NOTAS SOBRE O SHOSHINGE – 12

Rev. Prof. Dr. Ricardo Mario Gonçalves

 

Shakya, o Tathagata, no Monte Lanka,

Pregou à multidão que, no Sul da Índia,

O Grande Ser Nagarjuna se manifestaria no mundo,

Destruindo totalmente as opiniões sobre o ser e o não-ser;

Exporia ele a mais excelsa Doutrina do Grande Veículo;

Alcançando a Terra Jubilosa, nasceria ele no País da Paz e da Alegria.

 

1. Considerações Gerais: Aqui é apresentado o Bodhisattva Nagarjuna como o expositor da Suprema Doutrina do Mahayana, em conformidade com uma pretensa profecia do Buda Sakyamuni registrada no Lankavatara Sutra.

 

2. O Lankavatara Sutra e a Profecia de Sakyamuni: O Lankavatara Sutra (Sutra da Descida a Lanka, jap. Ryôgakyô) é um Sutra do Mahayana extremamente importante para o Budismo Sino-Japonês. Foi composto por volta do ano 400. Dispomos do original sânscrito, de duas traduções tibetanas e de três traduções chinesas.

O original sânscrito foi descoberto no Nepal, juntamente com outros textos do Mahayana, pelo diplomata e orientalista britânico Brian Houghton Hodgson (1800-1894). Foi estudado e editado em 1923 pelo monge erudito Bunyû Nanjô (1849-1927), da Ordem Otani de Budismo Shin, que estudou e trabalhou na Universidade de Oxford com o Pai da Ciência das Religiões Max Muller (1823-1900). O Prof. Daisetz Teitaro Suzuki (1870-1966) publicou em 1932, em Londres, a tradução inglesa do mesmo – The Lankavatara Sutra, a Mahayana Text -, dois anos depois de ter lançado um volume de estudos – Studies in the Lanakavatara Sutra.

As traduções chinesas existentes são as seguintes:

1 – de Gunabhadra (443); 2 – de Bodhiruci (513); 3 – de Siksananda (por volta de 700). Menciona-se uma tradução mais antiga feita por Dharmaksetra, que trabalhou na China entre 412 e 433, que não chegou até nós.

O texto se apresenta como uma coleção de anotações algo desconexas sobre doutrinas do Mahayana. Depois de passar um período no reino das Nagas (serpentes) oceânicas, o Buda Sakyamuni expõe o Sutra, a pedido de Ravana, o rei-demônio de Lanka (Sri Lanka ou Ceilão). Lembremos que no Ramayana, poema épico hindu que narra as aventuras do herói Rama, Ravana é o rei-demônio do Ceilão responsável pelo rapto deSita, a esposa do herói; este último o derrota com o auxílio do macaco Hanuman. O Sutra compreende as respostas às 108 questões formuladas ao Buda pelo Bodhisattva Mahamati (Grande Sabedoria). Seu conteúdo é uma síntese das principais doutrinas do Mahayana, com destaque para as teorias das Escolas Cittamatra (“Nada mais que Consciência”, Yuishiki em japonês) e Tathagatagarbha (“Embrião do Tathagata”). São vistas não como meras teorias, mas como expressões de profundas experiências religiosas. Inspirou a composição do Daijô Kishinron (Tratado do Despertar da Fé no Mahayana) atribuído a Asvaghosa. É um dos textos fundamentais da Escola Hossô, que conserva no Japão as doutrinas da Escola Indiana Cittamatra, e é muito valorizado no Budismo Zen, por conter um apanhado sobre as práticas indianas de dhyana(concentração mental). O monge erudito Ryôhen (1194-1252), da Escola Hossô, pensador erudito versado no Zen e na Terra Pura, classifica-o como integrando os Sutra do Terceiro Giro da Roda do Dharma. Segundo uma tradição de origem indiana, conservada na Escola Hossô e no Budismo Tibetano, o Buda Shakyamuni, em sua vida terrena, girou por três vezes a Roda do Dharma:

1º giro: em Sarnath; compreende os Ágamas (jap. Agon), em que foram ensinadas as doutrinas básicas do Budismo conservadas nas Escolas do Pequeno Veículo: Três Marcas da Existência, Quatro Nobres Verdades, Óctupla Senda, Lei da Originação Dependente, etc.

2º giro: no Pico dos Abutres, perto de Rajagrha, compreende os Sutras do Prajnaparamita (Perfeição da Sabedoria) em que foi enunciada a doutrina da vacuidade de todos os fenômenos.

3º giro: em Vaisali, Sravasti, ou no Monte Lanka: compreende a Doutrina Cittamatra,que vê na Consciência a origem de todos os fenômenos, ou seja, conforme diz o Lankavatara Sutra: A Consciência é, ao mesmo tempo, o teatro, a dançarina e o espectador.

Esses três giros da Roda do Dharma correspondem a três paradigmas sucessivos na História do Pensamento Budista (Hans Küng) ou a três momentos do processo de desenvolvimento da consciência religiosa.

O texto da profecia relativa a Nagarjuna consta de um capítulo algo problemático denominado Sagathakam (“Versos”, jap. Gejubon) uma coletânea desordenada de versos sobre os mais diferentes assuntos. Existe no texto sânscrito e nas traduções chinesas mais recentes de Bodhiruci e Siksananda, mas não na mais antiga de Gunabhadra. A tradução inglesa do texto sânscrito, do Prof. Suzuki, diz:

Dizei-me: Depois da desaparição do Mestre, quem será o portador do Mahayana? Mahamati, deves saber que haverá alguém que portará o Dharma depois do Sugata ter ingressado no Nirvana. (163-164)

Em Vedali, na região meridional, (nascerá) um monge mui ilustre e famoso, seu nome será Nagahvaya, ele será o destruidor dos pontos de vista parciais baseados no ser e no não-ser. (165)

Ele proclamará meu Veículo, o insuperável Mahayana, ao mundo; atingindo a Terra Jubilosa, irá ele para o País da Alegria. (166)

Segundo o Prof. Suzuki, é provável que a forma Nagahvaya seja uma transcrição errônea do nome de Nagarjuna, feita por algum copista. Chama ele ainda a atenção para os seguintes versos, onde é citada a Doutrina da Terra Pura:

O mundo está pleno de Budas amadurecidos, Budas de transformação, seres viventes, Bodhisattvas e Terras Búdicas. (140)

Os Budas emanados, os Budas do Dharma, os Budas de transformação e aqueles que se manifestam transformados – todos surgem do País da Alegria do Buda Amitabha.(141)

Em suma, tais alusões à Terra Pura de Amida justificam a atenção dada ao Lankavatara Sutra pelo Mestre Shinran.

Na tradução chinesa de Bodhiruci, o texto da profecia aparece da seguinte forma:

A Sabedoria Interna de meu Veículo não é um estado de consciência acessível aos adormecidos. Depois do desaparecimento do Tathagata, no futuro, surgirá uma pessoa que será um monge de elevadas virtudes do País do Sul; Nagarjuna será seu nome. Destruirá totalmente as opiniões sobre o ser e o não-ser e exporá às pessoas o meu Veículo, a mais excelsa Doutrina do Mahayana. Alcançando a Terra Jubilosa, irá nascer no País da Paz e da Alegria.

Essa mesma passagem é utilizada por Kûkai (Kobo Daishi) (774-835) em suas obras Himitsu Mandara-kyô Fuhôden (Relato da Transmissão do Dharma do Mandala Secreto) e Shingon Fuhôden (Relato da Transmissão do Dharma da Verdadeira Palavra) para reforçar sua apresentação de Nagarjuna como o Terceiro Mestre da Linhagem de Transmissão do Dharma segundo a Escola Shingon.

Shinran usa o texto da profecia também nos Hinos dos Patriarcas (Kôso Wasan), nas estrofes 2 e 3 dos Hinos a Nagarjuna:

Na Índia do Sul haverá um monge

Que será chamado Nagarjuna

E há de destruir as opiniões errôneas sobre o ser e o não-ser.

Assim pregou de antemão o Honrado do Mundo.

 

O Mestre Original, Bodhisattva Nagarjuna,

Pregou a mais excelsa Doutrina do Mahayana;

Alcançando a Terra Jubilosa,

Recomendou apenas o Nembutsu.

(Seiten, págs.489-490.)

 

 

3. Questões de Vocabulário:

3.1. Monte Lanka = Lanka é o nome antigo da Ilha de Ceilão, ex-colônia britânica, hoje um país independente denominado Sri Lanka. O texto sânscrito do Sutra, traduzido pelo Prof. Suzuki, diz: no Castelo de Lanka, situado no pico do Monte Malaya, no grande oceano… É uma referência a uma alta montanha de Ceilão, possivelmente o Pico de Adão.

Outras denominações antigas de Ceilão: Simhaladvipa (sânscrito), Tambapamni (nas Inscrições de Açoka), Tambapanni (pali), Tamraparni ou Tambraparni (sânscrito),Tampiraparuni, Tamirapurani ou Tampirabanni (tamul). Dessa última forma deriva a denominação grega Taprobane (Taprobana em latim e português). A forma Taprobanaestá imortalizada nos primeiros versos de Os Lusíadas de Luís de Camões:

As armas e os barões assinalados,

Que, da ocidental praia lusitana,

Por mares nunca de antes navegados,

Passaram ainda além da Taprobana

 

A pregação do Dharma por Shakyamuni em Lanka não passa, evidentemente, de uma ficção literária. A introdução do Budismo no país se deve a uma iniciativa do Rei Açoka que, por volta de 250 a.C., mandou uma embaixada ao rei Devanampiya Tissa, chefiada por seu filho Mahinda. Muito bem recebido, criou uma primeira comunidade budista em Anurudhapura. Mahinda foi auxiliado por sua irmã Samghamitta, que trouxe uma muda da Árvore Bodhi e deu início à ordenação de monjas no país.

3.2. Nagarjuna = Célebre doutor do Budismo Mahayana, fundador da EscolaMadhyamika (Escola do “Meio” ou do Vazio). Viveu ente 150 e 250, aproximadamente. Venerado no Japão como Patriarca de Oito Escolas, é considerado o “segundo Buda”. Foi um pensador extremamente original. Teria sido também mestre tântrico e alquimista. Nasceu ele na Índia do Sul, numa família de brâmanes. Os relatos de sua vida que chegaram até nós são recheados por muitos episódios maravilhosos e lances rocambolescos. Segundo seus hagiógrafos, quando ele nasceu, um astrólogo declarou que ele poderia vir a ser um grande religioso, mas que não viveria mais de sete dias. Seus pais prolongaram sua vida até os sete anos, através de oferendas aos religiosos. Pouco antes dessa idade, ele foi para o mosteiro-universidade de Nalanda e renunciou ao mundo, a conselho do Mestre Saraha que lhe transmitiu o dharani do BudaAmitayus, graças ao qual prolongou sua vida até mais de 600 anos… Fundamentando-se nessa lenda, alguns estudiosos propõem a existência de dois Nagarjunas:Nagarjuna I, o filósofo, e Nagarjuna II, o tântrico e alquimista, que teria vivido uns 300 anos depois do primeiro. Outra lenda nos diz que, quando jovem, Nagarjuna se dedicou às artes mágicas, graças às quais adquiriu o poder de se tornar invisível. Usava seu poder para, em companhia de dois amigos, penetrar no harém do soberano local para se divertir com as mulheres. O rei mandou seus soldados matarem os intrusos, desferindo golpes de espada no ar até alcançá-los. Nagarjuna escapou e, chocado com a morte dos amigos, tomou consciência do caráter ilusório das paixões mundanas e tornou-se monge. De sua juventude mundana teria resultado a redação de um tratado de erotismo, Ratisastra (Tratado do Prazer).

Nagarjuna se tornou um afamado mestre budista e, um dia em que pregava o Dharma aos discípulos, reparou que dois deles haviam mergulhado no interior da terra. Eram duas nagas (serpentes) que o convidaram para vir a seu reino, onde lhe foram revelados os Sutras da Perfeição da Sabedoria (Prajnaparamita). Uma variante dessa tradição conservada pela Escola Kegon diz que, no palácio das nagas, foram-lhe mostradas três versões do Sutra da Inconcebível Iluminação. Duas delas eram extensas demais e Nagarjuna revelou ao mundo a menor: o Avatamsaka-Sutra (jap. Kegongyô) em 60 volumes, na tradução chinesa. Kûkai, por sua vez, registra a tradição tântrica segundo a qual Nagarjuna penetrou numa torre de ferro no Sul da Índia, onde recebeu o abisheka (iniciação esotérica) conferida pelo Vajrasattva, o Discípulo Eterno, que lhe também lhe revelou os Sutras da Tradição Vajrayana. O Budismo Zen, por sua vez, o considera o 13º Patriarca de sua linhagem de transmissão do Dharma.

A principal obra de Nagarjuna é o Madhyamaka-sastra (Tratado da Via Média), onde é exposta a doutrina da vacuidade ou contingência universal (Jean-Marc Vivenza) que Shinran resume admiravelmente em um único verso do Shoshinge:

Destruindo totalmente as opiniões sobre o ser e o não-ser.

 Uma excelente introdução ao pensamento de Nagarjuna é:

T. R. U. Murti – The Central Philosophy of Buddhism, London, George Allen and Unwin, 1955.

O Prof. Ichijô Ogawa, da Universidade Otani, tem publicado excelentes estudos em que expõe as teses básicas de Nagarjuna, vinculando-as ao Budismo Shin. Lembro ainda que as teses de Nagarjuna têm sido comparadas às expostas pelo filósofo contemporâneo Ludwig Wittgenstein (1889-1951) em seu Tractatus Logico-Philosophicus (1921). Apresento a seguir um resumo da Doutrina Madhyamikaelaborado pelo orientalista francês Jean Varenne:

Nagarjuna utilizou seus conhecimentos de lógica para propagar as idéias que ele considerava como sendo a expressão perfeitamente adequada do pensamento do fundador, em face das posições excessivas assumidas pelos adeptos do Mahayana e do Hinayana: por isso sua doutrina recebe o nome de “média” (madhyamaka). Por sua problemática e seu ambiente ideológico ela se vincula, entretanto, ao Mahayana e todas as escolas búdicas que remontam a Nagarjuna pertencem ao Grande Veículo. Vemos isso bem, aliás, na postura tomada pelo filósofo face ao que constituía em sua época a questão central do debate doutrinário: as coisas existem ou não? Existe ou não uma realidade ontológica? Tanto aos que davam uma resposta negativa quanto aos partidários da posição oposta, Nagarjuna explicava que ambos estavam enganados: é falso, dizia ele, afirmar tanto sua existência como sua não existência, ou as duas ao mesmo tempo, ou nem uma nem outra, porque, assim fazendo, nós nos referimos, explícita ou implicitamente, a um “si-mesmo”. Ora, o Buda pregou o Vazio, a Vacuidade(sunyata), não há substância, não há substrato ontológico, não há essência. O problema se dissolve, então, pois não há mais sistema de referência. Entretanto, Nagarjuna não prega o nada: ele concede que os fenômenos sejam reais, mas apenas como fenômenos: podemos dizer que eles são como um véu, desde que compreendamos que nada existe sob o véu. Em suma, a melhor atitude é a do próprio Buda que, segundo dizem, guardava o silêncio quando o interrogavam sobre a essência (atman).

(Encyclopaedia Universalis – Dictionnaire du Bouddhisme, Paris, Albin Michel, 1999, pg. 447.)

Outra importante obra de Nagarjuna é o extenso Tratado da Grande Perfeição da Sabedoria (Sanscr. Mahaprajnaparamita-sastra, jap. Daichidoron), uma verdadeira enciclopédia do Budismo Mahayana. Temos ainda o Dasabhumi-vibhasa-sastra (jap.Jûjû Bibasharon) (Tratado Explicativo das Dez Moradas), comentário ao Dhasabhumika-Sutra (Sutra das Dez Terras), volumoso capítulo do Avatamsaka-Sutra em que são descritas as dez “terras”, “moradas” ou etapas de progressão da consciência do Bodhisattva. Ao discorrer sobre o próximo segmento do Shoshinge trataremos dessa obra fundamental que estabelece um vínculo entre a filosofia de Nagarjuna e a Tradição da Terra Pura.

3.3. Terra Jubilosa (Sanscr. Pramuditabhumi jap. Kangiji) = A primeira das dez etapas da carreira do Bodhisattva, segundo o Dhasabhumika-Sutra, assim chamada por ser comparável à descoberta de um tesouro por um mendigo.

Ao atingir essa etapa, o Bodhisattva comum se converte num Aryabodhisattva (Bodhisattva nobre ou sagrado), compreendendo a vacuidade do eu e dos fenômenos e obtendo a capacidade de realizar seus próprios votos e de operar em benefício dos seres viventes. Ele sabe que está próximo do Despertar e que não pode mais retroceder (sanscr. Avaivartika, jap. Abibatchi), o que enche seu coração de júbilo. A principal característica desse grau é a prática da generosidade ou da doação (danaparamita). O Bodhisattva se torna capaz de oferecer tudo o que possui, inclusive seu próprio corpo, em benefício dos seres viventes. Liberto do mundo profano, ele prefere contudo permanecer no mesmo para trabalhar em prol dos seres sensíveis, buscar bons dharmas e desenvolver méritos e virtudes.