Uma Montanha Chamada Samsara

O homem está fadado a vagar pelo ciclo de renascimento e morte por um sem fim de eras a menos que vá de encontro à natureza de sua mente, que se livre do sofrimento e busque a felicidade definitiva. Como sabemos o nome deste ciclo é SAMSARA, ao qual todos os seres sencientes vertem e revertem ao longo de suas milhares de vidas.Mas podemos ver o samsara como uma grande e alta montanha, no pé da qual iniciamos nossa escalada meio sem rumo e sem direção, às vezes, descendo em vez de subir ou andando para os lados. A montanha é tão grande que podemos caminhar meses ou anos para uma mesma direção sem nunca chegarmos ao ponto de nossa partida. Seu cume é tão alto que o ar se extingue em suas dependências e a vista se perde muito antes de se chegar ao pico, onde nem mesmo as mais altas nuvens conseguem resistir a perenidade.

Seu interior maciço e denso jamais nos deixa perfurá-la. Tuneis são impossíveis de serem construídos e chegar ao outro lado pelo seu âmago significa passar por existências de mais sofrimento: são os reinos inferiores. Dentro da montanha vemos os animais no seu ciclo de sobrevivência da lei do mais forte, presos aos próprios instintos incapazes de determinarem sua prática, preocupando-se com a própria sorte. Devem se manter vivos.

Mais ao fundo da montanha, o alimento abunda mas a fome reina e os gritos de dor e abstinação ecoam pelo território dos fantasmas famintos, com suas gargantas ardendo em chamas ignidas pela presença do alimento em suas bocas. Mas a dor faz parte de suas vidas e sua conformação não lhes dá opção além daquela de lutar e guardar todo os alimentos possíveis e ficar tentando sorver ao menos gramas de migalhas incandecentes para aliviar os gemidos constantes de seus estômagos.

Nas profundezas desta fortaleza de minério encontra-se o mais baixo dos níveis, onde Ksitigharba desejou renascer para libertar os seres demoníacos que alí habitam num longa estada de dor física e lamentações. Seres na quantidade da poeira existente nos bilhões de universos que anseiam por dalí saírem o mais rápido possível, mas este egoísmo e esta angústia os prendem mais e mais ao inferno de suas emoções.

Imagina-se que chegar ao cume por cima seria uma grande chance de se libertar deste ciclo incasável, mas os devas não se importam com isto, muito menos os asuras já que têm tanto êxtase e tanto com o que se deleitar. Os deuses e semi-deuses estão em seu espaço sem forma permeando a atmosfera da montanha mas sem nunca alcançá-la, sem tocá-la, sem mesmo percebê-la. Que chance magnífica desperdiçam.

Escalar o samsara é feito somente para os humanos. Chegar ao topo desta montanha estrondosa por suas encostas é uma tarefa para os humanos, tão poucos como os grãos de areia debaixo de um única unha. Os humanos do Suha, nosso mundo, o mundo onde Sakyamuni renasceu e vem guiando milhões de discípulos.

A escalada é feita durante vidas e vidas. Uns caem dentro da montanha indo parar nos reinos inferiores outros dela saem para a luz do dia, mas os caminhos são diversos, entretando, tortuosos e cobertos de pedras, pedregulhos, grandes rochas.

Para quem está no pé, olhando para cima, vê-se várias opções de subida pelas encostas. Caminhos que parecem mais fáceis, outros que demandam mais técnicas. Alguns mais curtos a primeira vista, outros mais longos quando analisados do ponto mais baixo. Contudo, é o pico que eles almejam e para lá todos convergem. Para a Luz que emana do ponto mais alto e que parece impossível de se alcançar, para a Luz que ascende ao infinito do Universo e irradia pelo céu da manhã. É para lá que os caminhos levam.

Vê-se que estes se adaptaram e muitos humanos se adaptaram a eles, mas todos levam suas mochilas nas costas sem excessão. Presas ao corpo como se desse fizesse parte, como se desse nunca se separasse. Umas mais cheias, outras rasas. Para cada ação boa, os escalantes retiram uma pedra de sua mochila, a deixando leve e fazendo sua escalada mais fácil e mais simples. Para cada ação prejudicial a si próprio e aos outros, os humanos as colocam novamente nas suas mochilas. As pedras são proporcionais ao impacto de suas ações, um pedregulho ou uma grande rocha. De vez em quando a mochila pesa demais e um buraco se rompe no solo onde se pisa e faz com que o humano caia dentro da montanha, caia para os reinos inferiores. Mas, como dissemos, a mochila pode ficar muito leve fazendo com que em humanos e outros seres inferiores se transformem saindo deste buracos para continuar a jornada montanha acima. Pedras colocadas, pedras retiradas, por vidas e vidas, esta é a Lei do Karma.

De repente, vemos uma pessoa com a mochila vazia que aproveita o instante e corre, corre com todas as suas forças. Lá vai um Mestre, rumo ao topo. Desvia-se das rochas, sente o caminho, encontra atalhos. Vê as pegadas de outros que o antecederam, poucos acham estas pegadas, gastas pelo tempo, escondidas pelo ego.

Lá vai um Mestre. Há poucos destes, um a cada muito tempo. Vários o tentam imitar, largam as mochilas, achando que se livrarão das pedras. Ledo engano. Se perdem, acham barreiras de pedras e não tem onde colocá-las, não tem como se livrarem delas. Voltam ao ponto de partida e colocam uma nova mochila nas costas. Tudo de novo.

Lá vem um Mestre. Ele chegou ao topo, encontrou a Luz, viu a Verdade. Viu a si próprio e encontrou com aqueles que decidiram serem guias, serem uma bússola para os que tentam subir e os que tentam emergir de dentro da montanha. São exemplos. Alguns decidem ficar ali observando os que sobem, outros movidos pela sua bondade e compaixão exacerbadas decidem descer novamente e começar tudo de novo. Mas a Luz é internalizada e nada é esquecido. A realidade passa a ser pura e o instante, infinito. Ele ganha uma mochila diferente, uma que tritura as pedras que ali são colocadas e eliminam seu cascalho em forma de pó de diamante. Ele volta para ensinar aos que sobem os melhores caminhos, para apontar onde há menos pedras, pois menos onde há menos ações negativas para serem pegas, mais chance de subir, em menos tempo. Caminhos mais limpos. Caminhos mais livres. Caminhos mais claros.

Os nomes destes caminhos limpos são vários, chamam-se a Rota dos Preceitos, a Encosta da Ética, a Trilha do Vinaya. Quanta pureza nestes caminhos. Os Mestres os conhecem bem e tentam mostrar isto para aqueles que escalam, tentam desenhar o mapa, mostrar a trilha. Mas, caminhos são caminhos, e alguns acham que onde há mais pedras há mais segurança, há no que se agarrar e uma mochila mais pesada pode mostrar mais superioridade. “Eu tenho mais pedras do que você!”, exclamam alguns, mas o Mestre está ali, ouve e fica contente. Mais gente para ajudar.

Há Mestres em todos os caminhos. Eles os conhecem, eles os desenham e cabem a nós seguí-los ou lançar-nos a nossa própria sorte. Eles já chegaram ao topo e querem nos auxiliar a trilhar os caminhos certos, a carregar menos pedras. Eles retiram sem que percebamos várias pedras de nossas mochilas e colocam na sua própria para serem trituradas e virarem pó para cobrir o caminho para os próximos. Preocupados que estamos em não pegarmos a saída errada, nem percebemos. Quanto egoísmo.

Eles nos ensinam a pegar as pedras nas mãos e as transformarem em diamantes que de tão puros somem no ar. Menos pedras, menos obstáculos. O topo se aproxima. Poucos humanos por perto, um aqui outro ali. Muitos desitiram e voltaram. Poucos no topo chegaram ou chegarão. Cansa, desanima, a ilusào da realidade engana. “Para que subir?”, pensam uns, “para que me cansar?”, indagam outros. É o samsara. É a ilusão. A planície no pé da montanha é linda, mas é ilusória. Não existe…

Mas os Mestre povoam a montanha. Compaixão! Paciência! Perseverança! Mais caminhos, mais andarilhos, parecem não mais acabar.

Os caminhos começam com um único passo. Subdividem-se. Dezenas aparecem. Mas no fim, lá perto do topo todos se unem sem excessão numa solitária trilha onde não há mais nenhuma pedra, areia ou impureza, uma trilha vazia, chamada o Caminho do Boddhisatva, onde os Mestres passaram e juraram não mais ao topo voltar até terem carregado o último ser montanha acima.