Minha Trajetória no Honganji

rmg2

Farei um relato sucinto de minha trajetória de vida, enfatizando minha atuação no Higashi Honganji. Descendente de imigrantes europeus, eu recebi uma educação liberal e não-confessional: desde cedo meus pais me disseram que a escolha da religião era um assunto exclusivamente pessoal e que eu haveria de fazer minha opção no momento adequado. Entretanto, desde cedo as religiões me deixaram curioso. Comecei a ler a Bíblia nos tempos da escola primária, mas confesso que nunca encarei a sério a opção de me dedicar ao Cristianismo. Por influência de minha mãe, que era simpatizante do Espiritismo Kardecista, estudei essa doutrina até mais ou menos dezoito anos, quando deixei de leva-la a sério, por descobri-la pouco compatível com minha educação científica.

Ainda na época da escola primária, a leitura dos livros infantis de Monteiro Lobato que falavam de mitologia grega me deixou a impressão de que o mundo dos deuses da Grécia Antiga tinha muito mais a ver comigo do que o universo bíblico e cristão. Cedo, porém, me dei conta de que o paganismo clássico era algo definitivamente morto e comecei a me interessar por religiões orientais.

Minha descoberta do Oriente data do tempo da escola primária, quando ganhei de uma professora uma versão infantil do livro das viagens de Marco Polo. Li também muitos romances de viagens e aventuras no Oriente, de autores como Júlio Verne e Emílio Salgari. Ao ingressar no curso ginasial, vi-me numa classe repleta de filhos de japoneses: foi meu primeiro encontro pessoal com orientais. Dentre meus colegas nisseis, devo destacar o Seiichiro, filho da Sra. Nakada, ativa participante da Associação de Senhoras (Fujinkai) do Higashi Honganji. Foi através dela que tive meu primeiro contacto com a fé do Budismo Shin.

Os nipônicos me fascinaram logo no primeiro momento: procurei fazer amizade com os colegas nisseis e seus familiares, meus primeiros orientadores no estudo do japonês, idioma que aprendi praticamente sozinho, com o auxílio de dicionários, gramáticas e manuais de conversação. Enquanto estudava a língua, comecei a ler também sobre a história e a cultura do Japão. Nos primeiros anos, interessei-me primeiramente por artes japonesas como cinema, teatro, música e dança. Logo me dei conta de que por detrás dessas atividades artísticas existia um poderoso fator de ordem espiritual: o Budismo. Principiei então a estudá-lo, através de livros e de contactos pessoais com amigos japoneses. Aos dezoito anos, quando deixei de considerar o Espiritismo como uma possível opção, comecei a me sentir budista.

Meus primeiros contactos pessoais com o Budismo se deram através de visitas aos templos Nishi e Higashi Honganji de S. Paulo. O Budismo Shin foi, portanto, a primeira escola budista que conheci. Lembro-me de que, na época do colegial, estava lendo um manual de cosmologia mítica budista, que me impressionou muito por causa da imensa quantidade de divindades do panteão hindu-budista. Perguntei, um dia, a um missionário do Nishi Honganji: – Esses deuses existirão mesmo? Ele respondeu: – Se você acredita neles, eles existem. Se não acredita, não existem.  Essa resposta insólita me fez pensar. Senti que por detrás dela existia algo muito importante e que valeria a pena dedicar minha vida a isso. Na mesma ocasião, um cartaz afixado na parede do templo chamou minha atenção. Dizia mais ou menos assim: Mesmo o pior dos malfeitores foi um dia um frágil bebê a dormir, protegido no regaço de sua mãe. Essa frase também ecoou profundamente em mim. Essas experiências fizeram nascer em mim a firme decisão de ir um dia ao Japão para estudar o Budismo.

Enquanto fazia o Curso de História na USP, passei a me dedicar ao Budismo Zen. Depois de formado, dediquei-me também ao Budismo Shingon, em que fui iniciado no Japão. Entretanto, nunca deixei de estudar o Budismo Shin. O estudo da idéia de decadência do Budismo – Mappô – na obra de Shinran foi o tema de minha tese de doutorado em História Medieval, defendido na USP em 1971. Como docente do Departamento de História da USP fiz duas viagens ao Japão, em 1968 e 1973, em que tive ocasião de me aprofundar no estudo do Budismo.

Quando ainda era estudante da USP, recebi os primeiros convites do Templo Higashi Honganji para proferir palestras sobre Budismo em português nos templos do interior. Numa dessas viagens, conheci, em Presidente Prudente, o Rev. Chokyo Otani (Nômyô-in), o Otani Sensei ou Mestre Otani, como era chamado, que se tornou meu principal mentor no aprendizado do Budismo Shin. Faço aqui uma digressão sobre esse meu Mestre, que deixou marcas indeléveis em minha existência.

Mestre Otani nasceu no Japão em 9 de março de 1918, na condição de irmão mais novo do Venerável Sennyo, 24º Grão-Mestre da Ordem Otani, cujo casamento com a irmã da Imperatriz Nagako, esposa do Imperador Hirohito, deu a nosso Otani Sensei da dignidade de príncipe, coisa de que ele jamais se vangloriava. Como foi o caso de praticamente todos os japoneses de sua geração, sua vida foi absorvida pelas engrenagens da guerra. Como oficial do Exército Imperial, Otani Sensei por 10 anos percorreu os campos de batalha da China, da Birmânia e do Sul do Pacífico, encontrando no fragor das batalhas uma escola incomparável para o aprendizado das grandezas e misérias da condição humana.

Otani Sensei se aprofundou na vivência do Nembutsu junto ao Venerável Haya Akegarasu (1877 – 1954), um dos mais importantes mestres do Budismo Shin do século XX. Mestre Akegarasu tinha consciência do alcance universal da Doutrina do Mestre Shinran e preparou discípulos dispostos a propagá-la no além-mar, como os Revs. Gyomay Kubose e Gyoko T. Saito, que foram para os Estados Unidos como missionários da Ordem Otani. Da mesma forma, fez nosso Otani Sensei renunciar à sua confortável posição de Provincial da Sede Regional (Betsuin) da Província de Fukui para vir para o Brasil como missionário pioneiro do Budismo Shin. Chegando ao Brasil em 9 de setembro de 1952, Otani Sensei fixou-se, nove dias depois, em Assai, no norte do Paraná, como missionário residente, ali permanecendo longos anos prestando assistência religiosa à comunidade japonesa local e dedicando especial cuidado à formação do caráter das crianças e dos jovens. Em 1967 foi transferido par Araçatuba, Estado de São Paulo. Em 1970 foi ao Japão liderando uma comitiva de 36 peregrinos que iam visitar o Templo Sede em Kyoto. Um ano depois voltou ao Brasil, passando a atuar na sede da Missão em São Paulo. Em 1974 foi nomeado missionário residente em Mogi das Cruzes, onde iniciou um projeto de construção de um orfanato, infelizmente interrompido em 1982. A partir de 1987 voltou a atuar na sede em S. Paulo. Seus últimos tempos de vida foram particularmente difíceis, por causa de um tumor na garganta que o deixou praticamente sem voz. Entretanto, aceitou estoicamente seu destino e trabalhou até as vésperas de seu falecimento na redação de comentários às Cartas do Venerável Rennyo, seu contributo pessoal às comemorações do V Centenário de seu Passamento, realizadas pela Missão Sul-Americana em 1998. Como uma lâmpada que se extingue, Mestre Otani ingressou serenamente no Supremo Nirvana no dia 23 de setembro de 1995.

Mestre Otani viajou muito por este imenso Brasil. Aprendeu a amar a natureza exuberante de nossa terra, sua flora e sua fauna. Desde o início dos anos setenta fez freqüentes viagens missionárias ao Mato Grosso do Sul, a Minas Gerais, a Santa Catarina e a outras partes do território nacional onde hoje muitos de seus antigos discípulos de Assai desenvolvem projetos agrícolas pioneiros.

Fez também várias viagens ao Rio de Janeiro, algumas em minha companhia, tendo ali desenvolvido várias atividades junto à Sociedade Budista do Brasil, uma organização budista de brasileiros da qual fui o vice-presidente, com o objetivo de ajudar a propagar o Dharma do Mestre Shinran fora da comunidade nikkei. Em 1985, juntamente com Wagner Bronzeri, hoje missionário da Ordem Otani, implantou em Petrópolis o Iwamura Dojo, núcleo de prática do Nembutsu dedicado à propagação da Doutrina Shin entre os brasileiros.

Poucos dias antes de sua morte, no dia 5 de setembro, prestou um último relevante serviço à causa do Budismo em nosso país, recepcionando, na sede da Missão, o Bispo Michael L. Fitzgerald, Secretário do Conselho Pontifício para o Diálogo Inter-religioso. Não obstante suas já precárias condições de saúde, ele desempenhou essa última missão com rara dignidade e agudo senso diplomático, representando de forma perfeita nossa Ordem Otani perante o Legado do Vaticano.

Gostaria de apresentar alguns episódios inesquecíveis de meu longo e intenso relacionamento com Otani Sensei.

Em 1972 passei por uma fase bastante difícil de minha vida. Estava literalmente arrasado e não encontrava mais forças para viver. Apareceu então Mestre Otani que me agarrou pelo braço e me levou para Curitiba, para ajuda-lo num Congresso de Jovens Budistas. Terminado o Congresso, tomamos o trem e descemos para o Porto de Paranaguá onde ele me apresentou seus discípulos locais. Viajar com o Mestre era uma experiência inesquecível… e engraçada. Sua inesgotável vitalidade e seu constante bom humor criavam a cada momento situações as mais hilariantes, através das quais ele nunca deixava de passar profundas lições sobre o Dharma. Voltei refeito dessa viagem, com novo ânimo para enfrentar a vida e confiança e disposição para continuar a trilhar o Caminho Búdico.

Um dos traços de sua personalidade que mais me impressionavam era sua informalidade e humildade. Um dia, em 1980, encontrei-o no bairro da Liberdade, vestindo roupas velhas e amarrotadas, sujo de cal e cimento da cabeça aos pés.

–          Que é isso, Sensei?

–          Hoje estou como pedreiro.

Ele estava trabalhando com suas próprias mãos nas obras de construção das dependências da Sede da Missão em que hoje está instalado o Instituto Budista de Estudos Missionários.

Durante a recepção oferecida por ocasião das festividades do 35º Aniversário da Missão, surpreendi-o circulando entre os convidados, carregando pratos de salgadinhos.

–  Que é isso, Sensei?

–  Hoje estou como garçom.                                                                                                         

Nessas horas ele se revelava um magnífico príncipe anarquista, da estatura de um Kropotkin…

Outro traço marcante de sua personalidade era seu profundo amor à natureza e aos animais. Durante algum tempo ele viveu numa montanha nas proximidades de Mogi das Cruzes, como um anacoreta. Um dia encontrei-o lá, cercado de cães e gatos que vinham comer na sua mão.

–   Gosta dos bichos, Sensei?

–   Gosto dos bichos porque não são hipócritas mascarados como os humanos. Quando estão alegres, mostram-se alegres. Quando estão bravos, mostram-se bravos. Os bichos são o que são, nada mais.

Em 1972, conheci um intelectual budista residente em S. Paulo, o Prof. Moon Jae Lee, aparentado com a antiga família real da Coréia. Era filósofo, poeta, pintor e etnólogo. Apresentei-o ao Mestre Otani que logo se afeiçoou a ele, passando a chamá-lo de primo. Levava-o para participar dos eventos budistas em que atuava e fazia questão de colocá-lo em assentos de honra. Essa amizade durou até o falecimento do Prof. Lee em 1974. Mestre Otani e eu concelebramos suas pompas fúnebres.

Retomando agora a narração de minha trajetória de vida, direi que minhas relações com o Higashi Honganji em São Paulo se tornaram mais intensas quando regressei de minha viagem de estudos ao Japão em 1973. A Missão não só passou a me convidar com mais freqüência para atuar em encontros de jovens como também se dispôs a publicar a tradução em português do Tannishô (Tratado de Lamentação das Heresias) que eu havia elaborado no Japão, nos momentos de ócio. Em 1979 fui procurado pelo Rev. Susumu Hoshinobori, o novo Provincial recém-chegado do Japão, que me falou dos planos da Ordem Otani no sentido de instalar em São Paulo um Instituto de Estudos Missionários, destinado a publicar traduções em português dos Textos Sagrados e de material de divulgação do Dharma, realizar cursos e promover pesquisas estratégicas para o desenvolvimento de uma ação missionária adaptada às condições locais. Tendo sido convidado para exercer as funções de consultor junto ao Instituto, tomei a decisão de me ligar formalmente à Ordem Otani como monge. Meu aprendizado ritualístico ficou a cargo de Otani Sensei, que instruiu também minha esposa Yvonete que tomara a decisão de receber o Kikyôshiki (Iniciação leiga ao Budismo Shin). Tendo sido convidado para ir ao Japão em julho de 1981, recebi a ordenação regular como monge da Ordem Otani de Budismo Shin no Templo Central da Ordem em Kyoto. Desde então, assumi as funções de pesquisador do Instituto, onde, até o momento presente, tenho desenvolvido as seguintes atividades:

 

  1. Pesquisas sobre o Budismo, sua história e doutrina, e elaboração de comunicações acadêmicas sobre o Budismo Shin apresentadas em congressos e simpósios, dentro e fora do país.
  2. Traduções de Textos Sagrados, livros de divulgação e palestras dos Mestres japoneses da Ordem, apresentadas em congressos e convenções de devotos no Brasil, no Japão e nos Estados Unidos.
  3. Realização de cursos de Introdução ao Budismo em português, na sede da Missão em São Paulo.
  4. Preparação de elementos, descendentes de japoneses ou não, interessados em receber no Japão a formação básica como monges da Ordem Otani. Até o presente momento já enviamos ao Japão três brasileiros não descendentes de japoneses, dois dos quais prosseguem atuando na Ordem como missionários, o Rev. Bronzeri e o Rev. Neves.
  5. Participação em cursos e seminários internos para os membros do Instituto, visando o aperfeiçoamento da atividade missionária e a preparação de publicações e atividades educativas para os fiéis e o público em geral.

 

Em 1984 fui convidado, juntamente com o Dr. Murillo Nunes de Azevedo, missionário do Nishi Hongwanji, para representar o Budismo Brasileiro no 1º Congresso Internacional de Budismo e Culturas Nacionais realizado na Índia por iniciativa da então Primeira Ministra, Sra. Indira Gandhi, poucas semanas antes de seu trágico falecimento. Yvonete e eu tivemos assim ocasião de visitar a terra natal do Budismo, representando a Missão Sul-Americana da Ordem Otani. O Congresso foi uma preciosa oportunidade para divulgar as atividades do Instituto e estabelecer contactos com líderes espirituais e pesquisadores acadêmicos de várias nacionalidades e linhagens budistas.

Em 1985 submeti minha produção acadêmica no campo do Budismo à apreciação de uma comissão de professores da Universidade Otani de Kyoto, principal instituição de ensino superior de nossa Ordem, que me julgou apto para receber o grau de Kyôshi (Mestre) de nossa Ordem, normalmente concedido aos que se submetem ao processo regular de formação de monges no Japão, cursando a Universidade ou o Seminário Menor – Senshûgakuin. Recebi também a patente de Kaikyôshi (Missionário) que me permite, desde então, atuar em condições de perfeita igualdade com meus colegas japoneses. Na mesma ocasião minha esposa Yvonete recebeu a ordenação monástica – tokudo – em nosso Templo Central.

Finalmente, cabe-me dizer que a partir da comemoração do Cinqüentenário da Missão em 2002 começa para mim uma nova fase de trabalho, marcada por uma forte ênfase no diálogo inter-religioso e no intercâmbio com comunidades budistas de origem não japonesa (chinesa, tibetana, coreana, etc.) cuja presença no Brasil vem se tornando cada vez mais marcante. Acredito que meu trabalho há de se constituir num contributo válido para o processo de implantação do Budismo em geral, e da Doutrina do Mestre Shinran, em particular, no Ocidente e no Brasil. Cabe-me ainda deixar registrado meu profundo agradecimento a todos os queridos Irmãos Missionários da Missão Sul-Americana que generosamente me acolheram no seio da mesma, o que me permitiu realizar meu sonho de poder trabalhar pela propagação do Dharma Búdico no Brasil, e também me propiciou condições para fazer no Departamento de História da Universidade de São Paulo, uma carreira de docente e pesquisador especializado na História do Budismo, concedendo-me a oportunidade de fazer freqüentes viagens de estudo ao Japão.