KARMA E LIBERTAÇÃO

 

“Por isso sei, claramente que a prática do Nembutsu não é uma prática do poder próprio, seja de pessoas comuns ou de sábios. Por isso é chamada “prática da não transferência de méritos”. Os sábios do Mahayana e do Hinayana, as pessoas de mau Karma, seja ele pesado ou leve, todos deveriam tomar refúgio no grande oceano precioso do Voto Original e receber a libertação através do Nembutsu”.

Kyogyoshinsho, cap. II

 

O Budismo da Terra Pura é o caminho especialmente destinado aos seres carregados de mau karma desta época de decadência espiritual chamada Mappo. Em virtude do mau karma, surgem obstáculos bloqueando nossas vidas. Somos sozinhos responsáveis por estes obstáculos pois para outrem ninguém cria karma. Só se cria karma para si mesmo, já que o karma nada mais é que a natural repercussão de todo e qualquer fenômeno sobre quem ou o que o origina. Cada pensamento, emoção, palavra ou ato, tende a repercutir sobre quem o pensou, sentiu, falou ou fez. Esta  tendência é inerente à natureza dos fenômenos. Assim eles são constituidos. Nada de fora do fato intervem ou interfere para que se dê essa repercussão. No karma não há juiz nem juizo. Há pura e simples consequencia. Não há punição ou prêmio, há apenas retro-ação. O que retroage tem a mesma qualidade do que agiu, porque da ação se originou e é, por natureza, dela inseparável.

Para entendermos a dimensão do problema do mau karma, isto é, do karma resultante da ignorância, teríamos de considerar também a concepção de Shinran da natureza humana como “bombunin”, que significa um ser carregado de paixões cegas, de ignorância. Para Shinran (1172-1262),  ser humano é o mesmo que ser limitado, imperfeito, e por isso sempre vulnerável ao erro. A condição humana impossibilita escaparmos a essas vicissitudes. Enquanto se é humano, nunca se consegue saber tudo, entender tudo ou fazer e dizer apenas o que seria sábio fazer e dizer.  Para o Budismo da Terra Pura, é uma perigosa ilusão fantasiar que se possa atingir o Nirvana aqui, enquanto se é humano. O mau karma é inseparável do ser humano. Não há quem não o possua, ainda que haja quem não o admita. E isto não faz com que o mau karma não exista. Apenas o acresce pois esta soberba gera também seu karma.

Como todo ser humano errou, erra e errará, considerando que se há de viver, em algum momento, as consequencias de seus erros passados, presentes e futuros, como poderia um tal ser, por si mesmo, atingir a libertação? Seria impossível. E qual então o destino dos seres ignorantes que somos? Estaríamos fadados aos infernos? Sem dúvida sim, se dependessemos só dos nossos proprios esforços e capacidades. Mas, por compaixão desses seres infernais que somos, o Buda Amida fez seu Voto de libertar todos os seres, sem distinção entre melhores e piores. Só aqui o Budismo atinge sua dimensão universal. A libertação através do Outro Poder é motivada pelas imperfeições da natureza humana e visa resgatar o homem comum, tal como ele é aqui e agora.

Assim sendo, é o Buda quem liberta o ser humano. E o Buda o faz porque compreende, ainda melhor que nós mesmos, como somos limitados. O Buda nos liberta porque somos errôneos, falhos, imperfeitos e não apesar disso. É porque somos tal como somos que necessitamos de ajuda. Quando não o admitimos, insuflamos o ego com suas pretensões e ocultamos de nós mesmos esta face inalienável de nosso ser, justo a mais verdadeira e própria_ a nossa inesgotável ignorância.

Mas, ao se referir ao mau karma, Shinran também enfatiza que pouco importa se ele é leve ou pesado, pequeno ou grande. Não importa sua dimensão, isto é, seu aspecto quantitativo, já que todo ele é da mesma qualidade. Importa, isto sim, que é mau karma, ou seja, expressão da nossa infindável capacidade de errar. Enquanto formos humanos, nunca extinguiremos a fonte dos erros, Hidra de incontáveis cabeças. Tantas poderão ser cortadas pois outras tantas surgirão. Diferentes, sem dúvida. Outras, é claro. Mas todas da mesma natureza. Assim, entre um erro ínfimo, mínimo, e um erro imenso, não há diferença de natureza. Há apenas diferença de proporção e toda proporção é relativa. Grande ou pequeno, mau karma é sempre mau karma. Tem a mesma origem pois nasce da mesma ignorância humana . É irrelevante classificá-lo de pior ou melhor, menor ou maior. O decisivo é que todo ser humano tem que se haver com seu mau karma de ontem, de hoje e de amanhã. Por isso, é ilusório supor que um ser humano possa, por si mesmo, atingir a libertação. No capítulo XV do Tannisho, Shinran ressalta o absurdo de se pretender atingir a realização búdica aqui e agora, enquanto existimos nesta condição corpórea. Não somos perfeitos como o são os Budas, não temos como eles virtudes puras, somos só seres humanos falíveis e confusos. E é para nós, tal como somos, que o Voto Original se destina, para que sejamos encaminhados à libertação na vida futura, isto é, numa outra dimensão de existência. Enquanto isto, vamos vivendo humana e imperfeitamente, porém na jovial confiança que Amida infunde às nossas mentes, fazendo-nos ver que somos compreendidos e aceitos nas nossas limitações, sendo conduzidos, tal como somos, de maneira infalível, à Terra da Plenitude, a Terra Pura. Esta Mente Confiante que Amida nos proporciona, inspira-nos a viver com alegria e gratidão, a morrer em serenidade e paz, sabendo-nos conduzidos pelas seis sílabas do Nembutsu.

Portanto, qualquer que seja o nosso karma, despreocupemo-nos pois o Nembutsu dele se encarrega. Entreguemo-nos ao Nembutsu e tudo irá bem. O Nembutsu dissipa o pior karma tal como a luz dissipa as trevas da mais escura noite. Na vida humana, só importa nascer na Terra Pura. E isto está assegurado pelo Voto Original. Não há o que temer. Não há porque duvidar. Fomos, pelo Voto, destinados à plenitude. E como estamos já sendo conduzidos, a Terra Pura distante vai se tornando cada vez mais próxima. O navegador, ainda em meio ao mar, percebe o odor da terra antes de vê-la. Assim também, na véspera de nossa chegada, que é esta vida presente, uma fragrância transformadora surge no ar, prenúnciando o porvir destinado_ é a Mente Confiante.

Shogyo Gustavo Pinto 1989