeptos das duas doutrinas procuram demonstrar a superioridade de suas respectivas posições. A tradição sobre a queima das Escrituras Taoístas por T’an-luan se insere num imenso repertório de textos budista a defender a superioridade do Budismo sobre o Taoísmo. No Japão também temos o famoso tratado Sangô Shiiki (Indicações sobre as Três Doutrinas) de Kukai, que busca demonstrar a superioridade do Budismo sobre o Taoísmo e o Confucionismo. No Keshindo no Maki de Shinran também encontramos ecos dessa polêmica antitaoísta movida pelos representantes do Budismo.