NOTAS SOBRE O SHOSHINGE –15

Rev. Prof. Dr. Ricardo Mário Gonçalves

O Bodhisattva Vasubandhu, compondo um Tratado, professou

Que ele próprio tomou refúgio no Tathagata da Luz sem Impedimento;

Baseando-se nos Sutras, revelou a Verdade e elucidou

O Grande Voto para a Transcendência Horizontal.

Baseando-se amplamente na Graça do Poder do Voto Original,

Revelou o Coração Uno, para salvar os seres sensíveis.

 

1. Considerações Gerais: Aqui é exposto como o Bodhisattva Vasubandhu, Mestre da Escola Cittamatra e Segundo Patriarca do Budismo Shin, revelou o chamado Coração Uno.

 

2. Questões de Vocabulário:

2.1.Bodhisattva Vasubandhu (Tenjin ou Seshin, em japonês) (Séc. IV) = Doutor do Budismo Mahayana, um dos fundadores da Escola Cittamatra (Jap. Yuishiki, “Nada-mais-que-consciência”) e Segundo Patriarca do Budismo Shin.

2.2. Tratado = Referência ao Tratado da Terra Pura (Jap. Jodoron) ou Tratado do Ir-Nascer (Jap. Ôjôron), denominações abreviadas da Instrução sobre o Sutra da Vida Imensurável e Cantares da Aspiração do Nascer na Terra Pura (Sanscr.Sukhavativyuhopadesa; Jap. Muryojukyoupadaisha Ganshôge) do Bodhisattva Vasubandhu.

2.3. Tathagata da Luz sem Impedimento = o Buda Amida.

2.4. Sutras = Os Três Sutras da Terra Pura, especialmente o Sutra da Vida Imensurável ou Grande Sutra.

2.5. Verdade = O texto se refere especificamente à Forma das Verdadeiras Virtudes, ou seja, nas palavras de Shinran, ao Nome Sagrado do Voto – NAMU AMIDA BUTSU.

2.6. Graça (Sanscr. Parinama, Jap. Ekô) = Literalmente, transferência (de méritos ou virtudes). Na perspectiva do Budismo Geral, é o homem que, acumulando méritos e virtudes com suas práticas, as transfere para os Budas e Bodhisattvas ou para os seres viventes. Na perspectiva de Shinran, é o Buda Amida que transfere suas virtudes aos seres viventes, num ato salvífico. Trata-se, pois, para Shinran, de uma Graça Salvífica.

2.7. Coração Uno = O Coração Puro e Sincero, sem duplicidade e sem pruridos egoístas, suscitado no homem pelo toque do Tathagata Amida. O Coração Uno, transcendendo a dicotomia entre sujeito e objeto, contrasta com a consciência discriminadora própria dos entes profanos, causa da cisão entre sujeito e objeto e de todas as divisões, discriminações e dispersões. A propósito do Coração Uno, podemos lembrar aqui a máxima da Tradição Esotérica Ocidental que fala em reunir o que foi disperso…

 

3. Vasubandhu – Vida e Obra: A vida de Vasubandhu está intimamente ligada à de seu irmão Asanga (Jap. Mujaku). Nascidos numa família bramânica de Purusapura (atual Peshawar, próxima à fronteira do Paquistão com o Afeganistão), no séc. IV, ambos criaram a Escola Cittamatra, também conhecida como Vijnanavada (Escola da Consciência) e Yogacara (Escola dos Praticantes do Yoga) que, juntamente com a Escola Madhyamika de Nagarjuna, proporciona alicerces filosóficos às correntes do Budismo Mahayana (e Vajrayana) do Tibet, da China e do Japão. Ordenado monge do Pequeno Veículo (Escola Sarvastivada), Asanga estudou durante longos anos a Doutrina do Vazio do Mahayana, sem conseguir entendê-la. Segundo uma lenda, teria invocado o Buda Futuro, Maitreya, que o teria transportado ao mundo celeste de Tucita para ali instruí-lo nas mais profundas doutrinas do Grande Veículo. Alguns consideram esse Maitreya um mestre de carne e osso que teria vivido entre 270 e 350. De volta ao plano terrestre, Asanga teria composto uma série de tratados em que, com base nos ensinamentos ouvidos de Maitreya, são expostos os fundamentos da Escola Cittamatra. Dentre esses tratados, cumpre destacar o Mahayana-samparigraha-sastra (Jap. Shôdaijoron, Tratado Sistemático do Mahayana), muito estudado pelos mestres chineses e japoneses. Devemos ainda a Asanga o tratado Abhidharmasamuccaya(Jap. Daijô Abidatsuma-shûron), versão mahayanista do Abhidharma. Quanto a Vasubandhu, nascido por volta de 320, foi ordenado monge em Nalanda. Inicialmente, foi discípulo do Mestre do Pequeno Veículo (Escola Sarvastivada) Samghabhadra. Depois, instalou-se em Ayodhya onde redigiu o Abhdharmakosa, suma das doutrinas filosóficas do Pequeno Veículo. Hábil dialético, Vasubandhu criticava abertamente o Mahayana pregado por seu irmão Asanga. Este último, temendo sua eloqüência e seu estilo devastadores, recorreu a um estratagema para convertê-lo. Mandou-lhe uma mensagem, avisando-o de que estava muito doente. Quando Vasubandhu acorreu para assisti-lo, Asanga o admoestou nos seguintes termos:

–          Não tens fé no Mahayana e o desacreditas, atacando-o sem cessar. Por causa dessa má ação, estás a ponto de cair para sempre num destino funesto. Tu me causas uma pesada preocupação que não me deixará viver por muito tempo.

Afligindo-se, Vasubandhu pediu ao irmão que o iniciasse no Mahayana, que ele aprendeu instantaneamente graças a sua visão penetrante. Convertendo-se, ficou tão apavorado com o pensamento de ter prejudicado o Mahayana que quis cortar a própria língua. Asanga o deteve, dizendo-lhe para colocar sua eloqüência e seus dotes literários a serviço da propagação do Mahayana.

Vasubandhu escreveu vários tratados em que expõe as doutrinas da Escola Cittamatra, entre os quais destacamos:

Vimsakarika (Jap. Yuishiki nijûron) A Vintena – Tratado em 20 versos acompanhados de comentários.

Trimsikakarika (Jap. Yuishiki Sanjuronju) A Trintena – Tratado em 30 versos.

Escreveu, ainda, entre outras obras, um importante comentário ao Sutra das Dez Terra se o Sukhavativyuhopadesa (Instrução sobre o Sutra da Vida Imensurável), seu escrito sobre a Terra Pura sobre o qual discorremos mais adiante.

Vasubandhu foi nomeado reitor da célebre Universidade Monástica de Nalanda e visitou a região de Magadha e a Índia Meridional, onde fundou muitos mosteiros. Segundo o missionário-tradutor Paramartha (499-569), que escreveu sua biografia em chinês, faleceu em Ayodhya com a idade de 80 anos, por volta de 400. Entretanto, segundo o historiador budista tibetano Taranatha (1573-1615), teria falecido no Nepal.

A vida de Vasubandhu foi a de um Mestre Budista que vivenciou a passagem do Pequeno para o Grande Veículo, marcada por um instante decisivo de uma dramática conversão.

4.A Escola Cittamatra: Histórico e breve apanhado da Doutrina: Estabelecida, segundo a tradição, pelo misterioso Maitreya, a Escola Cittamatra foi desenvolvida pelos irmãos Asanga e Vasubandhu. É conhecida também como Vijnanavada (Escola da Consciência) e Yogacara (Escola dos Praticantes do Yoga), denominação que permite deduzir que suas teorias partiram de uma sistematização das experiências de meditação e contemplação vivenciadas pelos Mestres Fundadores, Os orientalistas ocidentais geralmente a denominam Escola Idealista. Dharmapala, discípulo de Asanga, compilou, juntamente com mais dez Mestres, o extenso Vijnaptimatratasiddhi-sastra (Jap. Jôyuishikiron, Tratado da Realização da Doutrina da Consciência), comentário d’A Trintena de Vasubandhu, um dos principais compêndios doutrinários da Escola. Em 1981 tive ocasião de assistir em Kyoto, no Grupo de Estudos Soôgakusha, aulas sobre o Jôyuishikiron ministradas pelo Rev. Rijin Yasuda, um dos maiores expositores contemporâneos da Doutrina Cittamatra filiados ao Budismo Shin. Dharmapala fez do Mosteiro-Universidade de Nalanda um grande centro propagador da Doutrina da Consciência. Outro discípulo, Dignaga, fundou a Escola de Lógica Budista que se desenvolveu no séc. VII graças a Dharmakirti. Muitas polêmicas se desenrolaram na Índia entre as Escolas Madhyamika e Cittamatra. Sthiramati (Jap. An-e), discípulo de Vasubandhu, trabalhou para conciliá-las e se tornou muito respeitado, inclusive na China, onde a Escola foi introduzida graças às traduções para o chinês dos tratados fundamentais, feitas por missionários-tradutores como Bodhiruci (séc. VI),Paramartha (499-569) e, principalmente, o grande viajante Hsüan-tsang (660-664), cognominado o “Marco Polo Chinês”, venerado por chineses e japoneses como o Patriarca Fundador da Escola Fa-hsiang (Jap. Hosso), depositária da Tradição Cittamatra na Ásia Oriental. A Escola foi introduzida no Japão pelo monge Dosho (629-700) que estudou na China sob a orientação de Hsüan-tsang. A Tradição Hosso é conservada até hoje no Japão em templos de grande importância histórica e artística como o Horyuji, o Yakushiji e o Kofukuji em Nara, e ainda no Kiyomizu-dera de Kyoto. Tive a ocasião de estudá-la no Yakushiji com o Patriarca Gyôin Hashimoto que, em 1973, visitou o Brasil, tendo feito palestras no Rio de Janeiro e em S. Paulo. Um dos mais ilustres da Doutrina Hosso no Japão foi o monge erudito Ryôhen (1194-1254), contemporâneo de Shinran, conhecedor das Doutrinas do Zen e da Terra Pura, autor do Kanshin Kakumushô (Tratado da Contemplação do Coração e do Despertar do Sonho) e do Yuishiki Nikanjo (O Cittamatra em Dois Volumes), pequeno compêndio simplificado da Doutrina em linguagem popular, dedicado a sua mãe. É um dos melhores textos introdutórios ao Cittamatra. Existe uma tradução comentada para o japonês moderno, pelo Prof. Kôitsu Yokoyama – Yuishiki to wa nanika (O que é Citamatra?) (Tokyo, Shunjusha, 1986). Para quem não lê japonês, uma das mais lúcidas exposições introdutórias ao Madhyamika e ao Cittamatra é o artigo Filosofia de la Índia II – Budismo, da orientalista Argentina Carmen Dragonetti (que conheci na Índia em 1984), publicado na Enciclopedia Ibero-Americana de Filosofia (Vol. 19 – Filosofias no occidentales) (Madrid, Editorial Trotta, 1999).

Passando agora aos aspectos doutrinários, começarei advertindo que, embora a Escola Cittamatra seja rotulada de idealista pelos orientalistas ocidentais, o Budismo, na sua essência, não é nem materialista nem idealista. Fundamentado na Lei da Co-manifestação Dependente, o Budismo considera matéria e consciência fenômenos complementares, dependentes um do outro, como expõe magistralmente o MestreDogen em seu tratado Bendôwa (Sobre o Empenho no Caminho):

A Lei do Buda sempre ensina que corpo e mente são uma coisa só. Como então a mente pode escapar do corpo e deixar de nascer e de morrer? Se a mente ora for uma com o corpo, ora não o for, o ensinamento do Buda será uma mentira. Além disso, julgar que a Lei do Buda visa a afastar nascimentos e mortes, é desprezá-la. Presta bastante atenção nisso. Deves saber que, segundo o Dharma da Grande totalidade das Formas da Essência da Mente, todo o Mundo do Dharma se acha nela compreendido; não há discriminação entre essência e forma e não se fala em nascimento e morte. Estado de Buda e Nirvana não existem fora da Mente. Todas as coisas, todos os fenômenos não existem fora da Mente. Todas as coisas, todos os fenômenos são Uma Mente e nada há que esteja fora da mente ou sobreposto a ela. Todos esses ensinamentos falam de uma Mente Única e Uniforme. Diz-se que não é nelas diferenças e discrepâncias. Tal é a maneira pela qual o praticante do Caminho do Buda deve compreender a essência da Mente. Nesse Dharma Único, como se poderá estabelecer diferença entre corpo e mente, entre nascimentos e mortes e o Nirvana? Somos filhos do Buda e não devemos emprestar nossos ouvidos ao eco da língua de loucos a pregarem concepções heréticas.

 

Assim, o Budismo encara consciência e matéria como complementares, como se vê também na idéia de unus mundus que Carl Gustav Jung, o pai da Psicologia Analítica, tomou de empréstimo a Plotino e à Tradição Alquímica:

Aquilo que se oculta por trás de nosso mundo empírico parece de fato ser um “unus mundus” (mundo uno). Pelo menos isso é uma hipótese provável, que satisfaz ao axioma da teoria do conhecimento da parte das ciências naturais: principia explicandi non sunt multiplicanda praeter necessitatem (Os princípios de explicação não devem ser multiplicados além da necessidade). O fundo transcendental psicofísico corresponde ao “mundo potencial”, por estarem contidas nele todas as condições que determinam a forma dos fenômenos empíricos. Isso vale evidentemente tanto para a física como para a psicologia, ou mais exatamente para a macrofísica e para a psicologia da consciência.

Carl Gustav Jung – Mysterium Coniunctionis

 

O Budismo enfoca, pois, a matéria e a consciência numa perspectiva não dualista; entretanto, ele enfatiza fortemente a importância do fator mental. Nessa ênfase do mental, que podemos rastrear até textos do Budismo Primitivo como o Dhammapada, tidos por conservarem as ipsissima verba do Buda Histórico Sakyamuni, estão as raízes mais remotas da Escola Cittamatra:

Todas as coisas têm como precursora a mente, fundamentam-se na mente, são feitas da mente.

Dhammapada I, 1.

Ainda no Dhammapada temos a redação primitiva do célebre Gatha dos Sete Budas, em que se enfatiza a idéia de purificação do coração, raiz das Doutrinas Cittamatra e Terra Pura:

Abster-se da prática de todos os males, cultivar o bem e purificar o coração – eis o ensinamento dos Budas.

Sabbapâpassa akaranam kusalasa upasampadâ

Saccitapariyodapanam etam buddhâna sâsanam.

 

                                         Dhammapada XIV, 183.

Notemos, nesta última citação, que os males estão no plural e o bem no singular: o mal é fruto da divisão e da discriminação, o Bem Transcendente é Uno, anterior a qualquer cisão ou diferenciação.

O Budismo Original nos apresenta uma cosmovisão fundamentada em nosso processo cognitivo. O mundo – a totalidade dos dharmas, como se diz no jargão budista – consiste na totalidade de nossas percepções sensoriais mais as idéias e conceitos que construímos a partir das mesmas. A psicologia do Budismo Original estabelece assim seis consciências, cinco delas correspondentes aos cinco sentidos e a sexta responsável pela construção de idéias e conceitos. Podemos definir essa postura filosófica original como um realismo ingênuo. Com o passar do tempo, a análise psicológica e epistemológica budista foi se tornando cada vez mais profunda e sofisticada. Com o advento do Budismo Mahayana surgiu um grupo de Sutras – considerados pela Escola Hosso e pelo Budismo Tibetano como tendo sido pregados por Sakyamuni em seu Terceiro Giro da Roda do Dharma – em que são pregados novos conceitos psicológicos a partir dos quais será construída a Escola Cittamatra. Os principais são o Samdhinirmocanasutra (Jap. Gejin Mikkyô, Sutra da Explicação dos Mistérios), o Avatamsakasutra e o Lankavatarasutra, estes dois últimos já nossos conhecidos. Nesses Sutras são apresentadas mais duas consciências, manovijnana ealayavijnana (serão explicadas mais adiante) que correspondem ao que a moderna Psicologia Profunda denomina como inconsciente. Temos aqui, portanto, a descoberta do inconsciente cerca de dois mil anos antes de Freud e Jung!

Passemos agora, finalmente, aos fundamentos doutrinários da Escola Cittamatra, começando com a exposição do postulado básico da mesma: toda a realidade consiste em consciência, inclusive aquilo que pensamos ser o mundo exterior; tudo o que existe consiste em idéias, representações, imagens, imaginações, criações da mente, a que não corresponde nenhum objeto exterior fora da consciência. Essa tese é afirmada por Vasubandhu no parágrafo inicial do tratado A Vintena:

De acordo com o Ensinamento do Grande Veículo, nosso mundo empírico (o Tríplice Mundo) não passa de consciência discriminadora. Isso porque nos Sutras é dito: Filhos do Vencedor! Este mundo empírico não passa de consciência. “Coração”, “Mente”, “Consciência Cognitiva” e “Consciência Discriminadora” são sinônimos.

1º Verso: – Este mundo não passa de consciência discriminadora. Isso porque esta projeta como objeto algo que não existe. É tal como uma pessoa que sofre da vista e vê imagens de pelos e uma imagem dupla da lua que não existem.

 

Ryohen apresenta a mesma tese no início do Yuishiki Nikanjo:

Em primeiro lugar, direi que todos os dharmas não existem fora de meu coração. O Grande Oceano, os rios, o Círculo de Montanhas de Ferro, os mundos que não vemos e não conhecemos, a Terra Pura, o Despertar, e até mesmo o Maravilhoso Princípio da Verdade Uma, idêntica a si mesma, tudo está dentro de meu coração. O que dizer, então, da cabeça e dos olhos de meu corpo, das mãos e dos pés, das roupas, dos alimentos e de tudo mais? Achar que existam fora do coração é ilusão e confusão. É porque estamos em meio a essa ilusão e confusão que, desde um passado sem início, transmigramos por nascimentos e mortes. Ao compreendermos que os dharmas não existem fora do coração cessa essa infindável transmigração e certamente não deixaremos de ascender ao Grau de Rei da Suprema Iluminação.

O que devemos entender com tudo isso? Será o Cittamatra uma espécie de solipsismo maluco que considera o mundo externo uma mera projeção de meu eu subjetivo? À primeira vista, parece isso mesmo, mas não é necessariamente assim. Carl Gustav Jung, no texto abaixo, parece nos fornecer uma chave para a compreensão daquilo que o Cittamatra nos quer dizer:

A vida psíquica é, em última análise, qualquer coisa de incompreensível. É, sem dúvida alguma, nossa única experiência imediata. Tudo o que eu experimento é psíquico. A própria dor física é uma reprodução psíquica que eu experimento. Todas as percepções de meus sentidos que me impõem um mundo de objetos espaciais e impenetráveis são imagens psíquicas que representam minha experiência imediata, pois somente elas são os objetos imediatos de minha consciência. Minha psique, com efeito, transforma e falsifica a realidade das coisas em proporções tais, que é preciso recorrer a meios artificiais para constatar o que são as coisas exteriores a mim; é preciso constatar, por ex., que um som é uma vibração do ar de uma certa freqüência e que uma cor é determinado comprimento de onda da luz. No fundo estamos de tal modo envolvidos em imagens psíquicas, que não podemos penetrar na essência das coisas exteriores a nós. Tudo o que nos é possível conhecer é constituído de material psíquico. A psique é a entidade real em supremo grau, porque é a única realidade imediata. É nesta realidade, a realidade do psíquico, que o psicólogo pode se apoiar.

C. G. Jung – A Natureza da Psique

 

Podemos concluir que tanto Jung como a Escola Cittamatra nos ensinam que nossa experiência imediata é a de um mundo virtual formado pelas imagens da nossa consciência. Essas imagens são construídas pelas cinco consciências sensoriais, que fornecem sensações visuais, auditivas, olfativas, gustativas e táteis, e pela sexta consciência, que produz idéias, conceitos, etc. a partir das mesmas. Até aqui estamos num terreno comum com o Budismo Original, mas a Escola Cittamatra vai mais longe. Admite uma sétima consciência, o manovijnana (Jap. Manashiki, consciência do ego), que consiste na autoconsciência de um ego como sujeito conhecedor de todas essas sensações e representações e gerador de apego às mesmas e a si próprio. Admite, finalmente, uma oitava consciência, o alayavijnana (Jap. Arayashiki, consciência armazenadora), comparável ao inconsciente coletivo da Psicologia Junguiana, onde ficam depositadas os bija (Jap. Shuji, sementes), produzidas por todas as nossas ações, palavras e pensamentos do passado. Dizemos que nossas ações presentes “aromatizam” (Sanscr. Vasana, Jap. Kunjû). As sementes podem ser maculadas (Jap.Uro) pelas paixões, pelo egoísmo, pela ignorância, etc., ou imaculadas (Jap. Muro). A Escola Cittamatra propõe um método de Yoga para eliminar as sementes maculadas e substituí-las por imaculadas, o que transmutará a consciência do homem profano na Pura Sapiência Búdica.