ESTA MARGEM E A OUTRA MARGEM

Shogyo Gustavo Pinto

 

A comemoração do O-Higan celebra o advento da Primavera. À cada ano, quando as sementes germinam, quando desabrocham as flores, quando a vida renasce após o inverno, a natureza evoca ao ser humano uma reflexão sobre nossa breve e frágil existência aqui.

Mas o que é este aqui? Onde é que estamos vivendo agora? Respondemos estas perguntas todos os dias, todos os momentos, com nossos pensamentos, nossas palavras e ações. Nós, seres humanos, não vivemos só no mundo em que nascemos. Vivemos cada vez mais no mundo que coletivamente construímos. E o vemos a consumir-se nas chamas dos nossos ódios cegos, das nossas paixões egocêntricas, enfim este mundo arde no fogo ateado por nossa insensata destrutividade. A semana que amanhã finda principiou com uma tal horrenda calamidade, num atentado premeditado, calculado e executado visando o assassinato do maior número possível de vítimas. O inferno com frequencia é aqui e por obra nossa. É nesta margem de trevas e loucura que nascemos, este é o Saha, mundo de sofrimentos inenarráveis ao qual as criaturas cegas que somos se aferram tenazmente. Deste Saha tememos sair pois nele está ancorado o nosso apego, fruto direto da mais profunda ignorância. Vez ou outra um oásis de claridade irrompe em meio à escuridão e a paz Compassiva do Buda da Luz Infinita e da Vida Eterna abre um vislumbre da outra margem, bem como a compreensão do sentido que explica esta. Nem é fortuito o inferno que criamos, nem é em vão que padecemos. Causas e condições vêm desde um longínquo passado determinando uma tortuosa aprendizagem, bem como preparando uma decisiva descoberta, de consequências felizmente irreversíveis.

Há uma outra margem. Há um mundo de Luz para além das trevas que vemos. Há uma paz que transcende os conflitos de que somos prisioneiros. Há um mundo para além do sofrimento em que nos debatemos. Não é aqui, nunca o será, mas estamos aqui para sermos encaminhados para lá. Em lugar das nossas cegas paixões, lá impera a sabedoria Compassiva do Tathagata. Na outra margem não havendo mais a ignorância, não há apego. Não havendo apego, não há mais desejo. Não havendo mais desejo não há sofrimento. A outra margem é a Terra do Buda Amida, em contraste com este sombrio mundo só dos seres humanos.

A outra margem é a meta. Tudo aqui é passageiro, relativo e ilusório. Esta margem pertence ao tempo e dele não pode escapar. Aqui tudo são miragens vãs. Quem nelas deposita suas esperanças, se encaminha à frustração. Por isso Gautama Buda comparou este mundo à um casa incendiando-se, isto é, um lugar onde só um louco intentaria ficar. Em geral somos este louco. Amida está nos conduzindo para fora do incêndio através do Chamado, do Namo Amida Butsu. Por isso, nada do que suceda aqui importa, desde que confiemos em Amida.

Daqui passaremos um dia, apesar de toda a nossa resistência. Se confiarmos, seremos então infalivelmente acolhidos e salvos por um Poder que transcende a nossa possibilidade de compreensão. Só precisamos confiar. E porque não conseguimos faze-lo por nós mesmos, este Poder vem semeando a confiança em nossos corações dúbios. Desde sempre as sementes vêm sendo plantadas. Um dia, quando chega a Primavera, elas germinam e nós enfim sorrimos. Neste dia, saberemos que estamos sendo conduzidos infalivelmente à outra margem e que portanto está garantido o que de fato importa. Tudo o mais é então percebido como irrelevante.

Quando este despertar das sementes acontece enquanto ainda estamos aqui, Amida transforma a qualidade de nossa vida. A confiança nos dá serenidade frente à todas as tormentas pois sabemos que o destino do oceano está garantido à água do rio. Não importa por onde ele corra, não importa a queda que o penhasco lhe imponha, nem que seja tortuoso o rumo. Nunca falha onde ele deságua. Ao fim, é sempre no mar, aonde ele chega. E o oceano, ao recebê-lo transforma-lhe o sabor, o faz igual a si, tal como nos fará Budas adiante, o Buda que aqui nos conduz. Quem o descobre enquanto é rio, já nada teme nem lamenta pois sabe ser tudo caminho para onde importa chegar, que é só onde se chegará. Outro destino não há.

Quando este despertar sucede ao fim desta existência, somos libertados em definitivo do Saha, somos diretamente conduzidos à Terra Pura para de lá ajudarmos a que confiem todos os que ainda aqui se debaterem. Dissolvem-se instantaneamente quaisquer medos remanescentes, dissipam-se todas as fantasmagorias, descobre-se que a verdadeira vida é Eterna e que à ela todos se destinam. Portanto, no que chamamos de morte é que reside a autêntica vida.

Se confiássemos mais em Amida, faríamos como Shinran Shonin que ao receber a notícia da morte de seu discípulo Bennem exultou por sabe-lo salvo na Terra Pura. O mesmo exemplo vemos quando da morte do grande cabalista Simon ben Jochai. Seus amigos mais próximos deram uma festa, com música e alegria, para comemorar sua união com Deus. Este episódio, tal como tantos outros na História das mais diversas culturas e civilizações, nos demonstra que o que chamamos de Mente Confiante (Shinjin), não é um privilégio do Budismo. Nem Amida salvou apenas os Budistas. Aliás, não nos esqueçamos de que em sua derradeira instância, o Absoluto transcende nome e forma. Afinal, não é esse o sentido do que chamamos de Dharmakaya? Nesta dimensão que transcende as palavras e as formas de representação, convergem todas as religiões quando se libertam das respectivas teologias, sectarismos, formalismos e deságuam na experiência de uma inexplicável e inquestionável confiança no único Absoluto. Esta confiança é a essência da atitude religiosa, frente à vida e frente ao que chamamos de morte.

O mundo contemporâneo necessita urgentemente que nos libertemos das gaiolas de nossos “bairrismos” religiosos e busquemos num diálogo maduro e fraterno o nosso ponto de convergência no essencial. Por se pretenderem uns certos e outros errados já se cometeram toda sorte de barbáries, inclusive a mais recente. Estamos certos só quando nos reconhecemos errados. Ser humano é ser errado. Todo acerto que nos possa ser atribuído, na verdade se deve sempre e só à Compaixão do Absoluto quando nos inspira o que nos transcende. A história evolui quando nós, seres humanos, conseguimos perceber, graças à ação do Absoluto que chamamos Amida, as besteiras que estávamos cometendo para delas então nos libertamos para nos dedicarmos a besteiras mais sutis. Da tolice não escapamos enquanto somos ainda humanos, por isso Shinran nos definia como Bombunins. Só não precisamos ficar sempre repetindo as mesmas besteiras. Sejamos pelo menos tolos criativos. E a tolice nova é sempre menos enfadonha que a rotina da mesmidade.

Creio que já não há mais lugar no mundo contemporâneo para a arrogante pretensão de superioridade de qualquer Religião sobre as demais. Vivemos tempos de exigência democrática em todos os âmbitos da vida humana. Vivemos tempos de exigência de compartilhamento respeitoso das diferenças. Temos de buscar o que nos une para escaparmos de continuar nos matando pelo que nos diferencia. Não nos vangloriemos pelo fato do Budismo ao longo de sua História não ter se dedicado a perseguir ou assassinar adeptos de outras Religiões. Basta que este problema exista em alguma Religião para que seja nosso. Afinal, não é isso o que significa a nossa doutrina da interdependência de todos os fenômenos?

As Religiões têm uma grande responsabilidade frente aos desafios do mundo contemporâneo. Só num espírito de união fraterna e respeitosa poderemos trazer a contribuição que nos cabe. O mundo precisa do legado que recebemos mas só conseguiremos transmiti-lo se soubermos exemplificar entre nós, a união que pregamos.

Com todas as nossas loucuras, com todas as tragédias que lamentavelmente causamos, com todo o sofrimento que geramos, ainda assim a existência tem um sentido. Ele transcende a nossa compreensão, ainda quando se nos revela. Este sentido explica o inexplicável e integra num sentido libertador mesmo os absurdos de nossa insensatez. Só com a visão da outra margem podemos compreender a existência nesta margem. Só com a visão da outra margem podemos viver nesta com serenidade. Só com a visão da outra margem podemos nascer na outra margem, ao morrermos aqui. E é a outra margem que nos propicia aqui a visão da outra margem.

Mas por que falamos desta margem e da outra margem nesta comemoração do O-Higan? É porque a verdadeira Primavera é o despertar da Mente Confiante. Cada vez que germinam as sementes, que desabrocham as flores, que a vida renasce na natureza, busquemos ouvir o que nos está sendo indicado. A Mente Confiante está nos dizendo que é lá, na outra margem, não aqui, que tudo se solve. Mas ela também nos diz que é aqui que precisamos ouvi-lo, é aqui que precisamos receber a Confiança. Afinal, foi para isso que nascemos neste mundo e é só para isso que ainda estamos aqui, para recebermos a Confiança que nos salva e liberta. Namo Amida Butsu