PENSAMENTO BUDISTA MEDIEVAL

PENSAMENTO BUDISTA MEDIEVAL

Uma breve consideração sobre o pensamento budista medieval- centrado na obra de Shinram.

Rev. Joaquim Antônio Bernardes Carneiro Monteiro.

( Mestre e Doutor em filosofia budista pela Universidade de Komazawa, Tóquio, Japão )

 

RESUMO: O presente artigo possui dois objetivos fundamentais. O primeiro deles consiste em problematizar a relação existente entre a moderna filosofia japonesa e o pensamento do Japão medieval. O segundo consiste em desenvolver algumas considerações a respeito do pensamento budista na idade média japonesa. A análise do pensamento medieval japonês será centrada no pensamento de Shinram ( 1173-1262 ), fundador da Verdadeira escola da Terra Pura ( Jodo Shinshu ) e um dos mais representativos pensadores da idade média japonesa. A análise desenvolvida em relação ao pensamento de Shinram será baseada aqui em dois pressupostos: uma consciência metodológica da descontinuidade histórica existente entre o pensamento medieval e o contemporâneo e uma postura que busca situar Shinram em seu contraste com a história da filosofia ocidental.

 

PALAVRAS-CHAVE: pensamento budista medieval, filosofia japonesa, Shinram.

 

ABSTRACT: The present article has two main objectives. The first one consists in problematizing the relationship between modern japanese philosophy and the thought of medieval Japan. The second one consists in the development of several considerations regarding Buddhist thought in japanese middle ages. The analysis of japanese medieval thought will be centered in the thought of Shinram ( 1173-1262 ), founder of the True Pure Land School and one of the most representative thinkers of japanese middle ages. This analysis of Shinrams thought wil be grounded into two pressupositions: a methodological consciousness of the historical discontinuity between medieval and contemporary thought and a posture that seeks to situate Shinram in its contrast to the history of Western philosophy.

 

KEY WORDS: middle ages Buddhist thought, japanese philosophy, Shinram.

 

1) Considerações introdutórias.

O presente artigo possui dois objetivos fundamentais. O primeiro deles consiste em considerar a correlação existente entre a moderna filosofia japonesa e o pensamento medieval japonês, o segundo consiste em desenvolver algumas considerações sobre o pensamento budista na idade média japonesa. A análise aqui desenvolvida será centrada no pensamento de Shinram ( 1173-1262 ), fundador da Verdadeira escola da Terra Pura ( Jodo Shinshu ) e um dos mais representativos pensadores da idade média japonesa.

Como o termo “filosofia japonesa” aqui empregado pode causar alguma estranheza em um público brasileiro sem familiaridade com sua história ou com suas temáticas parece-me necessário desenvolver aqui algumas considerações que permitam ao mesmo tempo precisar seu sentido e situa-lo em relação à problemática de um pensamento medieval japonês. Existem diversas acepções do termo “filosofia japonesa” no contexto dos estudos acadêmicos do pensamento japonês, mas a abordagem do presente artigo será restrita às três acepções seguintes:

. Os estudos da filosofia ocidental desenvolvidos por pesquisadores acadêmicos japoneses.

. O pensamento tradicional japonês budista e confuciano conforme formulado anteriormente à introdução do pensamento ocidental.

. Uma forma de investigação que emprega métodos e temáticas de origem ocidental, mas que pode ser aplicada ao pensamento tradicional japonês. ( 1 )

A primeira acepção do termo “filosofia japonesa” aqui empregada nada tem de problemática caso levemos em consideração a existência factual de uma longa tradição de estudos e exegese da filosofia ocidental no Japão moderno. A segunda acepção, que implica no reconhecimento de uma tradição secular de estudo e reflexão sobre a literatura budista e confuciana suscita necessariamente duas interrogações fundamentais:

. Em que sentido esse pensamento pode ser considerado como uma filosofia ou como pertencente à história do pensamento japonês?

. Qual é a relação desse pensamento com a filosofia japonesa contemporânea?

É precisamente no contexto dessas duas interrogações que se torna possível problematizar a terceira acepção do termo “filosofia japonesa”. Parece-me que a assim chamada “escola de Quioto” representada principalmente por autores como Kitaro Nishida ( 1870-1945 ), Hajime Tanabe ( 1885-1962 ) e Keiji Nishitani (1900-1990 ) se constituiu na tendência dominante desta última acepção do termo “filosofia japonesa” merecendo assim uma atenção especial em relação à temática do presente artigo. ( 2 ) A razão principal disso é que essa escola ao mesmo tempo em que se constituiu essencialmente em uma leitura especificamente japonesa da filosofia ocidental foi fortemente influenciada em suas formulações pelo pensamento tradicional e desenvolveu uma tradição pioneira de estudos filosóficos do pensamento budista na idade média japonesa. Os estudos desenvolvidos nessa área por autores como Tetsuro Watsuji, Hajime Tanabe, Yoshinori Takeuchi e Kyoshi Miki atestam para a existência dessa tendência. ( 3 ) Em função das considerações acima, torna-se possível considerar pela primeira vez não só a continuidade da influência como também a existência de um processo de reformulação do pensamento tradicional no contexto da moderna filosofia japonesa. No entanto, mesmo reconhecendo a existência de uma continuidade da influência e de uma reformulação do pensamento tradicional no contexto da filosofia japonesa moderna e contemporânea impõe-se aqui a seguinte questão: terão essas reformulações compreendido corretamente ou esgotado a força e as possibilidades do pensamento tradicional no que diz respeito ao seu conteúdo teórico ou ao seu potencial crítico em relação à realidade sócio-histórica? Não tenho evidentemente nenhuma pretensão de responder de forma conclusiva a uma questão tão complexa como esta no contexto de um breve artigo, mas parece-me que é precisamente a partir dessa formulação que se torna possível compreender e situar corretamente a importância do estudo do pensamento medieval para a avaliação das possibilidades da filosofia japonesa no mundo contemporâneo.

Parece-me que uma tentativa de pensar a atual filosofia japonesa que não inclua uma consideração sobre suas raízes ou sobre suas diferenças com o pensamento tradicional é pelo menos tão problemática quanto uma tentativa de compreensão da filosofia ocidental moderna que ignore por completo suas raízes no pensamento antigo e medieval. Ao mesmo tempo, é minha convicção pessoal que a moderna filosofia japonesa já conseguiu definir a especificidade de sua abordagem e de suas temáticas a um ponto que permite pensar aquilo que é próprio do pensamento medieval através do forte contraste existente entre elas. ( ou seja, através do intenso contraste existente entre a moderna filosofia japonesa e o pensamento medieval )

Esclarecido o acima, vou proceder então a algumas considerações introdutórias referentes ao pensamento de Shinram. Como é geralmente sabido no contexto dos estudos do pensamento japonês, Shinram compartilha com Doguen ( 1200-1253 ), fundador da escola Soto do Zen japonês a posição única não só de um dos mais representativos pensadores da idade média japonesa como também de um dos mais fortes candidatos à avaliação como um pensador genuinamente filosófico no Japão tradicional. Assim sendo, vou procurar desenvolver aqui uma breve consideração referente ao caráter essencial de seu pensamento. Essa consideração será então desenvolvida através dos dois itens seguintes. O primeiro item, que me parece indispensável para situar o caráter essencial de seu pensamento consiste em manter uma profunda consciência metodológica da descontinuidade histórica existente entre seu pensamento, o moderno pensamento japonês e a perspectiva contemporânea de um modo geral. Existe no Japão moderno e contemporâneo uma forte tendência a ver em Shinram um precursor das dimensões críticas e libertadoras do pensamento moderno, mas é preciso situar concretamente essa tendência em relação à uma rigorosa delimitação de seu pensamento no interior do contexto medieval.

Como um exemplo concreto dessa tendência é comum entre os pensadores japoneses contemporâneos uma compreensão de Shinram como um precursor da desmitologização existencial dos discursos religiosos. ( 4 ) Em relação a essa visão é perfeitamente correto dizer que Shinram procedeu em sua obra a uma intensa tradução conceitual de concepções fortemente mitológicas como o “ir-nascer” na Terra Pura do Buda Amitabha referendando-as à compreensão da condição humana presente como um círculo vicioso impulsionado pela ignorância e marcado pelo sofrimento. ( 5 ) Existe no entanto, uma ressalva importante no que diz respeito a esse processo de tradução conceitual de concepções mitológicas: o pensamento de Shinram não pressupõe nenhum confronto com a visão de mundo científica ou com as demais dimensões da “modernidade cultural”.

Assim sendo, a desmitologização das concepções religiosas em sua obra está perfeitamente delimitada como um processo de autocrítica no interior das premissas do pensamento medieval. Um outro aspecto dessa tendência é a visão de Shinram como um precursor da crítica social radical e dos movimentos de libertação social característicos da modernidade defendida por pensadores da esquerda japonesa. ( 6 ) É perfeitamente correto ver em Shinram um critico do sistema imperial japonês cujo pensamento influenciou fortemente os movimentos de libertação camponeses no Japão medieval. No entanto, existe aqui também uma importante ressalva: o radicalismo de seu pensamento se exerce no interior das premissas da visão de mundo medieval não podendo ser identificado com modalidades modernas do pensamento radical.

Evidentemente, quando me refiro aqui à necessidade de definir claramente a descontinuidade histórica existente entre o pensamento de Shinram e a perspectiva contemporânea assim como de delimitar claramente seu pensamento em relação ao universo conceitual da idade média não estou pressupondo em lugar algum uma superioridade da perspectiva contemporânea. Muito pelo contrário, acredito que é só em função de uma clara demarcação de seu caráter e de sua grandeza como um pensador autenticamente medieval que podemos nos deixar impactar pelo caráter radical de sua mensagem.

O segundo item consiste em uma tentativa de situar concretamente o pensamento de Shinram no contexto da história do pensamento. Parece-me perfeitamente possível situa-lo tanto em relação à história do pensamento budista quanto em seu contraste com a história do pensamento ocidental. No entanto, como a maior parte do público leitor de língua portuguesa não está familiarizado com a história ou com as premissas do pensamento budista, prefiro optar aqui pela segunda alternativa. Assim sendo, mesmo sem possuir nenhuma pretensão de esgotar toda a enorme multiplicidade de definições da filosofia na história do pensamento ocidental vou limitar minha análise às quatro alternativas abaixo:

. Pensada em suas linhas genéricas a filosofia grega é marcada por um lado pela inexistência da noção de um sujeito pensante e por outro por uma forte convicção na existência de um Logos imanente no cosmos ou na natureza. Esse pensamento incluía preocupações tanto de caráter científico quanto de ordem espiritual ou religiosa. Essa bifurcação de preocupações se mostra especialmente presente na tradição platônica. De fato, a tendência a ver no corpus platônico quase o equivalente de uma revelação de uma verdade religiosa, assim como a visão da filosofia como um caminho espiritual em Plotino aponta fortemente para o caráter radical dessa bifurcação. ( 7 )

. Supondo a existência de uma filosofia cristã parece-me claro que ela pressupõe as categorias da filosofia grega em seu processo de articulação da verdade da revelação. Uma das formulações mais clássicas dessa temática consiste na visão agostiniana da vontade. Para Agostinho, é a vontade que opta pela verdade da revelação que permite que esta última ilumine o intelecto e o conduza à plenitude de suas possibilidades. Ou seja, a articulação da verdade da revelação através das categorias da filosofia grega pressupõe no essencial esse ato de vontade.

. A filosofia moderna inaugurada por R.Descartes introduz um elemento completamente novo através de sua tentativa de auto-fundamentação da razão na auto-evidência do cogito. Não se trata aqui de articular racionalmente os dados de um Logos cósmico ou da revelação, mas da auto-fundamentação da razão através da subjetividade do cogito.

. A filosofia neopositivista inaugurada pelo círculo de Viena se baseia em uma auto-,compreensão da filosofia que pressupõe as ciências naturais e que delimita sua tarefa como se constituindo na análise da linguagem das ciências. Nessa modalidade de auto-compreensão da filosofia o próprio cogito cartesiano é completamente dispensado juntamente com as concepções de um logos cósmico ou de uma revelação divina.

Parece-me possível situar o pensamento de Shinram em seu contraste com as visões da filosofia acima enumeradas através dos três itens seguintes:

. Na medida em que se fundamenta em uma reflexão sobre o ensinamento de Buda que não pressupõe nem uma auto-fundamentação da razão através da subjetividade do cogito nem os resultados das ciências naturais, o pensamento de Shinram não possui nenhum ponto de contato com as perspectivas cartesianas ou neopositivistas.

. Existem fortes pontos de contato entre Shinram e a perspectiva da filosofia cristã representada por Agostinho. Isso se deve no essencial a uma fundamentação externalista da verdade que pressupõe a transmissão do ensinamento de Buda como a base de sua reflexão. (essa fundamentação externalista se assemelha no essencial com o conceito de revelação na medida em que não pressupõe a subjetividade humana como o fundamento da verdade) No entanto, existem aqui duas diferenças decisivas entre as perspectivas de Shinram e Agostinho: em função de seu caráter ateísta o pensamento de Shinram não admite a possibilidade da revelação divina e na medida em que o ensinamento de Buda dirige-se à consciência discriminativa e não à vontade existe aí um claro contraste com o voluntarismo agostiniano.

. Talvez não seja um equívoco ver a tendência espiritualizante e religiosa do platonismo representada pelo pensamento de Plotino como sendo a perspectiva mais próxima do pensamento de Shinram na história do pensamento ocidental. No entanto, mesmo aqui existem duas diferenças decisivas: a fundamentação do pensamento de Shinram nos conceitos budistas do ãnatman ( negação do ãtman ) e da “originação dependente” conflita no essencial com a metafísica substancialista e a teoria da emanação presentes no pensamento de Plotino, e o caráter essencialmente histórico do pensamento de Shinram, assim como sua crítica ao pensamento hegemônico de sua época contrasta fortemente com o caráter a-histórico e a relativa indiferença social do pensamento de Plotino.

Em função das considerações acima me parece impossível identificar o pensamento de Shinram com qualquer definição da filosofia presente na história do pensamento ocidental, mas que é perfeitamente possível ao mesmo tempo situa-lo em função de seu contraste essencial com essas definições. A meu ver, a estrutura básica do pensamento de Shinram pode ser definida em função da tensão existente entre o presente e o futuro no interior da “temporalidade da causalidade do ir-nascer na Terra Pura”, de sua visão da condição humana como um círculo vicioso impulsionado pela ignorância, por sua compreensão da historicidade e por fim pela crítica aos pensamentos hegemônicos de sua época.

 

2) A temporalidade do “ir-nascer” na Terra Pura e a compreensão da condição humana no pensamento de Shinram.

A estrutura básica do pensamento de Shinram pressupõe um forte contraste entre uma compreensão da condição humana como um círculo vicioso impulsionado pela ignorância e marcado pelo ódio e pela cobiça e uma reversão radical dessa condição através da “causalidade do ir-nascer”, ou seja; através de uma compreensão da temporalidade marcada por uma forte tensão entre o presente e o futuro. No que diz respeito a essa sua compreensão da condição humana ela é marcada por uma radicalização da compreensão budista tradicional do Sansara ou “devir cíclico”. Ou seja, de acordo com a compreensão de Shinram esse “devir cíclico” impulsionado pela ignorância que se estende desde um passado imemorial é marcado por uma contradição essencial: se por um lado o fluxo de dharmas mentais que o constitui não traz em si nenhum fator capaz de conduzi-lo por si mesmo à ruptura com o “devir cíclico” por outro lado a condição humana é compreendida como a única condição cuja relativa clareza mental possibilita o ouvir e a reflexão sobre o ensinamento de Buda. E é essa clareza mental que torna possível o estabelecimento na “condição presente sem retrocesso” que se constitui na causa da “causalidade do ir-nascer”. A estrutura básica dessa “causalidade do ir-nascer” é elucidada da seguinte maneira na passagem inicial de sua obra “Coletânea de passagens referentes ao ir-nascer de acordo com os três Sutras” ( Jodo sankyo Ojo Monrui ):

“ Ao ir-nascer de acordo com o “Grande Sutra”, ao Voto Original da opção do Tathagatha, ao inconcebível Oceano do Voto chamamos de “Outro-poder”. Ou seja: em função da causa proporcionada pelo Voto do ir-nascer através do Nembutsu realiza-se o fruto da infalível realização da extinção. Estabelecendo-se no estado corretamente assegurado na existência presente, alcança certamente a Terra da Verdadeira fruição. Como isso se deve à verdadeira causa proporcionada pelo direcionamento para o ir-nascer derivada do Tathagatha Amitabha conduz à abertura da Iluminação do Supremo Nirvana. A isso chamamos de essência do “Grande Sutra”. Assim sendo, é intitulado o ir-nascer de acordo com o “Grande Sutra”, ou ainda de “ir-nascer difícil de ser concebido’.” ( 8 )

A estrutura dessa temporalidade da “causalidade do ir-nascer” na Terra Pura implica em uma forte tensão entre o “estabelecimento na condição sem retrocesso na existência presente” ( causa ) e a realização do “Grande Nirvana” ( fruto ) no instante da morte. Essa causalidade é estruturada em função dos “quatro dharmas” do ensinamento, prática, mente-da-fé e realização. O ensinamento pode ser compreendido como o “Grande Sutra da vida imensurável”, mas seu conteúdo consiste no conjunto de causas e condições que correlaciona o nascimento na condição humana ao surgimento do Buda Sáquia-Muni no mundo, a prática consiste na transmissão desse ensinamento através dos sete Patriarcas dos três países ( Índia, China, Japão ), a mente-da-fé consiste no estabelecimento na condição sem retrocesso que se dá em função do ouvir e da reflexão sobre este ensinamento e a realização implica no Supremo Nirvana atingido no instante da morte. No entanto, a mente-da-fé e a realização são os dois termos centrais para a compreensão da “causalidade do ir-nascer” conforme esclarecida no presente artigo. No estabelecimento na condição sem retrocesso na existência presente surge pela primeira vez no fluxo de consciência um instante da sabedoria supramundana que embora não elimine a ignorância produz um infalível direcionamento para a realização do Supremo Nirvana. O caráter radical dessa ruptura pode ser indicado através das seguintes palavras da “Coletânea de passagens referentes ao verdadeiro ensinamento, prática e realização da Terra Pura” ( Kyogyoshinshô ), que se constitui na obra central de Shinram:

“ A ruptura significa que em função do direcionamento da mente indivisa em seu aspecto do ir-nascer não existe mais um nascimento a ser recebido, que não existe mais nenhum caminho da transmigração a ser repetido. Como está extinta a causa e eliminada a retribuição nos seis caminhos da transmigração e nas quatro modalidades do nascimento está cortada definitivamente a relação com o nascimento e morte nos três mundos. Assim sendo, se intitula a ruptura. Os quatro influxos significam as quatro correntezas violentas ( correntezas do desejo, da existência, da visão falsa e da ignorância ), ou ainda o nascimento, doença, velhice e morte.” ( 9 )

Se a causa compreendida no interior desse conceito da “causalidade do ir-nascer” implica em uma ruptura decisiva e radical com o círculo vicioso da condição humana seu fruto entendido como a “Grande Realização” é descrito da seguinte forma no quarto Capítulo da mesma obra:

“ Ao refletir reverentemente constato que a verdadeira realização consiste na prodigiosa condição da plenitude do benefício ao outro e no fruto extremo do Supremo Nirvana. Ela surge em função do Voto da infalível realização da extinção, que ainda se chama o Voto da infalível obtenção do Nirvana. No entanto, os ignorantes atormentados pelas paixões e as multidões de seres sencientes afligidas pelo pecado do nascimento e morte penetram na condição corretamente assegurada no Grande Veículo ao realizarem a mente da prática em seu aspecto do ir-nascer. Como estão estabelecidos na condição corretamente assegurada realizam infalivelmente a extinção. A infalível realização da extinção consiste na alegria permanente, a alegria permanente é a Suprema extinção, a extinção é o Supremo Nirvana, o Supremo Nirvana é o corpo incondicionado do dharma, o corpo incondicionado do dharma é o verdadeiro aspecto, o verdadeiro aspecto é a natureza do dharma, a natureza do dharma é a essência da verdade, a essência da verdade é o não-dual. No entanto, o Tathagatha Amitabha surge a partir da verdade manifestando seus diversos corpos da retribuição e da correspondência.” ( 10 )

A “Grande Realização” conforme compreendida no pensamento de Shinram implica essencialmente na perfeição da sabedoria e na extinção da ignorância, do ódio e da cobiça e não em uma continuidade temporal para além da morte. Nesse sentido, a estrutura básica da temporalidade da “causalidade do ir-nascer” em Shinram implica em uma forte tensão entre o presente estabelecimento na condição sem retrocesso e a futura realização da extinção. ( 11 ) É essa tensão entre o presente e o futuro que possibilita o processo de contínua ruptura com o ódio e com a cobiça, processo esse fundamentado em uma consciência cada vez mais profunda da ignorância característica da condição humana. E é essa mesma tensão entre o presente e o futuro que abre caminho para uma relação tensa com a historicidade concreta expressa na visão da história e na crítica aos pensamentos hegemônicos da época.

 

3) A concepção da história e a crítica do pensamento em Shinram

Para esclarecer o sentido da concepção da história no pensamento de Shinram se faz necessário compreender a “visão da história das três épocas” que se constitui no arcabouço comum das diversas concepções da história na idade média japonesa. Ou seja, o sentido da compreensão da história e da crítica do pensamento em Shinram só pode ser esclarecido através do contraste com essa “visão da história das três épocas”. Em linhas gerais é possível descrever essa visão da história através dos três itens seguintes:

. Essa visão da história é geralmente entendida como uma visão pessimista da gradual decadência do Budismo. Ou seja, em um primeiro período dessa história existiriam tanto o ensinamento de Sáquia-Muni quanto sua prática e realização. Em um segundo período permaneceriam o ensinamento e sua prática, mas a realização se tornaria cada vez mais rara e em um último período só restaria o ensinamento estando completamente extintas sua prática e realização.

. No que se refere à relação entre a crise da sociedade medieval e a dimensão soteriológica do Budismo essa visão se tornou a expressão de uma busca pela possibilidade da libertação em uma época em que sua realização era fortemente posta em dúvida. Nesse contexto, o Budismo da Terra Pura era visto frequentemente não como a verdadeira mensagem do Buda Sáquia-Muni, mas como um “meio-expediente” capaz de conduzir à libertação em uma era de decadência. Pelo menos era esta a visão do Budismo da Terra Pura defendida pelas escolas hegemônicas do Budismo na época.

. É desnecessário dizer que essa visão da história também se constituiu no pressuposto central da compreensão da crise atravessada pela sociedade medieval. Desde as catástrofes naturais e o processo que conduziu à hegemonia política do Bakufu de Kamakura sobre a realeza e a aristocracia até a invasão mongol tudo era pensado em função dessa pano de fundo proporcionado pela “visão histórica das três épocas”.

Assim sendo, partindo do pressuposto de que essa “visão da história das três épocas” se constituía no pano de fundo da consciência histórica e da compreensão da crise histórica e religiosa atravessada pela sociedade japonesa da época torna-se possível pela primeira vez compreender a perspectiva própria ao pensamento de Shinram. No sexto e último Capítulo da “Coletânea de passagens referentes ao verdadeiro ensinamento, prática e realização da Terra Pura” Shinram expressa sua posição da seguinte forma:

“ Devemos saber verdadeiramente que os ensinamentos do Caminho dos Sábios se aplicam aos períodos da presença de Sáquia-Muni neste mundo e do dharma correto, não dizendo respeito à época e aos praticantes dos períodos da imagem do dharma, do fim do dharma e da extinção do dharma. Eles já perderam sua época e voltaram as costas para os praticantes. O Verdadeiro ensinamento da Terra Pura conduz compassiva e igualmente à salvação de todos os seres sencientes durante os períodos da presença de Sáquia-Muni neste mundo, do dharma correto, da imagem, do fim e da extinção do dharma.” ( 12 )

Se analisarmos atentamente essa passagem se torna possível perceber que sua primeira parte parece sugerir uma visão pessimista da decadência na medida em que aponta para uma decadência irreversível do “Caminho dos Sábios”, ou seja; do Budismo hegemônico na época. No entanto, a parte posterior dessa mesma passagem inverte completamente esse juízo: a escola da Terra Pura é vista aqui como o verdadeiro ensinamento que atravessa inalterado toda a história do Budismo. Assim sendo, a temporalidade histórica representada pela “época do fim do dharma” passa a ser compreendida não como um momento de decadência mas como o instante histórico que estabelece a distinção entre o verdadeiro ( a escola da Terra Pura ) e o expediente ( o Caminho dos Sábios ). Uma estrutura semelhante pode ser discernida na crítica desenvolvida por Shinram em relação aos deuses da religião nacional japonesa na parte final do mesmo Capítulo:

“ Se fundamentados nos Sutras estabelecermos a distinção entre o verdadeiro e o falso advertindo a respeito dos falsos ensinamentos dos caminhos externos:

No “Sutra do Nirvana” se afirma: “Ao tomarmos refúgio no Buda permaneceremos até o fim sem tomar refúgio nos demais deuses.” “ ( 13 )

Existem dois pontos essenciais a serem ressaltados aqui: a tensão existente entre o presente e o futuro na “causalidade do ir-nascer” se concretiza aqui como o instante histórico da decisão entre o verdadeiro e o falso e essa decisão implica por sua vez em uma crítica radical aos pensamentos hegemônicos da época que legitimavam as relações de dominação e exploração inerentes à sociedade feudal. Não deve ser motivo de espanto que a religião de Shinram tenha sido objeto de uma feroz repressão e que tenha se tornado uma forte inspiração para as revoltas camponesas na idade média japonesa. Esse caráter radical da crítica social em Shinram pode ser considerado através da seguinte passagem da “Coletânea de passagens referentes ao Verdadeiro ensinamento, prática e realização da Terra Pura”:

“ Quando paro para refletir percebo que a prática e a realização dos ensinamentos do Caminho dos Sábios já estão há muito tempo em extinção e que o caminho da realização da Verdadeira essência da Terra Pura prospera presentemente.

No entanto, aqueles que pertencem ao portal de Sáquia-Muni nos diversos templos tem obscurecida sua compreensão do ensinamento e desconhecem a distinção entre os portais verdadeiros e expedientes, os eruditos confucianos da capital iludidos a respeito da falsidade de suas práticas não conseguem discernir a respeito da falsidade ou correção de sua visão do caminho. Em conseqüência disso, os estudiosos do templo Kofuku apresentaram uma petição ao imperador Gotoba-in na segunda metade do segundo mês de 1207. ( adaptação ao calendário cristão, para melhor compreensão ) O imperador e seus ministros possuídos pela cólera e pelo ressentimento violaram o dharma e faltaram com os princípios. Em função disso, Genku, o Mestre do dharma fundador da verdadeira escola da Terra Pura e seus discípulos foram ou condenados à morte sem uma devida consideração de sua culpabilidade ou privados de sua ordenação monástica foram exilados para províncias distantes. Eu fui um deles. “ ( 14 )

Uma análise da passagem acima aponta a meu ver para dois pontos fundamentais. O primeiro implica em uma denúncia contundente da relação entre a religião dominante e o poder do estado, assim como do caráter arbitrário e violento de seus procedimentos. O segundo aponta para a forte possibilidade de que Shinram esvaziou no essencial o carisma do imperador ao compreende-lo em função de sua visão da ignorância inerente à própria condição humana. Nesse sentido, Shinram vê no imperador não só um governante arbitrário e violento como também um ignorante incapaz de tomar consciência de sua própria ignorância. Parece-me claro existir uma relação entre esse esvaziamento do carisma imperial e os movimentos de libertação camponeses: da negação dos privilégios à afirmação dos direitos é só um passo e existem momentos históricos em que esse passo pode ser dado rapidamente. ( 15 )

Ao refletir sobre o caráter radical dessa inserção histórica da “causalidade do ir-nascer” como elemento instaurador da decisão entre o verdadeiro e o falso não consigo evitar a forte sensação de que ela ainda pode sacudir violentamente nossa atual complacência com a mediocridade e a violência da sociedade neoliberal.

 

Notas.

1) Como um exemplo de uma discussão significativa dos vários sentidos atribuídos ao termo “filosofia japonesa” é possível consultar a discussão sobre a “escola de Quioto” no site da Stanford encyclopedia of philosophy , http://www.science.uva.nl/~seop/entries/kyoto-school/, Pág-42.

2) Para uma introdução à “escola de Quioto” centrada em suas figuras centrais e acessível em língua portuguesa, consultar, James W.Heisig, Filosofia como espiritualidade: o caminho da escola de Quioto, “Espiritualidade budista II- China mais recente, Coréia, Japão e mundo contemporâneo.”, Takeuchi Yoshinori ( org ) em associação com James W.Heisig, Paul L. Swanson e Joseph O Leary, Editora perspectiva, 2007, Págs-377,399.

3) Como exemplos de estudos representativos do pensamento de Shinram desenvolvidos pelos autores da “escola de Quioto” consultar, Yoshinori Takeuchi, “Kyogyoshinsho no tetsugaku”, ( A filosofia do Kyogyoshinsho, abaixo abreviado como “filosofia” ), 1941, reedição, 2002, Hôzokan, Hajime Tanabe, “Sanguedô toshite no tetsugaku”, ( A filosofia como metanoética ), 1946, reedição Shotô Hase, Tôeisha, 2000 e Kyoshi Miki, “Shinram”, reeditado por Akira Omine, Tôeisha, 1999.

4) Como um dos exemplos representativos dessa tendência no Japão do pós-guerra, consultar, Yoshinori Takeuchi, “Shinram to gendai”, ( Shinram e o mundo contemporâneo ), Chuôkoron shinshakan, Chukô shinsho 367, 1974.

5) A compreensão dos conceitos da Terra Pura do Buda Amitabha e do “ir-nascer” nessa Terra exige antes de tudo que eles sejam situados em relação à história do pensamento do Budismo Mahayana na Índia. Em linhas gerais, esses conceitos se constituem em uma das expressões da tendência mitológica e cosmológica do Budismo Mahayana desde suas origens, tendência esta que em contraste com a postura sóbria do Budismo clássico que reconhecia apenas o Buda histórico Sáquia-Muni encheu as “Dez direções do Universo” com uma multiplicidade de Budas e Bodhisatvas. As “Terras Puras” ( sânscrito: Buddhakshetra ou Sukkhavati ) se constituíam assim em puros domínios engendrados pelos dharmas supramundanos dos Budas e Bodhisatvas visando a libertação dos seres sencientes nas “Dez direções do Universo”. A noção do “ir-nascer” correlata a esse conceito implicava geralmente no nascimento nesses domínios após a morte dos seres sencientes que tivessem se dedicado às práticas prescritas para esse objetivo. A concepção do “ir-nascer” na Terra Pura do Buda Amitabha presente em Sutras do Mahayana primitivo como o Sukkhavativyuha e o Mahasukkhavativyuha desenvolveu-se a partir desse contexto, mas apresentava características próprias que a diferenciava do caráter geral dessa tendência. A primeira característica consistia no caráter indispensável da mediação com o ensinamento do Buda histórico no processo do “ir-nascer” que colocava sérios limites à tendência mitológica do Mahayana. A segunda, implicava no fato importante de que em contraste com a tendência dominante do Mahayana que encorajava o “ir-nascer” em qualquer uma das terras das dez direções, a Terra Pura de Amitabha implicava em um direcionamento para a região Oeste. Por fim, o “ir-nascer” na Terra Pura de Amitabha estava livre de quaisquer restrições associadas às diversas capacidades dos seres sencientes. Parece-me que Shinram radicalizou essas diferenças traduzindo em termos conceituais as diferenças existentes entre as mitologias do Buda Amitabha e dos “Budas das dez direções” e referendando essas concepções de caráter mitológico ao esclarecimento da condição humana na existência presente.

6) Como um dos exemplos representativos dessa tendência no Japão do pós-guerra, consultar, Goro Terao, “Akunin Shinram”, ( Shinram, o perverso ) Tokuma Shoten, 1972. Para uma avaliação crítica dessa tendência, consultar, Joaquim Monteiro, “Tennosei Bukkyo hihan”, ( Crítica ao Budismo imperial ), San-ichi Shobô, 1998, Págs-119, 145. ( abaixo, abreviado como “Crítica”. )

7) A respeito dessa tendência no pensamento de Plotino, consultar, Maria Luisa Gatti, Plotinus: the Platonic tradition and the foundation of neoplatonism, “The Cambridge companion to Plotinus”, edited by Lloyd P.Gerson, Cambridge University press, 1996, Págs-10, 37.

8) Shinshu Shogyo Zenshô, Vol.2, Shusôbu, Quioto, Ôyagui Kobundô, 1941. ( abaixo, abreviado como “Shinshu” ), Pág-551.

9) “Shinshu”, Pág-74.

10) Ibid,p.103.

11) A esse respeito, consultar,”Filosofia”, p.141-142.

12)”Shinshu”, p.166.

13) Ibid, p.175.

14) Ibid, p.201.

15) Para uma análise detalhada da crítica desenvolvida por Shinram ao sistema imperial japonês, consultar Joaquim Monteiro, “Critica”.

 

Referências bibliográficas

Hakamaia, Noriaki. “Honen to Myoe” ( Honen e Myoe ), Daizô Shupan, 1998.

Monteiro, Joaquim. “Tennôsei Bukkyo hihan” ( Crítica ao Budismo imperial ), San-ichi Shobô,1998.

Tanabe, Hajime. “Sanguedô toshite no tetsugaku” ( A filosofia como metanoética ), 1946,( reedição, editor Shotô Hase, Tôeisha, 2000 )

Takeuchi, Yoshinori. “Kyogyoshinshô no tetsugaku” ( A filosofia do Kyogyoshinshô ),1941( reedição,Hozôkan, 2002 )

“Shinram to gendai” ( Shinram e o mundo contemporâneo ), Chuôkoron shinshakan, chukô shinshô, 1974.