Causalidade do Ir-Nascer

O PENSAMENTO DE SHINRAN E A FILOSOFIA JAPONESA, CENTRADO NO CONCEITO DA “CAUSALIDADE DO IR-NASCER”

Joaquim Antônio Bernardes Carneiro Monteiro (1)

Resumo

O presente artigo possui dois objetivos fundamentais; o primeiro deles consiste em situar o pensamento de Shinran (1173-1262) em relação à história do pensamento e da filosofia japoneses, o segundo, consiste em esclarecer a estrutura da “causalidade do ir-nascer” conforme elucidada em obras de Shinran como o “Jodo sankyo ojô monrui” e o “Ken Jodo shinjitsu kyogyoshô monrui”. Partindo das definições correntes da filosofia japonesa no universo acadêmico contemporâneo, procura-se aqui contrastar o ponto de vista de Shinran com o de seus intérpretes modernos pertencentes à “escola de Quioto” (Kitaro Nishida, Hajime Tanabe,
Yoshinori Takeuchi e Kyoshi Miki). O conceito chave nesse contexto é o da desmitologização da concepção do ir-nascer na Terra Pura.

Já o esclarecimento da estrutura da “causalidade do ir –nascer” é desenvolvido sob a perspectiva de uma diferenciação entre o pensamento de Shinran e aquele de seus intérpretes modernos acima citados.

Palavras chave: “Shinran”, “filosofia japonesa”, “desmitologização”, “causalidade do ir-nascer”.
1. Considerações introdutórias: O pensamento de Shinran e a filosofia japonesa O ponto de partida do presente artigo consiste em situar o pensamento de Shinran no contexto da história do pensamento e da filosofia japoneses. Shinran (1173-1262) é visto, de forma quase unânime, como uma das mais representativas figuras de pensamento no Budismo da idade média japonesa e considerado como um dos possíveis pioneiros de um pensamento filosófico especificamente japonês. Assim sendo, parece ser perfeitamente justificada uma tentativa de situar seu pensamento no contexto histórico do pensamento ou da filosofia japoneses, no entanto, existe uma grande diferença quando nos referimos a uma “história do pensamento japonês” ou a uma “história da filosofia japonesa”. A existência de um pensamento
japonês é considerada como um dado quase auto-evidente pelos especialistas acadêmicos desta área de estudos, ou seja, o desenvolvimento histórico do pensamento japonês, conforme expresso no Budismo, no Confucionismo ou nos “estudos nacionais” (Kokugaku) é um dado incontestável e que não suscita maiores polêmicas. O mesmo não ocorre no que diz respeito a uma “história da filosofia japonesa”, na medida em que esse conceito implica numa dimensão autenticamente filosófica do pensamento japonês (2). Esclarecer os fundamentos que nos levam a afirmar a existência de um pensamento filosófico especificamente japonês, ultrapassa infinitamente as pretensões deste artigo, mas é possível esclarecer os diversos sentidos atribuídos ao termo filosofia japonesa no contexto acadêmico contemporâneo, contudo a abordagem do presente artigo será baseada nas três seguintes acepções:

 

A. Os estudos da filosofia ocidental conforme desenvolvidos por pesquisadores acadêmicos japoneses;

B. O pensamento tradicional japonês budista e confuciano conforme formulado anteriormente à introdução do pensamento ocidental;

C. Uma forma de investigação que emprega métodos e temáticas de origem ocidental, mas que pode ser aplicada ao pensamento tradicional japonês (3).

A primeira dessas acepções nada tem de problemático se levarmos em conta a existência factual de uma longa tradição de estudos e exegese da filosofia ocidental na modernidade japonesa.

 

A segunda, pode ser considerada problemática na medida em que traz em si a exigência de uma demonstração rigorosa do caráter filosófico do pensamento japonês tradicional. É precisamente nesse contexto que a terceira acepção atribuída ao termo filosofia japonesa pode desempenhar uma importante função de mediação. Parece-me que a assim chamada “escola de Quioto” representada principalmente por autores como Kitaro Nishida (1870- 1945), Hajime Tanabe (1885-1962) e Keiji Nishitani (1900-1990) constitui-se na tendência dominante desta última acepção do termo filosofia japonesa, merecendo assim uma atenção especial em relação à temática do presente artigo (4).

A razão principal disso é que essa escola, ao mesmo tempo em que se caracterizou basicamente por uma leitura especificamente japonesa da filosofia ocidental, foi fortemente influenciada em suas formulações pelo pensamento tradicional e desenvolveu uma tradição pioneira de estudos filosóficos do pensamento budista na idade média japonesa. No que diz respeito à relação existente entre esses estudos e o pensamento de Shinran, é importante frisar que ele se constituiu em uma das mais decisivas influências nessa área de estudos desenvolvida pelos autores da “escola de Quioto”. Os estudos do pensamento de Shinran desenvolvidos por  Hajime Tanabe, Yoshinori Takeuchi e Kyoshi Miki apontam concretamente para a profundidade dessa relação (5).

Ao mesmo tempo, há uma influência do pensamento de Shinran claramente perceptível na obra final de Kitaro Nishida (6). Uma análise atenta dos estudos desses autores aponta, por um lado, para uma visão de Shinran como um precursor da desmitologização existencial dos discursos religiosos e, por outro, para sua importante contribuição como um filósofo da história no pensamento japonês (7).

A análise do pensamento de Shinran no presente artigo será centrada no primeiro aspecto de sua avaliação pelos filósofos da “escola de Quioto”, ou seja, a visão de Shinran como um precursor da desmitologização existencial dos discursos religiosos. A esse respeito, mesmo levando em consideração o contexto histórico  medieval sem nenhuma vinculação com a visão de mundo científica ou com os demais aspectos da “modernidade cultural”, parece-me inegável que Shinran realizou uma releitura conceitual de noções  fortemente mitológicas como o “ir-nascer na Terra Pura” referendando-as a uma compreensão da condição humana presente  como um círculo vicioso impulsionado pela ignorância e marcado pelo sofrimento (8). Parece-me, no entanto, que a exegese do pensamento de Shinran pelos autores acima citados não alcançou uma explicitação satisfatoriamente rigorosa da estrutura desse “ir-nascer na Terra Pura”. Assim sendo, pretendemos desenvolver uma compreensão dessa dimensão do pensamento de Shinran articulada através do conceito de “causalidade do ir-nascer” ou formulado de uma forma um pouco distinta, da “temporalidade do ir-nascer na Terra Pura” (9). A articulação conceitual do conteúdo teórico da “causalidade do ir-nascer”, em Shinran, tem aqui a pretensão de elucidar seu conteúdo filosófico em contraste e em confronto com a exegese desenvolvida por esses autores da “escola de Quioto”. Acredito mesmo que essa confrontação seja uma das mediações possíveis para a articulação e a reconstrução do pensamento de Shinran no context contemporâneo.

Essencial desta tradição, é importante frisar que ela possui duas dimensões bastante distintas. A primeira delas é a dimensão de uma religião popular centrada no culto ao Buda Amitabha, que consiste essencialmente em uma expressão de gratidão na vida cotidiana. Essa dimensão foi consolidada por Rennyo (1415-1499), responsável pelo estabelecimento do Honganji como uma religião popular. A segunda, implica em uma doutrina metafísica presente nos escritos de Shinran e que apresenta uma forte relação com o pensamento do Budismo Mahayana indiano, conforme representado pelas escolas Madhyamaca e Yogacara. É um aspecto pouco discutido pelos estudiosos do Jodo Shinshu que essa dimensão foi consolidada por Zonkaku (1290-1373) através de um retorno cognitivo às escolas de Nara  (Kusha, Jôjitsu, Hossô, Sanron), escolas estas que possuem uma forte vinculação com a dimensão normativa do pensamento budista indiano. Assim sendo, o pensamento de Shinran, conforme entendido no presente artigo, deve ser compreendido em referência a esta segunda dimensão. Parece-me que os estudos contemporâneos do pensamento de Shinran, tanto no Japão como no Ocidente são marcados pela presença de fortes estereótipos, apresentando muito pouca inovação doutrinária ou filosófica. Existe uma recusa fortemente enraizada de confrontar os avanços teóricos no campo dos estudos budistas, como os representados, por exemplo, pela crítica aos pensamentos da “Iluminação original” (Hongaku Shisô) e do Tathagathagarbha desenvolvidas pelo “Budismo crítico” (Hihan Bukkyo)(10).

Uma das conseqüências dessa recusa é uma uniformidade monótona de interpretações centradas em obras como o “Yuishinshô Mon-i” ou em temáticas como a “Naturalidade” (Jinen Honi). A abordagem deste artigo visa romper com essa monotonia e estereotipia presente nos estudos do pensamento de Shinran, apontando as possibilidades de inovação teórica presentes em textos como o “Jodo sankyo Ojô monrui” e articulando conceitos novos em clara ruptura com o senso comum estabelecido. Radica ai a necessidade de articular novos conceitos como o de “causalidade do ir-nascer”.

Esclarecido essas questões, pretendo analisar o conceito de “causalidade do ir-nascer” em sua relação com a compreensão da condição humana em Shinran. A estrutura básica de seu pensamento pressupõe um forte contraste entre uma compreensão da condição humana como um círculo vicioso, impulsionado pela ignorância e marcado pelo ódio e pela cobiça e uma reversão radical dessa condição através da “causalidade do ir-nascer”, ou seja, através de uma compreensão da temporalidade marcada por uma forte tensão entre o presente e o futuro.

No que diz respeito a esta sua compreensão da condição humana, ela é marcada por uma radicalização da compreensão budista tradicional do Sansara ou “devir cíclico”. Ou seja, de acordo com a compreensão de Shinran, esse “devir cíclico” impulsionado pela ignorância que se estende desde um passado imemorial é marcado por uma contradição essencial: se por um lado o fluxo de dharmas mentais que o constitui não traz em si nenhum fator capaz de conduzi-lo por si mesmo à ruptura com o “devir cíclico”, por outro lado, a condição humana é compreendida como a única condição, cuja relativa clareza mental possibilita o ouvir e a reflexão sobre o ensinamento de Buda. É essa clareza mental que possibilita o “estabelecimento na condição sem retrocesso na existência presente” que se constitui na causa no contexto da “causalidade do irnascer”.

A estrutura básica dessa “causalidade do ir-nascer” é elucidada da seguinte maneira na passagem inicial do “Jodo sankyo Ojô Monrui”:

“Chamamos de “Outro-poder” ao ir-nascer de acordo com o “Grande Sutra”, ao Voto Original da opção do Tathagatha e ao inconcebível Oceano do Voto. Ou seja: em função da causa proporcionada pelo Voto do ir-nascer através do Nenbutsu, realiza-se o fruto da infalível realização da extinção. Estabelecendo-se no estado corretamente assegurado na existência presente, alcança certamente a Terra da verdadeira fruição. Como isso se deve à verdadeira causa proporcionada pelo direcionamento para o ir-nascer derivado do Tathagatha Amitabha, conduz à abertura da Iluminação do Supremo Nirvana. A isso chamamos de essência do “Grande Sutra”. Assim sendo, é intitulado o ir-nascer de acordo com o “Grande Sutra”, ou ainda de “ir-nascer difícil de ser concebido” (11) .

A estrutura da temporalidade dessa “causalidade do ir-nascer” na Terra Pura implica em uma forte tensão entre o “estabelecimento na condição sem retrocesso na existência presente” (causa) e a realização do “Grande Nirvana” (fruto) no instante da morte. Essa causalidade é estruturada em função dos “quatro dharmas” do Ensinamento, da Prática, da Mente-da-Fé e da Realização. O Ensinamento pode ser compreendido como o “Grande Sutra da vida imensurável”, mas seu conteúdo consiste no conjunto de causas e condições que correlacionam o nascimento na condição humana ao surgimento do Buda Sáquia-Muni no mundo, a Prática consiste na transmissão desse ensinamento através dos sete Patriarcas dos três países (Índia, China e Japão), a Mente-da-Fé consiste no estabelecimento na condição sem retrocesso que se dá em função do ouvir e da reflexão sobre este ensinamento, e a Realização implica no Supremo Nirvana atingido no instante da morte. No entanto, a Mente-da-Fé e a Realização são os dois termos centrais para a compreensão da “causalidade do ir-nascer” conforme esclarecida neste artigo. Na condição sem retrocesso na existência presente surge, pela primeira vez no fluxo de   consciência, um instante da sabedoria supramundana que, embora não elimine a ignorância, produz um infalível direcionamento para a realização do Supremo Nirvana. Esclarecido esses conceitos, abordemos agora a exegese da Mente-da-Fé e da Realização conforme elucidadas pela obra central de Shinran, ou seja, o “Ken Jodo shinjitsu kyogyoshô monrui”. A exegese da Mente-da-Fé, no terceiro capítulo desta obra, inicia-se com um diálogo centrado em um importante tópico desta mesma exegese, ou seja, a contradição entre as “três mentes” pregadas pelo “Grande Sutra da vida imensurável” e a “Mente indivisa” enfatizada pelo terceiro Patriarca, o Mestre Tan Luan (476-542) em seu comentário ao “Tratado da Terra Pura” atribuído a Vasubandhu. Esse debate assume a seguinte forma:

“Questão: No Voto Original do Tathagatha já estão presentes os Votos de Despertar da aspiração, da Alegria da Fé e da Aspiração pelo nascimento. Por que razão o Tratadista se refere à Mente una? Resposta: O Tathagatha Amitabha se refere ao despertar das três mentes para facilitar a compreensão dos ignorantes seres sencientes, no entanto, como a verdadeira causa do Nirvana reside apenas na Mente da Fé, o Tratadista sintetiza as três mentes em uma. No que diz respeito à minha visão pessoal da etimologia das três mentes, concluo que elas consistem em uma única mente. No que se refere a esse sentido analiso a mente do Despertar. Despertar significa verdadeiro, real, sincero. Mente significa semente, verdade. No que se refere à Alegria da Fé, Fé significa verdadeiro, real, sincero, completo, o tornarse, a atividade, a consideração, a avaliação, o expressar-se, a fidelidade. Alegria significa vontade, aspiração, amor, alegria-júbilo, exaltação. No que diz respeito à Aspiração pelo Nascimento, Aspiração significa Voto, Alegria, despertar, discernir; Nascimento significa Devir, Atividade, ação, completitude. Que se entenda com clareza que o Despertar da Aspiração é a verdadeira Mente não mesclada com a dúvida-hesitação e a falsidade. A  Alegria da Fé é a mente da realização da verdade, a mente da perfeita atividade, a mente da fidelidade ao Voto, a mente do amor e da alegria e a mente da alegria da veneração.

Assim sendo, ela não é mesclada com a dúvida-hesitação ou com a falsidade. A Aspiração pelo Nascimento é a Mente da Alegria do despertar do discernimento do Voto, a mente da pura atividade e a mente da transmutação da Grande compaixão. Assim sendo, ela não é mesclada com a dúvida-hesitação ou com a falsidade. Discernindo nesse momento o significado etimológico das três mentes, posso concluir que elas consistem na Mente verdadeira e sincera que não é mesclada com a falsidade ou com os falsos pontos de vista. Podemos concluir assim que ela se intitula a Alegria da Fé por não ser mesclada com a dúvida-hesitação. A Alegria da Fé é a Mente indivisa, a Mente indivisa é a verdadeira Mente da Fé. Assim sendo, o Tratadista refere-se à Mente indivisa em seu prefácio. Que disto se saiba!”(12).

Shinran desenvolve uma argumentação em dois níveis nesse diálogo referente à relação entre as três mentes e a Mente indivisa. O primeiro nível reflete um ponto de vista pessoal sobre a etimologia dos ideogramas chineses empregados para expressar as três mentes do “Grande Sutra da vida imensurável”. A argumentação presente nesse nível pode parecer completamente ininteligível para aqueles que não conhecem os ideogramas chineses envolvidos e que nunca passaram pela disciplina de investigar seus diversos sentidos nos dicionários chineses tradicionais. Essa modalidade de argumentação pode dar a impressão de algo não muito
convincente, mas as assertivas de Shinran nesse contexto são bastante claras: como os ideogramas empregados para expressar as três mentes possuem significados muito semelhantes ou mesmo idênticos, é possível concluir que as três mentes são na verdade uma única mente: a Mente indivisa. No entanto, o segundo nível possui uma consistência muito maior por basear-se em uma análise conceitual estritamente budista e ultrapassando de forma decisiva qualquer
opinião pessoal do indivíduo Shinran. Esse diálogo tem sua continuidade nesse mesmo capítulo que conduz Shinran a introduzir, pela primeira vez, o conteúdo teórico da primeira das “três mentes”, a saber, A “Mente do Despertar da Aspiração”:
“Questão: Podemos concluir do significado etimológico das três mentes que de acordo com o Tratadista elas se constituem em uma única mente e que o Tathagatha Amitabha suscitou o Voto das três mentes em função de sua compaixão pelos seres sencientes. Como podemos compreender essa questão?
Resposta: Difícil é avaliar a intenção de Buda. No entanto, se refletirmos a respeito dessas três mentes podemos dizer que o Oceano dos seres sencientes está dominado pelo mal e pelas paixões desde tempo imemorial até o presente sem possuir a pura Mente, que esses seres sencientes dominados pela falsidade não possuem a verdadeira Mente. Em contraste com isso, quando o Tathagatha realizava as práticas de Bodhisatva por longos e inconcebíveis Calpas, em função de sua compaixão pelo Oceano dos seres sencientes sujeitos à dor e ao sofrimento, a atividade de seus três carmas era completamente pura em cada um de seus instantes de consciência constituindo-se como a verdadeira Mente. O Tathagatha realizou assim virtudes inconcebíveis e inexpressáveis através de sua Mente
pura e verdadeira. E foi através do Despertar da aspiração que o Tathagatha ofereceu suas virtudes ao Oceano de todos os seres sencientes dominados pelo carma das paixões e pelo falso discernimento. Ou seja, como ela consiste na verdadeira Mente do benefício ao outro ela não é mesclada com a dúvida-hesitação. Essa Mente do Despertar da aspiração tem por sua essência o Nome venerável do Despertar das virtudes” (13). A estrutura teórica do trecho acima pode ser clarificada através das proposições que seguem:
A. O fluxo dos dharmas mentais dos seres sencientes é definido aqui como se constituindo exclusivamente de dharmas contaminados (ãsrava dharmas), ou seja, de dharmas associados à ignorância e às paixões. Está pressuposto aqui o contraste entre a inexistência no fluxo mental dos seres sencientes de dharmas supramundanos capazes de conduzir à ruptura com o “devir cíclico” e uma relativa clareza mental que possibilita o ouvir e a compreensão do ensinamento de Buda.

B. O fluxo dos dharmas mentais do Tathagatha Amitabha em sua condição de Bodhisatva é definido aqui como consistindo exclusivamente de dharmas incontaminados (ãnasrava dharmas) e supramundanos que implicam não só na ruptura com o “devir cíclico”, como também na atividade compassiva em benefício dos seres sencientes.

C. É importante frisar aqui que essas definições do Buda e dos seres sencientes como categorias claramente distintas e diferenciadas pressupõem uma conceituação rigorosamente situada na tradição escolástica do Abhidharma.

D. A “Mente-da-Fé” consiste aqui em um conceito que esclarece a correlação entre o Buda e os seres sencientes como duas realidades inseparáveis, mas claramente distintas. Ou seja, a “Mente-da-Fé” implica em uma correlação em que a sabedoria búdica espelha e ilumina a ignorância dos seres sencientes, conduzindo-os à ruptura com o “devir cíclico”. Evidentemente, essa correlação se estabelece através do ato de “ouvir o dharma” (Monpô), ato este que
pressupõe por sua vez uma relativa clareza do fluxo mental especificamente humano.

Esse conteúdo conceitual possui uma importância decisiva na determinação das três mentes em termos filosóficos. Ou seja, elas passam a ser vistas como idênticas por possuírem uma mesma estrutura. Uma análise dos trechos referentes à “Mente da Alegria da Fé” e à “Mente da Aspiração pelo Nascimento” apontam claramente para essa conclusão. A esse respeito, Shinran se refere nos seguintes termos à “Mente da Alegria da Fé”:

“Em seguida, a Alegria da Fé é o Oceano da mente da fé da completa e desimpedida compaixão do Tathagatha. Assim sendo, ela não é mesclada com a dúvida-hesitação.  Assim sendo, ela se chama a Alegria da Fé. Ou seja, ela tem por sua essência a transmutação da Mente do Despertar do benefício ao outro. No entanto, o Oceano de todos os seres sencientes transmigra no mar da ignorância desde um tempo imemorial até o presente afundando na roda do renascimento. Presos à roda do sofrimento, esses seres sencientes não possuem a Alegria da Fé. Assim sendo, difícil é encontrar a suprema virtude, difícil é realizar a suprema, pura e verdadeira fé. Em todos os pequenos e ignorantes, em todos os instantes, a mente da cobiça polui continuamente a mente incontaminada, a mente dominada pelo ódio incendeia permanentemente os tesouros do dharma. Nos seres sencientes dominados por essas chamas a isso se chama o bem mesclado com veneno, ou ainda se chama a falsa atividade, não se constituindo de forma alguma na verdadeira atividade. É impossível aspirar pelo nascimento no país da luz imensurável através desse bem mesclado com veneno. Por que razão? Porque nenhum dos instantes de consciência do Tathagatha estava mesclado com o veneno da falsidade
no momento em que ele realizava suas práticas de Bodhisatva. Sendo esta a Mente da Grande compaixão do Tathagatha ela se constitui necessariamente na causa decisiva do nascimento no país da correta retribuição. Como o Tathagatha compadecido do sofrimento dos seres sencientes lhes ofereceu sua Mente pura, ampla e sem impedimentos, a isso se chama a Verdadeira Mente da Fé do benefício ao outro” (14).

Parece-me inegável que uma análise detalhada deste trecho evidencia sua completa identidade conceitual com o trecho anterior. Por fim, Shinran expressa da seguinte maneira sua compreensão da “Mente da Aspiração pelo Nascimento”:

“Em seguida, no que diz respeito à Aspiração pelo nascimento, ela consiste no apelo direcionado pelo Tathagatha aos seres sencientes. Ou seja, ela faz da Verdadeira Alegria da Fé a essência da Aspiração pelo Nascimento. Ela não resulta em momento algum da transferência do poder interno dos grandes ou dos pequenos, dos ignorantes ou dos sábios. Assim sendo, ela se intitula a não transferência. No entanto, os seres sencientes do mundo, transmigrando no Oceano das paixões e imersos no Oceano dos nascimentos e mortes, não possuem a mente da verdadeira transmutação, não possuem a pura mente da transmutação. Assim sendo, o Tathagatha realizou a Grande mente da compaixão ao completar os três carmas que tinham por seu conteúdo a mente da transmutação em cada um de seus instantes de consciência. Essa realização deveu-se à sua compaixão pelo Oceano dos seres sencientes sujeitos ao sofrimento. Ele ofereceu ao Oceano das
existências sua mente do benefício ao outro, ou seja, a Mente da Aspiração pelo Nascimento. Como a Aspiração pelo nascimento é a mente da transmutação e a mente da Grande compaixão ela não é mesclada com a dúvida-hesitação” (15).
Acredito que uma análise atenta do trecho acima terá por sua conclusão a perfeita identidade de conteúdo com os dois trechos anteriores. É possível concluir dessa forma que Shinran deriva a identidade das três mentes através do conteúdo teórico por elas compartilhado. Para concluir essa exposição da “Mente-da-Fé” como a causa no interior da “causalidade do irnascer”, parece-me importante frisar sua conexão com a ruptura do “devir cíclico”. A esse respeito, Shinran se expressa da seguinte maneira no mesmo capítulo terceiro do “Ken Jodo shinjitsu kyogyoshô monrui”:

“A ruptura significa que em função do direcionamento da mente indivisa em seu aspecto do ir-nascer não existe mais um nascimento a ser recebido, não existe mais nenhum  caminho da transmigração a ser repetido. Como está extinta a causa e eliminada a retribuição nos seis caminhos da transmigração e nas quatro modalidades do nascimento, está cortada definitivamente a relação com o nascimento e morte nos três mundos. Assim sendo, se intitula a ruptura. Os quatro influxos significam as quatro correntezas violentas (correntezas do desejo, da existência, da visão falsa e da ignorância), ou ainda, o nascimento, doença, velhice e morte” (16).
Se a causa compreendida no interior desse conceito da “causalidade do ir-nascer” implica em uma ruptura radical com o círculo vicioso da condição humana, seu fruto entendido como a “Grande Realização” é descrito da seguinte forma no quarto capítulo da mesma obra:
“Ao refletir reverentemente, constato que a Verdadeira Realização consiste na prodigiosa condição da plenitude do benefício ao outro e no fruto extremo do Supremo Nirvana. No entanto, os ignorantes atormentados pelas paixões e as multidões de seres sencientes, afligidos pelo pecado do nascimento e morte, penetram na condição corretamente assegurada no Grande Veículo ao realizarem a Mente da Prática em seu aspecto do irnascer.  Como estão estabelecidos na condição corretamente assegurada, realizam infalivelmente a extinção. A infalível realização da extinção consiste na alegria permanente, a alegria permanente é a suprema extinção, a extinção é o Supremo Nirvana, o Supremo Nirvana é o corpo incondicionado do dharma, o corpo incondicionado do dharma é o verdadeiro aspecto, o verdadeiro aspecto é a natureza do dharma, a natureza do dharma é a essência da verdade, a essência da verdade é o não dual. No entanto, o Tathagatha Amitabha surge a partir da verdade manifestando seus diversos corpos da retribuição e da correspondência” (17).

A “Grande Realização” conforme compreendida no seu pensamento, implica essencialmente na perfeição da sabedoria e na extinção da ignorância, do ódio e da cobiça e não em uma continuidade temporal para além da morte. Nesse sentido, a estrutura básica da temporalidade da “causalidade do ir-nascer” em Shinran implica em uma forte tensão entre o presente estabelecimento na condição sem retrocesso e a futura realização da extinção. É essa tensão entre o presente e o futuro que possibilita o processo de contínua ruptura com o ódio e a cobiça, processo esse fundamentado em uma consciência cada vez mais profunda da ignorância, característica da condição humana.

 

3. Conclusão

As pretensões deste artigo podem ser resumidas satisfatoriamente através dos tópicos seguintes:

As diversas interpretações desenvolvidas a respeito do pensamento de Shinran pelos autores da “escola de Quioto” podem constituir-se em uma importante  mediação entre a filosofia contemporânea, tanto ocidental como japonesa, e o pensamento tradicional japonês, incluindo ai o pensamento do próprio Shinran. A razão disso é que a “escola de Quioto” constitui-se simultaneamente em uma leitura japonesa da filosofia ocidental e em uma tentativa de compreensão do pensamento tradicional japonês.

É duvidoso, no entanto, que essas interpretações tenham elucidado de forma satisfatória o conteúdo teórico do pensamento de Shinran. Assim sendo, o processo de compreensão deste último no contexto contemporâneo exige, por um lado, uma tentativa de compreendê-lo em seus próprios termos e, por outro, um esforço no sentido de esclarecer sua diferença da perspectiva dos autores da “escola de Quioto”.

O conceito de “causalidade do ir-nascer” não aparece de forma explícita nas obras de Shinran, constituindo-se em uma tentativa contemporânea de explicitar a estrutura lógica do “Jodo sankyo ojõ monrui”. Ele pretende proporcionar uma nova fundamentação para a compreensão da temporalidade decorrente da relação entre a “Mente-da-Fé” (causa) e a “Grande Realização” (fruto) no “Ken Jodo shinjitsu kyogyoshô monrui”.

A análise desenvolvida por Shinran a respeito da relação entre o Buda e os seres sencientes no diálogo sobre as três mentes e a “Mente indivisa” no terceiro capítulo do “Ken Jodo shinjitsu kyogyoshô monrui” pressupõe as categorias da escolástica do Abhidharma, apresentando um nível extremamente elevado de rigor e clareza conceitual. A finalidade da perspectiva apresentada neste artigo é acentuar a possibilidade de uma nova compreensão do pensamento de Shinran em contraste e em confronto com as interpretações dos autores da “escola de Quioto”. Nossa pretensão é apresentar uma crítica contundente à perspectiva destes autores.

 

1. Doutor em estudos budistas pela Universidade de Komazawa,Tóquio, Japão e ex-professor de língua japonesa da Universidade IShow,Kaohsiung,Taiwan

2. Como exemplo de uma reflexão representativa a respeito da questão da filosofia japonesa, consultar, Fumihiko Sueki, Nihon tetsugaku no kannosei, (A possibilidade de uma filosofia japonesa), “Kaitai suru kotoba to sekai- Bukkyo kara no chosen”, (Desconstruindo a palavra e o mundo- um desafio a partir do Budismo), Ywanami Shoten, 1998, p.322-342.
3. Como exemplo de uma discussão significativa dos diversos sentidos atribuídos ao termo filosofia japonesa é possível consultar a discussão sobre a “escola de Quioto” no site da Stanford encyclopedia of philosophy, HTTP://www.science.uva.nl/~seop/entries/kyotoschool/, p.42.

4. Para uma introdução à “escola de Quioto”, centrada em suas figuras centrais e acessível em língua portuguesa, consultar, James W. Heisig, Filosofia como espiritualidade: o caminho da “escola de Quioto”, “Espiritualidade budista.II- China mais recente, Coréia, Japão e mundo contemporâneo”, Takeuchi Yoshinori, ( org. ) em associação com James W.Heisig, Paul L. Swanson e Joseph O Leary., Editora perspectiva, 2007, p.377-99. Como uma obra pioneira no estudo da “escola de Quioto” no Brasil, consultar, “A escola de Kyoto e o perigo da técnica” ( abaixo, abreviada como “perigo” ) , Zeljko Loparic ( org. ), DWW Editorial, São Paulo, 2009.

5. Como exemplo de estudos representativos do pensamento de Shinran desenvolvidos pelos autores da “escola de Quioto”, consultar, Yoshinori Takeuchi, “Kyogyoshinshô no tetsugaku”, ( A filosofia do Kyogyoshinshô ), 1941, reedição, 2002, Hôzokan, Hajime Tanabe, “Sanguedô toshite no tetsugaku”, ( A filosofia como metanoética ),1946, reedição, Shotô Hase, Tôeisha, 2000,e Kyoshi Miki, “Shinran”, reeditado por Akira Ômine,Tôeisha, 1999.

6. A respeito da obra final de Kitaro Nishida, consultar, Nishida Kitaro, “Basho teki ronri to shukkyo teki sekaikan”, ( A lógica do topos e a visão de mundo religiosa ), Nishida Kitaro tetsugaku ronshu,III, Ywanami bunko 33-124-6, 2002, p.299-397. Como exemplo de um estudo rigoroso desta obra em língua portuguesa,consultar, Marcos Lutz Muller,A experiência religiosa e a lógica tópica da autodeterminação do presente absoluto ( Kitaro Nishida ), “perigo”,p.149-180.

7. A respeito da questão da desmitologização no pensamento de Shinran, consultar, Yoshinori Takeuchi, “Shinran to gendai”, (Shinran e o mundo contemporâneo ), chuôkoron shinshakan, chukô shinsho, 1974.

8. A “causalidade do ir-nascer” e a compreensão da condição humana em Shinran A questão central a ser aqui esclarecida é o conceito da “causalidade do ir-nascer” em sua relação com a compreensão da condição humana. No entanto, como este conceito é uma construção teórica desenvolvida a partir de uma estrutura lógica presente no “Jodo sankyo Ojô monrui”, mas que não aparece de forma explicita nesta e em outras obras do mesmo autor, fazem-se necessárias algumas explicações introdutórias, que dizem respeito à dimensão filosófica do pensamento da Terra Pura, conforme expresso nas obras de Shinran. As observações mais relevantes podem ser resumidas em alguns aspectos que abordarei abaixo. É sabido que Shinran foi o fundador do Jodo Shinshu, que se constitui em uma das maisrepresentativas correntes do Budismo japonês. No entanto, mesmo pressupondo uma unidade 8. A esse respeito, consultar, Joaquim Antônio Bernardes Carneiro Monteiro, Pensamento budista medieval- uma breve consideração sobre o pensamento budista medieval- centrado na obra de Shinran, revista de filosofia Seaf, ano 8, número 8- 2009- Coedição Uapê, p.178-199.

9. A articulação desse conceito da “causalidade do ir-nascer” foi o resultado de um longo processo de reflexão que teve sua origem nos estudos do Budismo chinês, sendo posteriormente aplicado à elucidação do pensamento de Shinran. Como um exemplo desse desenvolvimento, consultar, Joaquim Monteiro,Zendô Jodokyo ni okeru Ojô no inga ni tsuite, ( A respeito da “causalidade do ir-nascer” no Budismo da Terra Pura em Shan-Tao ), Bulletin of Doho University Buddhist culture institute, 22, 2002, p.231-245.

10. Como a única obra publicada em línguas ocidentais sobre o “Budismo crítico” ( Hihan Bukkyo ), consultar, “Pruning the Bodhi treethe storm over critical Buddhism”, edited by Jamie Hubbard and Paul L.Swanson, University of Hawaii press, 1997. Está previsto para março de 2011 o lançamento do primeiro estudo sistemático do “Budismo crítico” em línguas ocidentais. A saber, James Mark Shields, “Critical Buddhism: engaging with modern japanese buddhist thought”, Ashgate publishing. Aproveito aqui para expressar minha profunda gratidão ao Professor José Celso de Aquino Marques por ter me transmitido a notícia da previsão de lançamento desta obra.

11. Shinshu Shogyo Zenshô, Vol.2, Shusôbu, Quioto, Ôyagui Kobundô, 1941, p.551.

12. Ibid, p.59.

13. Ibid, p.59-60.

14. Ibid, p.62.

15. Ibid, p.65-66

16. Ibid, p.74.

17. Ibid, p.103.

 

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